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Da necessidade de uma nova regra para o foro privilegiado: a adoção do princípio da "perpetuatio jurisdictionis" no processo penal brasileiro

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14/07/2011 às 17:07
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Defende-se a adoção do princípio da "perpetuatio jurisdictionis" no processo penal brasileiro, para evitar mudanças fraudulentas na competência determinada pelo foro privilegiado e em respeito ao princípio do juiz natural.

Resumo: A tese defende a plena adoção do principio da perpetuatio jurisdictionis no processo penal brasileiro, especialmente com o fim de evitar mudanças fraudulentas na competência determinada pelo foro privilegiado, e em respeito ao princípio constitucional do juiz natural.

São analisados os casos de Ceci Cunha, deputada federal eleita, em que o mandante do crime agiu motivado pelo objetivo de obter a vaga da vítima na Câmara dos Deputados e manter seu foro privilegiado, e de Ronaldo Cunha Lima, ex-governador da Paraíba, réu por tentativa de homicídio em ação que tramitava no STF, cuja renúncia ao mandato de senador motivou o deslocamento da ação à primeira instância.

São sugeridas ainda as alterações legislativas e jurisprudenciais necessárias para a adoção do princípio em nosso ordenamento jurídico.

Abstract: The thesis defends the full adoption of the perpetuatio jurisdictionis principle in the Brazilian penal proceedings, especially in view of avoiding fraudulent changes in the jurisdiction power determined by privilege, and in respect to the constitutional principal of the Court.

Some cases are studied, such as of the elected representative Ceci Cunha, whose crime instigator was motivated with the intention of taking the victim’s place at the House of Representatives and thus keeping his privilege, and of Paraíba’s former governor Ronaldo Cunha Lima, defendant in a case for homicide attempt in a lawsuit that was going through the procedure at the STF and whose resignation to the mandate triggered the moving of the lawsuit to the first instance. It is also suggested that necessary legislative and jurisprudential alterations be made in order for the principle to be adopted in our legal system [01].


Uma das maiores causas de impunidade no Brasil é causada pela ausência de um princípio em nosso processo penal, o da perpetuatio jurisdictionis. É comum vermos o elevado interesse com que alguns políticos disputam cargos eletivos, com o único intento de conseguir um foro privilegiado e escapar da jurisdição do juiz de primeira instância. Ou o contrário, quando um ocupante de elevado posto renuncia ao seu cargo, fazendo o andamento do feito recomeçar, e aumentando a chance de prescrição.

Compreendido o conceito de perpetuatio jurisdictionis, mister se faz que entendamos a fixação da competência no processo penal pela prerrogativa de função, para em seguida discutirmos a posição atual do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do foro privilegiado, arrematando com a sugestão para que seja incorporado de forma plena ao processo penal brasileiro o princípio em questão.

A intenção é analisar como a adoção do princípio da perpetuatio jurisdictionis no processo penal poderia resultar numa Justiça penal mais célere e eficaz, reduzindo a sensação de impunidade que as regras atuais provocam.

No âmbito do processo civil Ernane Fidélis dos Santos nos dá o conceito do referido princípio:

"A competência, embora a lei procure fixá-la por critérios que melhor atendam aos interesses das partes e lhes façam justiça, interessa muito mais à jurisdição (grifo do Autor) do que àquelas propriamente ditas. Daí a regra que consagra o princípio da perpetuatio jurisdictionis, fixando a determinação da competência no momento da propositura da ação, sem importarem as modificações do estado de fato ou de direito, ocorridas posteriormente. (art. 87)." [02]

Diversos autores chamam esse princípio de perpetuação da competência (a fim de diferenciar competência de jurisdição). Outro conceito do referido princípio, da lavra de Patricia Pizzoi, é o seguinte:

"Consiste na cristalização da competência no momento da propositura da ação, ou a cristalização e subsistência dos elementos (de fato e de direito) em decorrência dos quais se determinou a competência. (...) Vale ressaltar que o princípio em tela pode ser considerado uma manifestação do princípio constitucional do juiz natural [03]".

