O atual diploma processual penal nacional é, indubitavelmente, um código autoritário, que está em descompasso com o tão almejado sistema acusatório, instituído pela Constituição Federal de 1988. Com inspiração ditatorial – para não dizer fascista –, foi promulgado em 1941, sob a égide da outorgada Constituição Polaca de 1937, a qual tentava dar respaldo ao "Estado Novo" de Getúlio Vargas. Cópia do Código Rocco-Manzini, da Itália de 1930, foi estruturado, originariamente, sob os pilares do Sistema Inquisitório. [01]
Nesse contexto, nota-se que a ausência de uma Constituição promulgada e a atuação firme do braço armado do Exército e dos aparelhos de Polícia da época foram marcantes na elaboração do CPP. Nem mesmo o tratamento do Inquérito Policial logo no seu início (art. 4º, do CPP), se fez com qualquer preocupação prévia com os direitos e garantias da pessoa do indiciado.
Ciente disso, o Projeto do novo CPP, elaborado por Comissão de juristas nomeada pelo Senado Federal, de relatoria do Professor Eugênio Pacelli de Oliveira, para além de uma melhor sistematização e atualização do direito processual penal brasileiro, tem o mérito de priorizar aspectos constitucionais, estando alicerçado sob a base dos direitos fundamentais e do sistema acusatório. Dentre as inovações constantes da redação final do PLS 156/09, aprovado pelo Senado e encaminhado no início desse ano à Câmara dos Deputados, uma das mais significativas vem tratada logo no início do Projeto do novo código (artigos 14 a 17), e diz com a – já experimentada em outros países – figura do "Juiz das garantias".
Segundo reza a regra contida no caput do art. 14, do PLS 156/09, esse "Juiz das garantias" será responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário. A justificativa para a criação do "Juiz das garantias" é a de acabar com as negativas conseqüências geradas quando se aliam os juízes que são instados a atuar na fase da investigação e os delegados de polícia, perdendo-se a isenção e a imparcialidade imprescindíveis para que posteriormente possam atuar na fase processual, decidindo o mérito de processos criminais [02].
Nesse ponto, importante observar que se distinguem, claramente, duas fases da persecução criminal: a fase de investigação e a fase processual. Aquela é uma fase não processual, dispensável, conduzida pela autoridade policial e que tem por único objetivo colher indícios de autoria e de materialidade para o fim de formar a opinio delicti do titular da ação penal. Esta, por seu turno, é uma fase judicial, conduzida por um Juiz imparcial e imprescindível para que o Estado possa exercer o seu poder de punir.
Ocorre que a Constituição da República exige, já na fase de investigação, que determinadas medidas sejam objeto de apreciação jurisdicional, notadamente aquelas que violam bens jurídicos fundamentais. Como exemplo, cita-se a necessidade de ordem escrita e fundamentada do Juiz para que alguém que não esteja em flagrante possa ser preso (art. 5º, LXI), a necessidade de prévia autorização judicial para viabilizar uma interceptação telefônica (art. 5º, XII) [03] etc..
No sistema atual, toda e qualquer participação do Juiz durante a fase de investigação o torna prevento para futura ação penal (art. 83, do CPP [04]). Para além de romper com a (falta de) lógica da prevenção, o Projeto de Código, ao criar a figura do "Juiz das garantias", quer impedir que o Juiz que tenha atuado durante essa primeira fase da persecução penal venha a também atuar na fase processual.
Trata-se de uma forma de proteger a imparcialidade do Juiz e dar efetividade ao tão almejado sistema acusatório (garantia que consta expressamente no caput do art. 4º, do PLS 156/09), próprio do modelo de Estado Democrático de Direito. Com efeito, o juiz, chamado a intervir no inquérito policial [05], ficará impedido de julgar o caso (art. 16, do PLS 156/09) [06].
Diferentemente do que pensam alguns, como Barros Filho [07], a previsão de um "Juiz das garantias" não tem o condão de abolir ou substituir o Inquérito Policial, tampouco retirar do Delegado de Polícia a sua presidência. Não se trata de um Juiz do Inquérito Policial, mas um Juiz que vai atuar na fase de investigação criminal, a qual continua sob a presidência da autoridade policial.
O que pretende o projeto de lei é dividir a função que atualmente é do Juiz criminal, de maneira que a imparcialidade, indispensável quando se busca um julgamento conforme as garantias processuais do acusado, seja observada com mais evidência. Nesse sentido, Amorim de Freitas [08], afirma que:
A alteração legislativa é digna de aplauso, na medida em que promove a compatibilização entre as garantias dos acusados e a determinação judicial atinente às medidas investigatórias com a isenção e imparcialidade no que respeita ao julgamento da correspondente ação penal, purificando o processo de julgamento.
