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Medidas de segurança: quando a irracionalidade se propõe a cuidar da pretensa falta de razão

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12/07/2011 às 08:01
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2. Medidas de segurança: quando a presunção de periculosidade subverte a presunção de inocência

A parte geral do Código Penal Brasileiro de 1940 trazia em seu bojo previsão da presunção de periculosidade, o que não foi repetido expressamente na "nova" parte geral (Lei nº 7.209/84). No entanto, uma análise sistemática do art. 26 c/c o art. 97 e respectivos parágrafos nos permite vislumbrar a presunção de periculosidade dos "isentos de pena", em clara afronta à presunção de inocência.

A presunção de inocência possui, no texto constitucional brasileiro de 1.988, alcance inédito em nosso ordenamento. Com efeito, a norma normarum de nosso ordenamento jurídico prevê, em seu artigo 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", direito individual fundamental ineficaz quando o réu é cidadão em sofrimento mental.

Neste contexto, o laudo psiquiátrico positivo substitui a necessidade da sentença condenatória com trânsito em julgado, mencionada no dispositivo constitucional, sendo o "agente" considerado potencialmente culpado, enquanto durar a sua periculosidade, o que "justifica" sua exclusão ad vitam.

O arbítrio do juiz é enormemente aumentado em razão desta capacidade de julgar tecnicamente que a ciência da criminologia lhe outorgou. A personalidade perigosa é definida como aquela em que existe uma tendência delituosa, tendência essa avaliada pelo juiz com o auxílio de seus peritos auxiliares (os psiquiatras, principalmente). [25]

Como mencionado anteriormente, a sentença que decreta a aplicação de medida de segurança é absolutória, evidenciando que a conduta tipificada como criminosa, supostamente realizada pelo cidadão em sofrimento mental, em nada influenciará na aplicação das medidas de segurança.

A possibilidade de exclusão de cidadãos que não tenham contrariado qualquer artigo do Código Penal é a arma que a psiquiatria oferece ao Estado, mas que no Brasil só será incorporada e aceita oficialmente em 1.903, através da lei dos alienados. [26]

A regra esculpida no art. 753 do Código de Processo Penal brasileiro, segundo a qual "Ainda depois de transitar em julgado a sentença absolutória, poderá ser imposta a medida de segurança, enquanto não decorrido tempo equivalente ao da sua duração mínima, a indivíduo que a lei presuma perigoso.", evidencia que a periculosidade presumida afasta qualquer possibilidade do cidadão em sofrimento mental ser presumido inocente.

2.1. A execução "provisória" das medidas de segurança

Além da possibilidade de aplicação de medida de segurança em decorrência de sentença absolutória, mesmo depois do trânsito em julgado desta, observamos a consignação de um plus ao absurdo: o art. 152 do Código de Processo Penal Brasileiro admite a possibilidade de aplicação provisória do instituto, no caso de doença mental superveniente.

Nos termos do § 2º do dispositivo: "O processo retomará o seu curso, desde que se restabeleça o acusado, ficando-lhe assegurada a faculdade de reinquirir as testemunhas que houverem prestado depoimento sem a sua presença.".

O que o legislador pretendeu dizer com o termo restabelecimento? Será a cessação da periculosidade presumida? Dentre os processos analisados ao longo da pesquisa, no caso de RSN houve execução "provisória" da medida de segurança de internação.

O primeiro exame psiquiátrico, feito em 1987, atestou que RSN era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito dos fatos. No entanto, em 1988, realizou-se novo exame, que constatou a superveniência de doença mental e recomendou a sua internação "provisória", o que ocorreu de 1988 a 2005.

No caso de RSN existem outros elementos que nos permitem vislumbrar a inexistência de presunção da sua inocência: em comunicação com o juízo da comarca, o delegado, ainda na fase do inquérito do primeiro homicídio, qualifica RSN como "autor de um bárbaro homicídio"; na instrução do processo, o Ministério Público requereu a adoção de medidas, tendo em vista que RSN era um "homicida contumaz".

E o ápice do absurdo: os moradores do bairro de RSN fizeram um abaixo-assinado dirigido ao juízo criminal da comarca, solicitando fossem "tomadas as providências cabíveis", pois o povo estava "amedrontado e tenso" pela violência presenciada, principalmente em razão do suposto crime.