O referido art. 87 do Código de Processo Civil (CPC) têm a seguinte redação:

"Art. 87. Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia."

O próprio Fidélis dos Santos nos dá o exemplo:

"Se a competência (...) foi fixada em razão do domicílio do réu, sua mudança futura não afeta a competência fixada. Da mesma forma, se o réu se torna incapaz e outro é o domicílio de seu representante, a competência não se altera em razão do art. 98 do Código." [04]

Patricia Pizzoi ensina que a finalidade do princípio é evitar que alterações supervenientes à propositura da ação desloquem a competência para órgão distinto daquele que a recebeu, visando proteger a parte ativa (e a parte passiva, em algumas hipóteses) e estabilizar a competência de foro [05]. Na mesma obra, citando lição de Celso Agrícola Barbi, Pizzoi diz que o princípio impede que alterações fraudulentas da situação de fato possam gerar a modificação da competência.

Tratemos agora de processo penal. Segundo o saudoso Julio Mirabete, a competência é determinada pela prerrogativa de função (art. 69, VIII, Código de Processo Penal), chamada de ratione personae, quando esta é ditada pela função da pessoa, tendo em vista a dignidade do cargo exercido, e não do indivíduo que o exerce [06]. Tal é também conhecido como foro privilegiado.

Haveriam pessoas, ainda nas lições de Mirabete [07], que exercem cargos relevantes na estrutura estatal, e é necessário que sejam processados por órgãos superiores, de instância mais elevada.

À guisa de exemplo, nossa Constituição (CF/88) prevê em diversos artigos o foro privilegiado: No STF serão julgados, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente (art. 102, I, alíneas b e c); No art. 105, I, a, são elencadas as autoridades que serão julgadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ); O art. 108, I, a, prevê quais autoridades serão julgadas na esfera penal pelos Tribunais Regionais Federais (TRF´s); os prefeitos municipais serão julgados perante os Tribunais de Justiça (art. 29, X).

O Código de Processo Penal disciplina o assunto da seguinte maneira:

Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. (Redação dada pela Lei nº 10.628, de 24.12.2002)

Havia um parágrafo deste artigo e que terminou sendo derrubado pelo STF (nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n° 2.797-2 e 2.860-0 [08] (DOU de 26.09.2005 e DJU de 19.12.2006), com o seguinte teor:

§ 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. (Incluído pela Lei nº 10.628, de 24.12.2002) [09]   

O STF outrora tinha uma Súmula, de número 394, cancelada em julgamento de 1999 [10], que dizia:

"Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício."

A fundamentação do STF para o cancelamento da Súmula 394 seria, segundo trecho da ementa:

"Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos."

Assim, com o intento de evitar possíveis privilégios, à luz da Carta Magna, veio o STF a cancelar a Súmula 394, e a repudiar a redação dada pela Lei 10.628/2002 ao art. 84, §1°, que, segundo o julgamento da ADIn 2.797, era "evidente reação legislativa ao cancelamento da Súmula 394".

Para que entendamos a matéria comparemos a fixação da competência em nosso processo penal com a tomada de retratos fotográficos do réu e de seu cargo (ou ausência dele).

A competência por prerrogativa de função, se adotada a regra da perpetuação da competência no processo penal, seria fixada fotografando o cargo do réu no momento do crime e mantendo aquele foro até o fim do processo penal. Isso tornaria inúteis as eleições para cargos diversos ou a renúncia ao cargo ocupado. Não seria necessária mais "foto" alguma, é um sistema mais simples e que dá menos margem a alterações de competência.

Na regra atual, seria como se o réu fosse fotografado a cada instante, para verificação da competência no foro privilegiado. Enquanto o réu mantivesse a função que o levou a ser julgado em determinado foro, a ação penal neste foro ficaria. A partir do momento em que a foto fosse diversa (o réu assumiu função com foro privilegiado em corte diversa, ou renunciou à sua função), a ação penal seria deslocada. Diversas "fotos" (verificações de competência) devem ser tiradas, com maior trabalho, e a chance de injustiça aumenta.