A despeito de respeitável entendimento em sentido contrário, é inegável que o Juiz que, de qualquer modo, interveio no Inquérito Policial, deferindo uma busca e apreensão, autorizando uma interceptação telefônica, decretando uma prisão preventiva ou uma prisão temporária, por exemplo, está psicologicamente contaminado. Tendo firmado, ainda que no seu íntimo, convencimento acerca da responsabilidade do acusado, está o Juiz – ainda que minimamente – tocado pelo vício da parcialidade.
Merece destaque a lição de Gomes [09]:
A preocupação central dessa proposta, digna de encômios, reside no respeito ao princípio acusatório assim como na preservação da imparcialidade do juiz do processo. Por força do princípio acusatório o juiz que investiga ou que monitora a investigação não pode julgar a causa. O juiz que investiga fica "contaminado", isto é, perde sua imparcialidade, compromete-se psicologicamente com a investigação. Nesse mesmo sentido muitos países (Espanha, França, Estados Unidos etc.) têm promovido recentes reformas na sua legislação (com o escopo de preservar a imparcialidade judicial na fase contraditória).(...)Quem se posiciona no sentido de que "o projeto significa um evidente atraso legislativo, apequenando, sem qualquer propósito, as funções dos juízes que passam a não mais buscar a verdade dos fatos e contentando-se com a produzida ou orquestrada pelas partes, em prejuízo ao próprio Estado de Direito" (Fausto de Sanctis), não tem a exata noção de qual é a posição do juiz brasileiro na fase de investigação. O juiz que "busca a verdade dos fatos", sobretudo na fase investigatória, perde completamente sua imparcialidade e, claro, não pode presidir a fase processual (propriamente dita), sob pena de nulidade absoluta.
Ainda sobre contaminação do Juiz que atua na fase da investigação, são irretocáveis as palavras deZanóide de Moraes [10]:
Quem é capaz de negar que um magistrado atuante na fase de investigação já forme sua convicção desde esse primeiro instante, sendo, não raras vezes, irrelevante a fase judicial? Com a separação na atuação judicial, conforme projetado, garante-se de forma muito mais efetiva o devido processo legal, o contraditório, o direito à prova e a presunção de inocência. Tudo porque se criou um novo sistema que assegura uma maior imparcialidade judicial e, com isso, uma maior isenção psicológica do magistrado no momento de julgar a causa. Por isso se dizer que o juiz das garantias dá maior efetivação ao princípio acusatório determinado constitucionalmente. Porque o juiz que atua na fase da investigação, embora com funções distintas, psicologicamente muito se aproxima da figura do Ministério Público, órgão cuja função é, examinando o material investigativo, analisar se tem fundamento idôneo ou não para acusar. Necessário pararmos com uma clara violação da presunção de inocência, que, por determinação constitucional, deveria orientar o juiz no curso de toda a causa. Ao se impor, nessa nossa atual legislação, que ele atue tanto em fase investigativa quanto judicial, exige-se do magistrado um comportamento inumano. Exige-se que possua uma capacidade de abstrair suas experiências anteriores com a causa (fase de investigação), para analisar se aquilo que ele "ajudou" a produzir é idôneo para acusar e, em momento apenas cronologicamente posterior, é suficiente para condenar. Ao se determinar essa atuação dúplice ao juiz, estamos empurrando-o para uma (imperceptível e psicologicamente) inexorável presunção de culpa, porquanto o magistrado assim pensa: "entendi que havia elementos para investigar e para acusar legitimamente uma pessoa, portanto, a tendência em condená-lo somente será revertida se ele (ou a sua Defesa) demonstrar que eu errei ou que desconhecia elementos a serem apresentados em juízo, caso contrário (caso não prove sua inocência, aqui está a presunção de culpa), será mantida a convicção que já possuo e já formei desde o início"; convicção imutável que passa ao magistrado um impressão (falsa) de coerência e que reforçará na sua psique o dito "encontro da verdade real" (que, para os mais religiosos, é um encontro com a "Verdade").
