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A Justiça cristã e a filosofia medieval

19/07/2011 às 08:56
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A Idade Média teve características interessantes. Durou da queda do Império Romano (século V) até a tomada de Constantinopla (capital do Império Romano do Oriente) pelos turcos, no século XIV. A Igreja Católica supriu o vácuo de poder político causado pela queda do Império Romano do Ocidente. O cristianismo, oriundo da Palestina, era uma das várias religiões orientais presentes no Império Romano. Num dado momento, lhe foi tolerado o culto e, depois, alçada à condição de religião oficial do império. Havia algo de diferente, porém. A idéia de "evangelização", ou seja, de espalhar a boa nova para converter os não-cristãos de modo a se tornar uma religião universal, assinala Marilena Chauí (p. 192).

Há muitos artifícios para a evangelização. No entanto, não era fácil converter os intelectuais gregos e romanos, cujas religiões eram diferentes da cristã, com tradições intelectuais calcadas na razão apregoada pela Filosofia. "Para convertê-los e mostrar a superioridade da verdade cristã sobre a tradição filosófica, os primeiros Padres da Igreja ou intelectuais cristãos (São Paulo, São João, Santo Ambrósio, Santo Eusébio, Santo Agostinho, entre outros) adaptaram as idéias filosóficas à religião cristã e fizeram surgir uma Filosofia cristã", explica Chauí (p. 192).

"Em um mundo em que nem os nobres sabem ler, os monges são os únicos letrados. Daí a fundamentação religiosa dos princípios morais, políticos e jurídicos da sociedade medieval", completam Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (p. 125). Não era por acaso, portanto, que até o século XVI a elite culta da Europa falava o latim bíblico, salienta Michel Villey (p. 107).


Neoplatonismo, gnosticismo e estoicismo

Algumas tradições metafísicas influenciaram o cristianismo na sua sedimentação na Europa, como o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo. Os neoplatônicos, representados por Plotino, diziam que havia três realidades distintas segundo essência. A exemplo de Platão, há um mundo sensível da matéria ou dos corpos e um mundo inteligível das idéias. E um "plus": uma realidade suprema, acima desses mundos, o Uno ou o Bem, que não poderia ser alcançada pela razão, mas pela fé. "Por ser uma luz, o Uno se irradia; suas irradiações (que os neoplatônicos chamavam de emanações) formaram o mundo inteligível onde estão o Ser, a Inteligência e a Alma do Mundo. Dessas primeiras emanações perfeitas, mais afastadas do Uno, e por isso, imperfeitas: o mundo sensível da matéria, imagem decaída ou cópia imperfeita do mundo inteligível", ensina Chauí (p. 192).

Os estóicos, por sua vez, pregavam uma Razão Universal ou Inteligência Universal, "que produz e governa toda a realidade, de acordo com um plano racional necessário, a que davam o nome de Providência", narra Chauí (p. 193). O homem e os animais são movidos por instintos, porém, só aquele participa da Razão Universal por ter razão e vontade. E não basta apenas o conhecimento. Necessita-se de uma ação moral, para a renúncia dos instintos, nos quais há de se ter o domínio da razão sobre os desejos, aceitando a Providência: "A Razão Universal é a natureza; a Providência é o conjunto das leis necessárias que regem a natureza; a ação racional humana (própria do sábio) é a vida em conformidade com a natureza e com a Providência."

Por sua vez, o gnosticismo alimentava a crença dualista, maniqueísta, em dois princípios geradores da realidade. De um lado, o "Bem (luz imaterial)" e o "Mal" (treva material). Prossegue Chauí (p. 193): "Para os gnósticos, o mundo natural ou o mundo sensível é resultado da vitória do Mal sobre o Bem e por isso afirmavam que a salvação estava em libertar-se da matéria (do corpo) através do conhecimento intelectual e do êxtase místico."


Filosofia, serva da teologia

As relações entre razão e fé e filosofia e teologia promovem um grande debate intelectual. Ainda na Antiguidade, no século II (decadência do Império Romano), surgiu a filosofia dos padres da Igreja, a Patrística. Essa filosofia, entretanto, era subordinada à teologia. Como versa a expressão de Santo Agostinho: "Credo ut intelligam." Ou seja: "Creio para que possa entender". Aliás, Santo Agostinho foi o grande nome da patrística e, segundo ele, o conhecimento das verdades eternas provém somente de Deus. Esta é a sua teoria da iluminação. Do século IX ao século XIII desenvolveu-se a escolástica, cujo maior artífice é São Tomás de Aquino. E o mesmo dilema perseverou: a razão é subordinada à fé. Filosofia é serva da teologia.


Justiça e religião

Embora, a doutrina surgida na Palestina, com Jesus Cristo, tivesse originariamente mais sentido moral e religioso, as escrituras sagradas da religião cristã exerceram, obviamente, influência no modo de ser ocidental. As lições cristãs estão profundamente arraigadas em praticamente todos os assuntos, como as tradições, hábitos, costumes, crenças populares, moral, ética e, também, no Direito.