O STJ já proferiu decisão em que acatou a perpetuatio jurisdictionis no processo penal (mas, ressalve-se, em decisão não ligada à foro privilegiado):

"Processo Penal. Competência. Criação de Vara Federal no Interior. Princípio da perpetuatio jurisdictionis.

Proposta a ação penal, ainda quando não instalada a Vara Federal no interior do Estado, firma-se a competência do juiz processante, ante a combinação do art. 3° do CPP e art. 87 do CPC.

Recurso de habeas corpus a que se nega provimento.

Decisão unânime. 5° T. Min. Assis Toledo. RHC 4796/SP; DJ. Data 20/11/95. P. 3961 [11]."

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O STJ, no caso, estendeu por analogia uma regra de processo civil ao processo penal com fulcro no art. 3° do CPP.

Douglas Fischer [12], Procurador da República, reproduz e critica em artigo alguns julgados do Tribunal Regional Federal da 4° Região (TRF-4) que estenderam por analogia o princípio da perpetuatio ao processo penal, em casos de tráfico internacional de entorpecentes (julgados pela Justiça Federal) em que a instrução mostrou não haver o elemento "internacional" na conduta dos réus, e que não foram deslocados para a Justiça Estadual (competente para o tráfico "não-internacional"). Veja-se que também não se trata de foro privilegiado.

Mas, segundo Fischer, esses julgados do TRF-4 foram derrubados em habeas corpus julgados pelo STF, como o seguinte:

"Penal. Processo Penal. Habeas Corpus. Tráfico de entorpecentes. Tráfico interno. Lei 6.368/76, art. 12. Competência. Súmula 522 do STF."

(HC 79.479-6, RS, rel. Min. Carlos Velloso. J. 13.12.96, DJC 28.02.1997).

Voltemos à questão do foro privilegiado. O entendimento do STF é de que a diplomação para um determinado cargo (no caso de eleição), ou a posse num cargo, são suficientes para deslocar a competência penal. E a renúncia ou exoneração do cargo geram efeitos automáticos, deslocando a competência para o foro comum.

Vejamos alguns julgados do STF neste entendimento.

Primeiramente, no caso de posse ou diplomação num cargo como fator de deslocamento de competência, diz o STF:

"A diplomação do réu como Deputado Federal opera o deslocamento, para o Supremo Tribunal Federal, da competência penal para a persecutio criminis, não tendo o condão de afetar a integridade jurídica dos atos processuais, inclusive os de caráter decisório, já praticados, com base no ordenamento positivo vigente à época de sua efetivação, por órgão judiciário até então competente." (HC 70.620, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 24-11-06)  

"Competência – Recurso especial – Matéria penal – Assunção do cargo de Deputado Federal pelo réu-recorrente. A detenção do mandato de Deputado Federal pelo réu-recorrente no recurso especial implica a competência do Supremo para o julgamento." (HC 85.197, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de16-12-05). No mesmo sentido: Inq 2.727, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 13-11-08, DJE de 13-2-09.

Citemos um julgado mostrando a rota inversa [13], proferido na Ação Penal movida contra Ronaldo Cunha Lima, ex-governador da Paraíba, réu por tentativa de homicídio (caso que analisaremos mais adiante), mas tendo por fundamento o mesmo entendimento:

"O réu, na qualidade de detentor do mandato de parlamentar federal, detém prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, onde deve ser julgado pela imputação da prática de crime doloso contra a vida. A norma contida no art. 5º, XXXVIII, da Constituição da República, que garante a instituição do júri, cede diante do disposto no art. 102, I, b, da Lei Maior, definidor da competência do Supremo Tribunal Federal, dada a especialidade deste último. Os crimes dolosos contra a vida estão abarcados pelo conceito de crimes comuns. Precedentes da Corte. A renúncia do réu produz plenos efeitos no plano processual, o que implica a declinação da competência do Supremo Tribunal Federal para o juízo criminal de primeiro grau. Ausente o abuso de direito que os votos vencidos vislumbraram no ato. Autos encaminhados ao juízo atualmente competente." (AP 333, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 5-12-07, DJE de 11-4-08)