Assim, ficam evidentes todas as contradições existentes quando o assunto é medida de segurança: sentença absolutória que decreta a aplicação de sanção penal; punição de cidadãos reconhecidamente inimputáveis. E a anulação dos direitos fundamentais, com a presunção de periculosidade que subverte a da inocência, com a exclusão que se efetiva independentemente do crime cometido, com a possibilidade de imposição de pena de caráter perpétuo.


3. Considerações finais acerca das medidas de segurança

Vimos, ao longo deste trabalho, que as medidas de segurança são aplicadas pelo fato dos cidadãos em sofrimento mental serem considerados criminosos potenciais, como se carregassem consigo a essência do crime. No entanto, as condutas criminalizadas são relativas, variáveis, o que afasta a possibilidade de uma "essência" do crime.

O que há em comum entre uma conduta agressiva no interior da família, um ato violento cometido no contexto anônimo das ruas, o arrombamento de uma residência, a fabricação de moeda falsa, o favorecimento pessoal, a receptação, uma tentativa de golpe de Estado etc.? Você não descobrirá qualquer denominador comum na definição de tais situações, nas motivações dos que nelas estão envolvidos, nas possibilidades de ações visualizáveis no que diz respeito à sua prevenção ou à tentativa de acabar com elas. A única coisa que tais situações têm em comum é uma ligação completamente artificial, ou seja, a competência formal do sstema de justiça criminal para examiná-las. O fato de elas serem definidas como 'crimes' resulta de uma decisão humana modificável (...). Um belo dia, o poder político pára de caçar as bruxas e aí não existem mais bruxas. (...). É a lei que diz onde está o crime; é a lei que cria o criminoso. [27]

Portanto, percebemos que as medidas de segurança são frutos de preconceitos sociais, ao excluir o diferente, o estranho, haja vista o preconceito secular sofrido pelos portadores de sofrimento mental, como espécie de "caça ao imprevisível".

Não obstante a ausência de fundamentos racionais e jurídicos, os cidadãos em sofrimento mental continuam sendo punidos. Resta-nos, então, tentar responder a seguinte pergunta: Onde se encontram os fundamentos deste direito de punir que subverte a ordem jurídica, e desafia nossa razão? "Façamos uma consulta, portanto, ao coração humano; encontraremos nele os preceitos essenciais do direito de punir." [28]

No coração humano encontram-se os mais variados sentimentos. O principal sentimento que "fundamenta" a aplicação das medidas de segurança é o medo.

Medo ao estranho. Medo ao estrangeiro. Medo de ter medo e medo do medo de ter medo. Principalmente um medo que não precisa de explicações é reconhecido como próprio por todos aqueles que, como eles mesmos dizem, "têm alguma coisa a perder". [29]

E este "não precisar de explicações" permite que o medo seja usurpado, manipulado de acordo com interesses que fogem de seu próprio alcance.

O medo tem sido utilizado como estratégia de manipulação para subjugar, controlar, escravizar e dominar as pessoas. Frente às situações de uso do medo, as pessoas se sentem aterrorizadas, fogem do perigo ou se entregam. [30]

E, dando indícios do modus operandi desta estratégia, Luzia Fátima Baierl continua:

Na nossa sociedade e na história da humanidade, o medo tem sido usado como instrumento de manipulação das pessoas, subjugando-as, tornando-as escravas e dominadas por determinados indivíduos, grupos ou situações. Trata-se da exploração das pessoas e da coletividade, utilizando-se do medo como mecanismo e instrumento de escravidão. As pessoas atemorizadas tornam-se reféns de outras. O fato é que a pessoa acaba tendo "medo do medo" e, então, para não sentir medo, paga qualquer preço. Este é o ponto mais complexo em relação ao medo: que preço as pessoas estão pagando para não sentir medo? As pessoas alteram sua rotina, sua forma de ser no mundo, alteram as relações sociais, não ficam mais indignadas, aceitam o inaceitável, fingem não ver, estão reconstruindo territórios, buscando formas de defesas, revides, mudando horários etc. [31]

Mas, quem são os dominantes, os interessados na manipulação do medo coletivo, de modo que as atrocidades cometidas contra os cidadãos em sofrimento mental sejam aceitas como legítimas? "Pode-se dizer que não é o capitalismo que "inventa" a doença mental. Ele apenas a organiza, tenta transformá-la em mercadoria – e consegue." [32]

Para vislumbrarmos alguns exemplos dos que se beneficiam do medo coletivo, basta pensarmos nos lucros dos donos das indústrias de psicofármacos, das construtoras, entre tantos outros. Não podemos ficar reféns desses interesses.