Jesus e o princípio da tolerância. Porém, no contexto de inserção na Europa, o cristianismo adquiriu outra roupagem e mesclou-se com a metafísica de Platão, a ética de Aristóteles e a técnica dos romanos, entre muitos outros exemplos. Há de se falar, ademais, que neste tópico fala-se de justiça cristã, sem adentrar nas quimeras das diferenciações que foram levadas a cabo posteriormente, como catolicismo, luteranismo, calvinismo, etc.

Trata-se mais, segundo Carlos Eduardo Bianca Bittar e Guiliherme de Assis Almeida (p. 190), de "pesquisar no bojo dos Evangelhos uma doutrina acerca da justiça, levando-se sobretudo em conta: (a) o julgamento de Jesus, como um fato humano de grande significado, uma vez que provocou verdadeira expansão de sua curta pregação (ele nunca escreveu uma palavra sequer do que pregou); (b) também, a doutrina de Justiça que incorpora, numa esperança e num anseio do advento da Justiça Divina; (c) a identificação da Boa Nova, a doutrina de Jesus, como ensinamentos nitidamente diversos dos contidos no Antigo Testamento. É isso porque, para essa doutrina: ‘Mas vós sois dele em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação e redenção (Paulo, Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, p. cap. I, v. 30)".

Há de se ressaltar que a doutrina do Evangelho não é uniforme, seja no Antigo quanto no Novo Testamento. Existem conflitos entre o que dizem os velhos dogmas (Antigo Testamento) e os novos dogmas (Novo Testamento). Dessa forma, Hans Kelsen – segundo Bittar e Assis – há relatividade, nas escrituras sagradas do cristianismo, acerca do conceito de justiça.

No entanto, para Bittar e Assis, Kelsen cometeu um erro. Não se teria atentado para as "revogações" que Jesus fez de parte da doutrina anterior, seus ritos e formalismos, tentando superar "arcaísmos". "O Cristo não desmentiu as profecias, a verdade antiga ou as promessas dos antigos sábios, pelo contrário, com sua presença inter homines fez dar cumprimento ao que se esperava de Deus pelo povo judaico. O momento do batismo é significativo neste sentido, pois cumpria a João Batista fazer com que se cumprisse o que estava escrito. João, não querendo batizar Jesus, recebeu a seguinte resposta: ‘Jesus, porém, respondendo disse-lhe: Deixa por agora, porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele o permitiu", assinalam Bittar e Assis (p. 191-192).


Do Deus vingativo ao Deus do amor

O Antigo Testamento retrata uma realidade crua, na qual a sociedade hebraica era fustigada e mantida escrava pelos egípcios. Deus era uma figura vingativa e toda poderosa, daí a moral e a religião daquela época para os hebreus serem dogmáticas e rigorosas. A sua religião dos hebreus ainda se estruturava, as consciência popular ainda desfrutava de um ensinamento imaturo. Por isso, as passagens, explicam Bittar e Almeida (p. 192), eram pintadas com cores fortes e igualmente atemorizantes. As revelações, então, não surgiam para qualquer outro povo, em quaisquer outras circunstâncias, mas eram vistas como advindas das dificuldades materiais e morais de um povo.

Com Cristo, os temores e a imagem de um Deus vingativo começaram a ser deixadas de lado. Aliás, a partir dele, se falou de um Deus benevolente e que perdoa. À medida em que o povo hebreu prosperou e suas tradições morais e religiosas se depuraram, os ensinamentos gradativamente também se elevaram. "Com isso, não se pode concluir diferentemente da renovação da doutrina cristã pelo advento do Messias. É com o advento do cristianismo que ficou marcada a lição da justiça tal qual retratada e concebida por essa religião. A justiça, ou melhor, o ensinamento acerca dela, surgiu com a própria vinda exemplar do Cristo em sua missão de esclarecimento acerca do justo e do injusto. ‘E, libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça’, ou, ‘Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça’ (Paulo, Epístola de Paulo aos Romanos, cap. VI, v. 20)", escrevem Bittar e Almeida (p. 192).

Interessante também a visão de Michel Villey (p. 105): "De qualquer modo, assim é na ‘Nova Lei’ do Evangelho, que para os cristãos é a versão da ‘Antiga Lei’ do Velho Testamento. Esta a resume, como todos sabem, nestas duas leis que se reduzem a uma: ‘Amarás a Deus com todo teu coração e com toda tua alma – e teu próximo como a ti mesmo (...)."


Justiça superior

Em muitas das passagens das escrituras sagradas, fala-se de impérios, doutrinas e sábios que florescem e esmorecem. Porém, haveria algo que permaneceria, a Palavra do Senhor, que simbolizaria uma justiça superior ao plano terrestre e mutável. "Trata-se de mencionar uma ordem que está para além dos sentidos humanos, naturalmente de caráter espiritual, em que a Justiça aparece como fenômeno imperecível, e de acordo com a qual o julgamento se exerce de forma inexorável; a eternidade e a irrevogabilidade são suas características", assinalam Bittar e Almeida (p. 192).