Esse é o entendimento do STF no caso de diplomação e posse em cargo que gere foro privilegiado, e renúncia a um cargo detentor de foro privilegiado. E, em complemento, o STF afastou a antiga Súmula 394, no entender que o cometimento de crime durante o exercício funcional não mais daria ensejo ao foro privilegiado (o fim do mandato ou a renúncia deslocam a competência).

É bom que se ressalve, não somos integralmente contra o foro privilegiado. Em que pese a experiência de outros países permitir o processo de altas autoridades na hipótese de crimes comuns perante juízes de primeira instância, creio que não seria a solução mais apropriada. Seria uma violação à nossa ordem constitucional permitir que um juiz de primeira instância julgasse o Presidente da República num crime comum. Ou que um Ministro do STF fosse julgado por uma Corte diversa.

Mas cremos que as atuais regras de fixação de competência no caso de foro privilegiado e o entendimento atual do STF sobre a matéria, este em que pese exarado em decisões proferidas com o melhor dos intentos (evitar privilégios, respeitando o princípio da igualdade), em verdade perpetua um foco de impunidade que merecia ser debelado.

A injustiça gerada é que por vezes a diplomação ou posse em cargos públicos, e a renúncia a eles, é utilizada por alguns réus como meio de escapar dos seus processos, procrastinando-lhes o andamento, até a vinda da aguardada prescrição, gerando impunidade. Isso praticamente deixa na mão do réu a escolha do foro que julgará sua ação penal.

Questão para outro momento, fato é que as regras de prescrição em nosso sistema penal - processual penal, são por demais brandas e benéficas ao réu. O prazo prescricional, por si só, para determinadas infrações, é muito curto, e incompatível com as necessidades da instrução penal. As pretensão penal por vezes se exaure na prescrição, visto que o Judiciário é congestionado por milhões de novas ações todo ano.

Vamos analisar alguns exemplos de casos em que a ausência do princípio da perpetuatio no processo penal gerou injustiças.

O primeiro seria um assassinato motivado pelo próprio foro privilegiado.

Em 16 de dezembro de 1998 a deputada federal eleita Ceci Cunha, de Alagoas, foi assassinada a tiros, juntamente com seu marido Juvenal Cunha da Silva, e outros dois familiares dela, Iran Carlos Maranhão Pureza e Ítala Neyde Maranhão Pureza. Ela estava justamente a comemorar a sua diplomação como deputada, quando foi surpreendida por pistoleiros que executaram friamente ela e seus parentes (meras testemunhas).

O crime fora encomendado por Tavane Albuquerque, 1° suplente na coligação eleitoral de Ceci Cunha, e foi motivado com a finalidade de obter a vaga da deputada eleita na Câmara Federal. Ele de fato tomou posse como deputado federal no ano seguinte.

A sentença de pronúncia, proferida pelo magistrado federal Leonardo Rezende Martins, da 1° Vara Federal de Maceió [14], determinou que fossem levados a júri federal o ex-deputado Tavane Albuquerque e os executores materiais do crime. A sentença delineia a motivação do crime:

"Ao formular a denúncia (f. 3-9, vol. 1), o douto Promotor de Justiça delineou claramente que o motivo para a prática do quádruplo homicídio fora o desejo de TALVANE ALBUQUERQUE, que lograra apenas a primeira suplência nas eleições para o cargo de deputado federal ocorridas naquele ano, de permanecer com mandato na Câmara dos Deputados. Para tanto, teria elaborado o plano de assassinar a deputada reeleita CECI CUNHA, pertencente a sua coligação partidária, para assim, com a vacância, ocupar sua vaga na condição de suplente.