A sociedade é responsável por não dar ouvidos à loucura, perigosamente não assiste seus cidadãos, educada a deixá-la do lado de fora, como convêm os aparelhos racionais de controle da ordem social. As histórias de ninar apresentam os doidos como sendo do lado do mal, bicho papão. Mais tarde na Universidade, escola de psicologia, psiquiatria, direito dentre outras apresenta-nos a psicopatologia irrecuperável da loucura e todos os meios científicos de realizar a sua contensão e exclusão da ordem social. [33]

Em crítica ao modo pelo qual a mídia noticia os crimes mais graves cometidos por portadores de alguma psicopatologia, geralmente em defesa dos interesses anteriormente mencionados, Fernanda Otoni de Barros nos alerta:

Se conseguíssemos retroceder a fita para os dias que antecederam o ato bárbaro, encontraríamos aquele cidadão transtornado, pedindo, ao seu modo, alguma intervenção que esvaziasse seu sofrimento, transtornado antecipa o fato a ser realizado, de forma desconexa e delirante, procurando um ponto de orientação. Encontraríamos a ausência de assistência a este grito de desespero, a desconsideração, descaso e desrespeito. Essa realidade anterior não aparece nos jornais. Mais tarde irão preencher as páginas dos autos processuais subsidiando a instauração do incidente de insanidade mental. [34]

Excluídos da sociedade, tratados como objetos pelo capitalismo, e como instrumento de trabalho por nossa mídia sensacionalista, eis a realidade à qual estão sujeitos os cidadãos em sofrimento mental, principalmente aqueles que caem na "malha" do sistema penal. No entanto, tal realidade não é "privilégio" desta parcela da população.

As "populações problemáticas", vale dizer o surplus de força de trabalho determinado pela reestruturação capitalista pós-fordista, são geridas cada vez menos pelos instrumentos de regulação "social" da pobreza e cada vez mais pelos dispositivos de repressão penal do desvio. [35]

Sobre a racionalidade do controle, que parece inspirar a experiência carcerária atual, Alessandro De Giorgi explica:

O conceito qualificante desta racionalidade é o de risco. As novas estratégias penais se caracterizam cada vez mais como dispositivos de gestão do risco e de repressão preventiva das populações consideradas portadoras desse risco. Não se trata de aprisionar criminosos perigosos individuais, isto é, de neutralizar fatores de risco individual, mas sim de gerir, ao nível de populações inteiras, uma carga de risco que não se pode (e, de resto, não se está interessado em) reduzir. A racionalidade que estamos descrevendo não é disciplinar, e sim atuarial. [36]

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E, expondo as transformações perpetradas pela racionalidade atuarial dentro do direito penal, acrescenta:

Por conseguinte, a concretude do indivíduo, as modulações reais da interação social, são substituídas por representações probabilísticas baseadas na produção estatística de classe, simulacros do real: imigrantes clandestinos, afro-americanos do gueto, tóxico-dependentes, desempregados. [37]

A perversidade da lógica atuarial, aplicada ao direito penal, é consequência do neoliberalismo vivenciado no campo econômico, pois, em virtude dos avanços tecnológicos experimentados pela humanidade nas últimas décadas, a grande maioria da população mundial é composta de subempregados e desempregados, excluídos do convívio social pela política penal neoliberal.

A análise de processos da Comarca de Ouro Preto, que culminaram na aplicação de medidas de segurança, reforça a tese de que a exclusão, via direito penal, vivenciada pelos cidadãos em sofrimento mental, é parte de uma política neoliberal. AAS foi denunciado pelo crime de disparo de arma de fogo em local público. Antes da ocorrência dos fatos que ensejaram o seu processo penal, AAS foi interditado. No contexto do processo de interdição, o laudo médico concluiu que:

o interditando apresenta quadro de psicose com componente de ansiedade importante, com alteração de impulsividade, sintomas de isolamento social e ideação paranóide. E ainda informou que a patologia vem se agravando ao longo do tempo. [38]

Em função desta conclusão no laudo cível, o juízo penal entendeu que "Diante da prova da interdição do acusado, patente a desnecessidade de exame de insanidade mental." [39]. Não obstante este entendimento do juízo penal, inconteste o fato de que a imputabilidade penal e a capacidade civil são distintas. Ademais, as conclusões do laudo médico no processo de interdição não permitem deduzir a inimputabilidade de AAS.