A conduta do cristão deve amoldar-se à lei. Não se trata da lei humana, mas da lei do amor. A justiça olharia para os pobres, desencaminhados, pecadores ou ovelhas desgarradas. A justiça cristã, bíblica, busca uma realização futura e não atual, como num processo judicial, por exemplo, nos ditames de Aristóteles. "No final das contas a justiça bíblica reside no interior do homem, que ela supõe piedoso e caridoso, penetrado de amor", assevera Villey (p. 105).

Muitas vezes, justiça pode ser misericórdia, ou, ainda, caridade. Diz Villey (p. 108): "Ela consiste em tomar por princípio o partido dos pobres, do terceiro mundo, dos criminosos reincidentes, das classes trabalhadoras (supondo-se que os trabalhadores sindicalizados sejam efetivamente os mais pobres). Nossa justiça continua sendo uma tensão em direção a um além, a um outro mundo: mundo de futura liberdade, igualdade, fraternidade, prosperidade universais. (...) A justiça de sonho que secreta nosso idealismo é historicamente um vestígio e uma contrafação da antiga mensagem evangélica do Reino dos Céus."

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Leis humanas e leis de Deus

Como Sócrates e Platão, principalmente, ligavam a justiça a um além-vida, o Hades, na justiça cristã pensar-se-á a respeito disso também. Ora, as leis humanas variam no tempo e no espaço, devido à diversidade dos povos. As leis divinas (de Deus) não poderiam, jamais estarem maculadas com as mesmas falhas e mundanidades. "A lei humana, portanto, que condenou o Cristo, o que foi feito com base na própria opinião popular dos homens de seu tempo, é a justiça cega e incapaz de penetrar nos arcanos da divindade. A ilusão medra entre os que veem somente dentro dos estreitos limites do campo material de alcance de sua visão", alertam Bittar e Almeida (p. 206).

Afirmam Bittar e Almeida (p. 193): "Assim, para além do que o homem (legislador) institui como o justo e o injusto, existe uma justiça que se exerce de acordo com regras espirituais, ou seja, de acordo com a lei divina. Esta se distancia da lei humana no sentido de que aquela é universal, inexorável, perene, irrevogável. Estas as suas características principais. Estar diante de uma justiça divina significa estar diante de uma justiça presidida por Deus, aplicada por esse mesmo Deus. Aquele que povoa o Universo de regras é Aquele mesmo que executa essas regras e, mais que tudo, que segundo essas regras julga pelos seus atos cada alma."

Ao conceito de liberdade do cristão, associa-se imediatamente o de responsabilidade. A cada qual cabe sua parcela pelos seus feitos, dizem Bittar e Almeida (p. 193): "Portanto, estar diante de si, de sua consciência, de sua conduta, de suas obras (...) aí reside a importante idéia de responsabilidade. A liberdade de agir do cristão reside no fato de que, conhecendo a Palavra Revelada, não precisa de outra crença senão a crença no ensinamento de Jesus para governar-se a si próprio. Assim, não se ilude com as tentações do que é transitório, não age de modo a desgostar o outro, guia-se e pauta-se de acordo com o que pode fazer para melhorar sua condição pessoal e a de seu semelhante, vive na carne tendo em vista o que é do espírito... Aí a liberdade de agir do cristão; para além de se considerar que o cristianismo constrange, sufoca, oprime, predetermina, deve-se dizer que liberta a alma para ser conforme a regra cristã."


Tolerância no amor ao outro

Amor, caridade, benevolência, paciência, compreensão e tolerância são os preceitos cristãos para a conduta humana. E mais: não cabe aos seres humanos julgarem a conduta uns dos outros. Julgar os homens é tarefa exclusiva de Deus. "Não julgueis a fim de que não sejais julgados; porque vós sereis julgados segundo houverdes julgado os outros; e se servirá convosco da mesma medida da qual vos servistes para com estes." (Mateus, cap. VII, vv. 1 e 2) Talvez se resgate a questão de se avaliar a si mesmo, antes de avaliar os outros.

E ao tomar noção da sua imperfeição, ao olhar-se através dos olhos do outro, haveria de se falar em tolerância, em saber aceitar a diferença alheia, já que o julgamento perfeito só restaria em Deus.

Esses ensinamentos parecem direcionar ao que se moderna e contemporaneamente se denominou de princípio da tolerância. Deve-se, antes de tudo, tentar se compreender o outro na sua diferença e, dependendo do caso, perdoá-lo, no intuito de buscar a reconciliação. E a base dessa reconciliação é a união.


Referências Bibliográficas

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. 3. rev. São Paulo: Moderna, 2003.

BITTAR, Carlos Eduardo Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8. ed. rev. aum. São Paulo: Atlas, 2010.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006.

LEITE, Flamarion Tavares. Manual de Filosofia Geral e Jurídica – das origens a Kant. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991.

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito – dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

NEDEL, José. Ética, Direito e Justiça. 2. ed. rev. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.

VILLEY, Michel. Filosofia do Direito – definições e fins do Direito, os fins e os meios do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. A Justiça cristã e a filosofia medieval. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2939, 19 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19550. Acesso em: 29 nov. 2024.

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