Eis o que diz a denúncia, in verbis (f. 5, vol. 1):

"Exsurge latente dos autos, que a motivação das ações delituosas foi a não eleição do deputado federal TALVANE ALBUQUERQUE, para um segundo mandato, figurando na primeira suplência da coligação; de cujos quadros fazia parte a falecida deputada 'Ceci Cunha'.

[...]

Emerge dos autos, finalmente, que os homicídios praticados nas desventuradas vítimas, em particular na deputada 'Ceci Cunha', tiveram como fim único dar origem a uma vaga de deputado federal na coligação a que pertenciam Ceci e Talvane, o que efetivamente ocorreu, tendo o último tomado posse em meados do mês próximo passado. Saliente-se, por fim, que as circunstâncias e os motivos determinantes dos delitos denotam a frieza e crueldade dos executores, elementos de péssimas índoles, contratados mediante promessa de recompensa, por um homem público que nestes vários anos de legislativo, escudado na execrável 'imunidade parlamentar' tem praticado inúmeros delitos impunemente."

A mesma linha argumentativa norteou a confecção da denúncia pelo Procurador-Geral da República, às f. 4.175 (vol. 18):

"E qual o motivo que levou o denunciado a determinar a execução hedionda dos homicídios de CECI CUNHA e seus parentes, logo no dia em que estavam eles alegres e contentes com a diplomação da falecida no cargo de Deputada Federal? Sem dúvida, a motivação reside na circunstância de o acusado querer, a todo custo, tomar posse como Deputado Federal, de forma a se proteger ilegitimamente sob o manto da imunidade parlamentar.

Ora, como dito linhas atrás, era o denunciado TALVANE ALBUQUERQUE 1º suplente na coligação pela qual a Deputada Federal CECI CUNHA havia sido eleita. Com a morte dela, evidentemente, quem assumiria o cargo vago seria o acusado, como de fato ocorreu em fevereiro do corrente ano.

Pretendia o denunciado, ainda, uma vez diplomado como Deputado Federal, livrar-se da responsabilização criminal pela morte de CECI CUNHA e seus familiares, pois deixou ele claro a MAURÍCIO GUEDES, o 'CHAPÉU DE COURO', que 'IMUNIDADE É PODER'."

Como se vê, a tese da acusação sempre partiu do pressuposto de que o motivo que teria levado TALVANE ALBUQUERQUE a contratar o assassinato de CECI CUNHA seria a obtenção do mandato de parlamentar federal. Em outras palavras, para o Ministério Público, o crime somente foi praticado contra CECI CUNHA em razão do cargo de Deputada Federal que esta detinha e para o qual havia sido reeleita e diplomada."

Como se depreende do techo da sentença de pronúncia transcrito o móvel do assassinato da deputada federal eleita Ceci Cunha foi justamente a busca por parte de um criminoso do cargo da vítima, o que lhe daria imunidade parlamentar e prerrogativa de foro. De fato, o próprio processo em que Tavane Albuquerque foi réu pela morte da sua companheira de coligação Ceci Cunha por um período de tempo tramitou no STF, por ser ele, pasmem, deputado federal (!), vaga que ele obteve à custa do sangue de sua própria vítima.

Podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que esse foi um crime praticado com o intento de fraudar a distribuição natural dos processos nos quais Tavane Albuquerque era réu (perdendo ele o cargo de deputado federal, não mais seria ele julgado no STF). Tavane Albuquerque chegou a ordenar mortes para que mantivesse seu foro privilegiado.

Podemos apenas imaginar que, com a adoção em nosso ordenamento com mais antecedência do princípio da perpetuatio jurisdictionis no processo penal, teria sido evitada a execução de Ceci Cunha, e de seu marido e parentes, pois ninguém teria motivo para reclamar sua cadeira de deputada se soubesse que as ações penais públicas não seriam deslocadas de foro. O próprio andamento da ação penal em face de Tavane Albuquerque e dos pistoleiros por ele contratados para o crime teria sido menos tumultuado (o feito passou pelo STF e pelas justiças estadual e federal de Alagoas) [15].