A propósito, criticando o critério da prevenção, como norma que desrespeita o direito fundamental processual à imparcialidade do Juiz, Cardoso [11] afirma que:
Nesse contexto, não existe processo justo, em que se respeita a garantia fundamental do homem. A imparcialidade do julgador fica debilitada com a aplicação da regra prevista no art. 83 do Código de Processo Penal, que permite uma relação do juiz, julgador da futura ação penal, com a produção de provas promovida pelo acusador, seja ele o presentante do Ministério Público ou autoridade da Polícia Judiciária, sem que seja exercido o contraditório para que as provas possam ser contraditadas ou debatidas. (....) O contato prematuro do julgador com provas unilaterais, inquestionavelmente, gera em seu subconsciente a certeza sob aquela imputação, traçando na cabeça do magistrado uma construção histórica do fato delituoso baseado apenas em provas acusatórias, e que na fase judicial, provavelmente terá seu convencimento formulado, tendo em vista que irá reproduzir seu conhecimento forjado nas provas unilaterais. Nesse contexto, o processo passa a ser um jogo de cartas marcadas, em que a defesa fará o papel de mero coadjuvante e legitimador de condenações, tendo em vista que teoricamente não pode existir processo sem contraditório e ampla defesa. O ordenamento jurídico brasileiro, sob a égide constitucional não permite a existência de um processo penal inquisitorial em desconformidade com a Constituição Federal de 1988, e o mais importante é que não basta existir um processo penal constitucional formal, é imprescindível que seja aplicado efetivamente os princípios garantidores de um processo democrático em conformidade com a Carta Magna brasileira e, para isso, primeiramente é necessário o respeito absoluto da imparcialidade dos julgadores. Sem a presença da imparcialidade, toda e qualquer garantia Constitucional fica inviabilizada, desterrando o processo penal democrático respeitador dos direitos do homem.
Indubitavelmente a distinção das funções do "Juiz das garantias" e do "Juiz do processo" é salutar, sendo sua efetivação mais um passo dado em busca das garantias do devido processo legal, da imparcialidade do Juiz e da presunção de inocência, corolários inafastáveis do modelo acusatório constitucional.
Ao passo que as competências do "Juiz das garantias" foram detalhadas nos incisos do art. 14, do PLS 156/09 [12], em relação aos crimes de competência originária dos tribunais, as funções do "Juiz das garantias" deverão ser exercidas por um membro do tribunal, escolhido na forma regimental, que ficará impedido de atuar no processo como relator (art. 314, I, do PLS 156/09 [13]).
Nesse momento, por oportuno, convém distinguir a figura do "Juiz das Garantias" (inovação do Projeto de Código) da já existente função do Juiz das Varas de Inquérito Policial, experiência já vivenciada em algumas comarcas do país. Nesse ínterim, de forma precisa CARLOS Zamith Jr. [14] ressalta que
(...) é preciso ter claro que o juiz das garantias difere do juiz das varas de inquérito policial, hoje instituídas em algumas capitais, como São Paulo e Belo Horizonte. É que o juiz das garantias deve ser compreendido na estrutura do modelo acusatório que se quer adotar. Por conseguinte, o juiz das garantias não será o gerente do inquérito policial, pois não lhe cabe requisitar a abertura da investigação tampouco solicitar diligências à autoridade policial. Ele agirá mediante provocação, isto é, a sua participação ficará limitada aos casos em que a investigação atinja direitos fundamentais da pessoa investigada. O inquérito tramitará diretamente entre polícia e Ministério Público. Quando houver necessidade, referidos órgão dirigir-se-ão ao juiz das garantias. Hoje, diferentemente, tudo passa pelo juiz da vara de inquéritos policiais. Impende salientar que o anteprojeto não se limitou a estabelecer um juiz de inquéritos, mero gestor da tramitação de inquéritos policiais. Foi, no ponto, muito além. O juiz das garantias será o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais.
Especificando suas funções, aduz ainda GOMES [15] que:
O juiz das garantias (projetado), de outro lado, não tem nada a ver com o juiz ou juizado de instrução (da Espanha e França, v.g.). O juiz das garantias não vai presidir o inquérito policial. A presidência do inquérito continua com a polícia, em regra. Não se pode ignorar que a atual jurisprudência do STF vem validando as investigações feitas pelo MP isoladamente. O juiz das garantias, precipuamente, vai cuidar da sua legalidade assim como do respeito aos direitos e garantias fundamentais do indiciado ou suspeito. A figura do juiz das garantias não extingue o inquérito policial ou outro procedimento investigatório (levado a cabo por quem de direito, de acordo com a lei – CPP atual, art. 4º, parágrafo único; novo CPP, art. 18, § 2º). (....) O juiz das garantias, como se vê, não é o "juiz do inquérito", que terá tramitação normal, sem a interferência desse juiz, salvo para resguardar os direitos e garantias individuais. Ele será o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais relacionadas com a tutela imediata e direta dessas garantias. Com isso, o que se conquista é o distanciamento do juiz do processo (do juiz que vai presidir o posterior processo criminal). Na Itália (Código de Processo Penal de 1988) chegou-se a estabelecer um juiz distinto daquele que investiga para deferir ou não a abertura do processo. O projeto do novo CPP não chegou a tanto, deixando nas mãos do juiz das garantias essa tarefa. De qualquer modo, o avanço civilizatório (e de respeito às garantias fundamentais do suspeito ou indiciado) é digno de relevo.