No entanto, reflexo da política penal neoliberal, como AAS não é apto para desempenhar os atos da vida civil, foi excluído da sociedade, pois não é apto a contribuir com o mercado, não é capaz de contribuir para a economia do país.

O caso de CCS pode ser considerado paradigmático da perversidade da política penal neoliberal. Ele foi denunciado pelo furto de uma bicicleta "em mau estado de conservação", o que permitiria a aplicação do princípio da bagatela. O seu laudo psiquiátrico reconheceu "sintomatologia psicopatológica compatível com transtorno delirante persistente", e em decorrência deste transtorno, atestou a inimputabilidade de CCS.

Mas o laudo reconheceu, ainda, que as condições em que CCS se encontrava, na época do exame, não eram capazes de colocar em risco ele mesmo ou a sociedade, ou seja, ele não era dotado de periculosidade, conforme conceito oferecido pela psiquiatria. Mesmo assim CCS foi submetido à medida de segurança de tratamento ambulatorial.

A falta de fundamentação da sentença que decretou a submissão de WFD à medida de segurança de internação demonstra o descaso do nosso Poder Judiciário para com os cidadãos em sofrimento mental, e, infelizmente, reforça nossa tese. No tocante à materialidade, autoria e inimputabilidade de WFD foram tecidas as seguintes considerações:

Indubitavelmente, resta exaurido dos autos a prática dos fatos narrados na denúncia pelo acusado, preso em flagrante delito.

As provas colhidas corroboram as alegações contidas na peça acusatória.

A despeito de provada a prática dos fatos pelo réu, não pode ser o mesmo condenado, visto que o relatório psiquiátrico apresentado pela Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde atestou apresentar o denunciado discursos desconexos, delirantes, desorientados no tempo e no espaço, alucinações auditivas, o que o impede de exercer qualquer profissão ou atividade doméstica e, por fim, de entender por completo o caráter ilícito de seus atos. [40]

Chama-nos a atenção o fato de, não obstante as sérias dúvidas contidas nos autos no tocante à sanidade mental de WFD, não ter sido provocado o incidente de insanidade mental, sendo que a sua inimputabilidade restou fundamentada em estudo social e relatório psiquiátrico. Ademais, este último nada relata sobre a sua capacidade de querer e entender o caráter ilícito do fato que lhe era imputado.

Estes são os resultados da influência do neoliberalismo sobre o direito penal. Contraditoriamente, o neoliberalismo que exige a completa ausência do Estado no campo das relações particulares, no campo penal reclama um Estado total, capaz de colocar em prática a política punitiva neoliberal, gerindo o risco representado pelas populações problemáticas, que não consomem, não produzem, enfim, não alimentam o mercado capitalista neoliberal.

Portanto, a exclusão dos portadores de sofrimento mental perpetrada via direito penal, não obstante o preconceito secular sofrido por tais indivíduos, não é fruto apenas do medo do diferente, do estranho, do "imprevisível", mas antes, é resultado de uma política punitiva do neoliberalismo que não sabe lidar com as "populações problemáticas", compostas principalmente de subempregados e desempregados, suas próprias criações.

Reforçando nossa tese, dos réus de todos os casos analisados da comarca de Ouro Preto, apenas RSN possuía profissão, de pintor, e o grau de escolaridade de todos eles, com exceção de AAS que tinha o 2º grau completo, era o primeiro grau incompleto. Assim, fica evidente que a aplicação das medidas de segurança atende aos interesses do neoliberalismo, promovendo a exclusão pura e simples daqueles que não são capazes de se adequar ao modo de produção neoliberal.

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Sobre o autor
Anderson Henrique Gallo

Advogado criminalista atuante em Ouro Preto - MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALLO, Anderson Henrique. Medidas de segurança: quando a irracionalidade se propõe a cuidar da pretensa falta de razão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2932, 12 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19520. Acesso em: 19 abr. 2024.

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