Outro caso que evidencia a necessidade de adoção do princípio da perpetuatio é o do ex-governador da Paraíba Ronaldo Cunha Lima.

Em 5 de dezembro de 1993 o então governador da Paraíba Ronaldo Cunha Lima, de acordo com seu próprio relato, entrou num restaurante de João Pessoa e encontrou Tarcísio Buriti, que o antecedeu no cargo. Cunha Lima então disparou duas vezes contra Buriti antes de ser contido. A vítima, ferida gravemente, passou alguns dias em coma, mas sobreviveu (só morreria em 2003).

A ação penal por tentativa de homicídio movida em face de Cunha Lima tramitou por diversas instâncias, até chegar pela primeira vez ao STF em 1995. O gabinete do Ministro Joaquim Barbosa, responsável pelo feito, elaborou o cronograma do andamento do feito até novembro de 2007 (às vésperas do que seria o julgamento de Cunha Lima, na Ação Penal 333) [16]:

1) Em 1º de junho de 1995, o processo foi distribuído ao Ministro MOREIRA ALVES, em razão da eleição do acusado RONALDO JOSÉ DA CUNHA LIMA para o cargo de Senador da República;

2) Em 13 de setembro de 1995, o Supremo Tribunal Federal solicitou ao Senado Federal licença para dar prosseguimento às investigações contra o Senador-acusado;

3) Em 16 de dezembro de 1999, o Senado respondeu ao pedido de licença, dizendo que o considerava prejudicado porque a Assembléia Legislativa já o indeferira anteriormente;

4) Em 20 de dezembro de 2001, foi aprovada a EC n° 35, que aboliu a necessidade de licença para abertura de processo contra membros do Congresso Nacional;

5) Em 1º de março de 2002, o então Relator Ministro MOREIRA ALVES determinou a notificação do acusado para apresentar a Resposta à denúncia;

6) Em 2 de abril de 2002, o réu foi efetivamente notificado para apresentar sua resposta preliminar, no prazo de 15 dias;

7) O acusado, ao apresentar sua Defesa Escrita, em 17 de abril de 2002, pediu expressamente ao Supremo Tribunal Federal "que se digne receber, como oferecida, a denúncia formulada pelo Ministério Público Federal" (grifo do original);

8) Em 28 de agosto de 2002, o Plenário do Supremo Tribunal Federal recebeu (grifo do original) a denúncia contra o acusado;

9) Em 25 de junho de 2003, o atual Relator do processo, Ministro JOAQUIM BARBOSA, é empossado no cargo de Ministro, e passa a substituir o Ministro MOREIRA ALVES na Relatoria da ação penal;

10) De agosto de 2003 até agosto de 2007, foram praticados todos os atos da instrução da ação penal (oitiva de testemunhas de acusação; oitiva de testemunhas de defesa; realização de perícias);

11) Em 22 de agosto de 2007, o Ministério Público Federal apresentou as suas alegações finais;

12) Em 6 de setembro de 2007, o Réu, por sua vez, apresentou suas alegações finais;

13) Em 20 de setembro de 2007, o Réu apresentou Questão de Ordem, na qual suscita a incompetência do Supremo Tribunal Federal para julgar a ação penal, sustentando ser o caso da competência do Tribunal do Júri;

14) Em 22 de outubro de 2007, o Relator faz juntar aos autos o seu Relatório e transfere os autos ao Gabinete do Revisor;

15) Em 23 de outubro de 2007, o Ministro Revisor despachou nos autos: "ESTOU DE ACORDO COM O RELATÓRIO DE FLS. 3.007/3.014. PEÇO DIA PARA JULGAMENTO";

16) Em 26 de outubro de 2007, a Ação Penal foi incluída em pauta;

