No dia 1º de setembro de 2010, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por apertada maioria (6 votos a 4), decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 44 da Lei n. 11.343/06 (Lei de Drogas) que veda a aplicação de penas restritivas de direitos a pessoas condenadas pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Entendeu a Suprema Corte que a proibição das chamadas penas alternativas a traficantes viola o princípio da individualização da pena (HC n. 97256/RS, rel. Min. Ayres Britto, Informativo n. 598).
Com o devido respeito, discordamos desse entendimento.
Inicialmente é preciso lembrar que a própria Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XLIII, determina a punição mais rigorosa para autores de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo. Isso significa que o Constituinte brasileiro, ao elaborar a Constituição de 1988, analisou a dignidade do bem jurídico tutelado nesses crimes e a necessidade da tutela penal mais eficaz, pois atentam contra bens jurídicos mais importantes como vida, saúde pública, dignidade sexual, etc.
Foi na esteira desse dispositivo constitucional que os parlamentares aprovaram a Lei n. 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, que, no artigo 44, vedou a substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de direitos.
Estabelecida a premissa no aspecto da normatividade jurídica, necessário se faz uma breve menção à interpretação da lei penal e a melhor forma é a lógico-sistemática, pelo qual o intérprete procura descobrir os fundamentos jurídicos da norma em exame.
Segundo Bitencourt, essa espécie de interpretação "busca encontrar o verdadeiro sentido da lei, em seu aspecto mais geral, dentro do sistema legislativo, afastando eventuais contradições (...) Assim, busca-se situar a norma no conjunto geral do sistema que a engloba, para justificar sua razão de ser. Amplia-se a visão do intérprete, aprofundando-se a investigação até as origens do sistema, situando a norma como parte de um todo". 1
No mesmo sentido a lição de Carlos Maximiliano, quando afirma que "cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço. Confronta-se a prescrição positiva com outra da que proveio, ou que da mesma dimanaram; verifica-se o nexo entre a regra e a exceção, entre o geral e o particular, e deste modo se obtêm (sic) esclarecimentos preciosos". 2
Pois bem, adotando-se a interpretação lógico-sistemática, conclui-se que o artigo 44 da Lei de Drogas, que proíbe as penas restritivas de direitos, está em perfeita sintonia com o artigo 5º, XLIII da Constituição Federal que determina um tratamento mais rigoroso para os crimes ali elencados, dentre eles o tráfico ilícito de entorpecentes.
Por outro lado, no estudo dos crimes e das penas, importante lembrar a necessidade de o legislador infraconstitucional atentar para as determinações e indicações feitas pela Constituição. Em outras palavras, os preceitos estabelecidos na Constituição devem ser concretizados pelo legislador ordinário com a produção de leis penais, pois só assim os valores dignificados pelo Constituinte estarão devidamente protegidos.
Destarte, "se a Constituição e esse Estado Democrático de Direito abrem-se para transformações políticas, econômicas e sociais, a lei, inclusive a penal, como expressão do direito positivo, deve apresentar-se como corolário deste conteúdo constitucional". 3
Assim, onde o legislador constitucional aponta expressamente a necessidade de uma intervenção penal mais rígida, o legislador ordinário tem a obrigação de agir em conformidade com o preceito da Lei Maior. E foi o que se fez com a Lei de Drogas, especialmente no tocante à proibição das penas alternativas.
Por isso, quer sob a ótica das teorias do bem jurídico, quer sob a ótica da interpretação lógico-sistemática, a Lei 11.343/06 está em perfeita consonância como texto constitucional, não havendo que se falar em inconstitucionalidade.
De outra banda, não se descuida que os princípios constitucionais sempre devem ser observados na elaboração e na aplicação das leis, mas pensamos que o princípio da individualização da pena não pode ter a dimensão dada pela Suprema Corte. Idealizado para combater o arbítrio judicial dos tempos medievais, no qual o sistema penal não estabelecia limites e o juiz aplicava a pena que bem entendesse, esse princípio ganhou corpo no Código Penal francês de 1810, que fixou limites mínimos e máximos de pena para cada crime, dentre os quais o juiz devia ater-se para os casos concretos. No Direito Penal moderno, essa individualização ocorre em três momentos distintos: a) na fase legislativa, quando se cria um tipo penal, comina-se penas mínima e máxima e se estabelecem benefícios ou situações agravantes aos autores de crimes; b) na fase judicial, quando o juiz aplica a pena a cada um dos condenados, individualmente, nos parâmetros previstos em lei; c) na fase executória quando se decide sobre o modo como cada condenado irá cumprir sua pena. 4
Tratando especificamente da individualização da pena, o artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal dispõe: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.
Nota-se que a Lei Maior não determina que as penas sejam cominadas indistinta e cumulativamente para todos os crimes, mas atribui ao legislador a tarefa de estabelecer qual ou quais delas devam ser cominadas para cada tipo de delito.
Ao elaborar a Lei de Drogas, o legislador seguiu os parâmetros da Constituição, estabelecendo regras bem definidas para a individuação da sanção, pois fixou penas mínimas e máximas, criou causa de redução de penas para pequenos e eventuais traficantes e vedou as penas alternativas que normalmente são permitidas a autores de crimes menos graves como, por exemplo, furto e estelionato.
Por outro lado, inconsistente o argumento de que "há traficantes e traficantes", no sentido de que a lei não pode tratar igualmente os mais diferentes comerciantes de drogas. Primeiro, porque para os grandes traficantes, basta um tratamento mais rigoroso, com fixação de penas maiores (dentro dos limites cominados de 5 a 15 anos), deixando à margem a "política da pena mínima", adotada de forma majoritária pelo Judiciário brasileiro.5 Segundo, porque ao mesmo tempo em que a lei proíbe alguns benefícios, prevê a redução de até 2/3 da pena para pequenos e eventuais traficantes (art. 33, § 4º). Como se vê, a própria lei procurou dar um tratamento diferenciado para grandes e pequenos traficantes, atendendo aos ditames dos princípios da proporcionalidade e da individualização.
Não bastasse isso, a proibição de penas alternativas a autores de determinados crimes não é novidade no nosso ordenamento jurídico, pois o artigo 44, I, do Código Penal também veda a aplicação das penas alternativas nos crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. Assim, em um roubo simples tentado, com pena inferior a 04 anos de reclusão, o agente não terá direito à pena alternativa porque praticou crime mediante o emprego de grave ameaça. E, curiosamente, essa restrição do Código Penal para crimes menos graves do que os hediondos e o tráfico ilícito de entorpecentes não tem sido apontada como ofensiva ao princípio da individualização da pena.
Por isso, cremos que o artigo 44 da Lei de Drogas nada mais fez do que ampliar a restrição existente no artigo 44, I, do Código Penal.
Concluindo, cumpre lembrar que a Constituição Federal, no artigo 5º, XLIII, buscou proteger o cidadão e a sociedade dos crimes de maior gravidade, razão pela qual o intérprete e o aplicador do Direito devem "atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a espécie a favor, e não em prejuízo de quem ela evidentemente visa proteger" 6. Com isso, a sociedade almeja que os agentes do Direito ajam com fundamento na Constituição e nas leis ordinárias, mas não se esqueçam da repercussão social de suas decisões e que não apenas os autores de crimes, mas todos os cidadãos são detentores dos direitos fundamentais.
Notas
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Geral. 15. ed. São Paulo, Saraiva, 2010, v. 1
Hermenêutica e aplicação do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 128-9
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 47.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Geral. 15. ed. São Paulo, Saraiva, 2010, v. 1, p. 661
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 7. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 366, nota 2 ao artigo 59.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 156.