17) Em 26 de outubro de 2007, o Ministro Relator lançou nos autos decisão relativa à Questão de Ordem formulada pela defesa após (grifo do original) as alegações finais: "TRATA-SE DE QUESTÃO DE ORDEM FORMULADA PELA DEFESA, NO SENTIDO DA INCOMPETÊNCIA DESTA CORTE PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO, TENDO EM VISTA A COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DO JÚRI PARA O JULGAMENTO DOS CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA. CONDUZIREI A ARGÜIÇÃO AO JULGAMENTO DO PLENÁRIO, PREVIAMENTE À ANÁLISE DO MÉRITO DO PRESENTE FEITO, COMO QUESTÃO PRELIMINAR. PUBLIQUE-SE". Desta decisão não foi interposto qualquer recurso;

18) Em 31 de outubro de 2007, o acusado renunciou ao mandato, alegando que desejava ser julgado pelo Tribunal do Júri da Comarca de João Pessoa;

19) Em 5 de novembro de 2007, foi chamada a julgamento a Ação Penal, oportunidade em que o Relator suscitou questão de ordem, no sentido do prosseguimento do julgamento, não obstante a renúncia do Réu. A sessão foi interrompida por pedido de vista da Ministra CARMEN LÚCIA; acompanharam o Relator os Ministros EROS GRAU, CARLOS BRITTO e CEZAR PELUSO.

20) Em 7 de novembro de 2007, dando prosseguimento ao julgamento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que deveria examinar, inicialmente, a questão de ordem relativa à competência. O Ministro Relator votou pela prevalência da competência do Supremo Tribunal Federal sobre o Tribunal do Júri; foi acompanhado pelos ministros EROS GRAU, Revisor, e CARLOS BRITTO, que adiantou seu voto. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do Ministro MARCO AURÉLIO.

No julgamento da questão de ordem referida no item 20 acima, em 2007, o STF veio a entender, por maioria de votos, que o fato do réu ter renunciado ao seu mandato tornava o Supremo incompetente para julgar a ação penal. Transcreveremos novamente o acórdão do STF que trouxemos na introdução deste trabalho, que tratava justamente de Ronaldo Cunha Lima:

"O réu, na qualidade de detentor do mandato de parlamentar federal, detém prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, onde deve ser julgado pela imputação da prática de crime doloso contra a vida. A norma contida no art. 5º, XXXVIII, da Constituição da República, que garante a instituição do júri, cede diante do disposto no art. 102, I, b, da Lei Maior, definidor da competência do Supremo Tribunal Federal, dada a especialidade deste último. Os crimes dolosos contra a vida estão abarcados pelo conceito de crimes comuns. Precedentes da Corte. A renúncia do réu produz plenos efeitos no plano processual, o que implica a declinação da competência do Supremo Tribunal Federal para o juízo criminal de primeiro grau. Ausente o abuso de direito que os votos vencidos vislumbraram no ato. Autos encaminhados ao juízo atualmente competente." (AP 333, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 5-12-07, DJE de 11-4-08).

A renúncia de Ronaldo Cunha Lima, e o entendimento do STF, fizeram com que o feito fosse remetido à primeira instância, na Paraíba. A instrução do feito já estava encerrada, e a ação estava pronta para ser julgada. Mas a ausência do princípio da perpetuação da competência no processo penal permitiu que uma ação penal importante, mormente pelo seu caráter educativo (o réu cometeu seu crime justamente sendo o governador de seu Estado), voltasse a tramitar na comarca onde ocorreu o delito [17] em 1993.

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Sobre o autor
Luiz Augusto Módolo de Paula

Procurador do Município de São Paulo, ex-procurador federal, advogado, bacharel e mestre em Direito Internacional pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Luiz Augusto Módolo. Da necessidade de uma nova regra para o foro privilegiado: a adoção do princípio da "perpetuatio jurisdictionis" no processo penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2934, 14 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19557. Acesso em: 2 nov. 2024.

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