No plano teórico e acadêmico, portanto, essa inovação trazida pelo Projeto de Código é vista com muito bons olhos pela quase unanimidade da doutrina. A resistência e desconfiança, entretanto, pairam sobre as reais possibilidades de implementação dessa previsão diante da atual realidade jurídica, política e econômica do Brasil.
Como voz pessimista na doutrina que trata sobre o assunto, BORGES [16], é enfático ao negar a viabilidade prática de criação desse novo ator processual, aduzindo que:
É, por assim dizer, um juiz inserido num contexto pré-processual, figura que se traduz em novidade impraticável num país com as dimensões territoriais e as premências sociais do Brasil. A criação dessa nova figura atesta o conhecimento e a preocupação do legislador com as misérias do processo penal, mas é preciso considerar que, uma vez instituída, servirá somente às grandes cidades brasileiras, não só porque encontramos nesse ambiente a mais pujante criminalidade, mas porque existe uma tendência de o nosso legislador e de nossas instituições prestigiarem os grandes centros urbanos, deixando as comunidades do interior distante sob o pálio do esquecimento. Vale dizer, uma vez instituído, o juiz de garantias há de ser um juiz das metrópoles, e será mais um produto da imaginação fértil do nosso legislador, que pretende erguer no seio do nosso ordenamento jurídico uma torre de alto custo e, convenhamos, absolutamente desnecessária ao processo penal pátrio. De fato, o legislador parece ignorar a realidade brasileira e até finge desconhecer a natureza humana. Afinal, haverá alguma diferença intrínseca entre um "juiz de garantias" e o juiz que atua nos moldes da legislação atual? Evidente que não. Certamente, um juiz de garantias pouco sensato (o juiz insensato é equivocadamente equiparado pelos tolos ao juiz rigoroso) determinará ou confirmará a realização de prisões e atos dentro do inquérito muitas vezes desnecessários.
O próprio Conselho Nacional de Justiça, na Nota Técnica nº 10 [17], elucida os riscos da adoção do modelo de "juiz das garantias", considerando as limitações da estrutura judiciária brasileira, ao afirmar que:
O Projeto, preocupando-se com a consolidação de um modelo acusatório, institui a figura do ‘juiz das garantias’, que será o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais, sob duas preocupações básicas, segundo a exposição de motivos, a saber: a de otimizar a atuação jurisdicional criminal e a de manter o distanciamento do juiz incumbido de julgar o processo. Contudo, a consolidação dessa ideia, sob o aspecto operacional, mostra-se incompatível com a atual estrutura das justiças estadual e federal. O levantamento efetuado pela Corregedoria Nacional de Justiça no sistema Justiça Aberta revela que 40% das varas da Justiça Estadual no Brasil constituem-se de comarca única, com apenas um magistrado encarregado da jurisdição. Assim, nesses locais, sempre que o único magistrado da comarca atuar na fase do inquérito, ficará automaticamente impedido de jurisdicionar no processo, impondo-se o deslocamento de outro magistrado de comarca distinta. Logo, a adoção de tal regramento acarretará ônus ao já minguado orçamento da maioria dos judiciários estaduais quanto ao aumento do quadro de juízes e servidores, limitados que estão pela Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como no que tange ao gasto com deslocamentos e diárias dos magistrados que deverão atender outras comarcas. Ademais, diante de tais dificuldades, com a eventual implementação de tal medida haverá riscos ao atendimento do princípio da razoável duração do processo, a par de um perigo iminente de prescrição de muitas ações penais. Também é necessário anotar que há outros motivos de afastamentos dos magistrados de suas unidades judiciais, como nos casos de licença, férias, convocações para Turmas Recursais ou para composição de Tribunais.
Não concordamos com esses argumentos. Com a devida vênia, trata-se de uma visão reducionista, para não dizer simplista, incrédula da necessidade premente de salvaguardar os direitos fundamentais do cidadão, dentre eles o modelo acusatório determinado constitucionalmente.
Reza o art. 17, do PLS 156/09, que "O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal.". Além disso, prevê o art. 748, inciso I, do PLS 156/09 [18] que a regra de impedimento contida no art. 16, do Projeto, não entrará em vigor, quando se tratar de Comarca onde houver apenas um Juiz, enquanto não houver alteração da lei de organização judiciária.
Considerando as condições orçamentárias, a extensão territorial brasileira e a forma de investidura à carreira da Magistratura, a viabilização de no mínimo dois juízes por Comarca de fato é algo problemático em curto prazo. Ignorar esta questão não ajuda a superá-lo. No entanto, acredito sinceramente que a vontade política, aliada a um trabalho sério de planejamento e reestruturação organizacional, será suficiente para que, ao menos inicialmente, se possa com eficiência implementar a figura do "Juiz das garantias".
Em Comarcas maiores (com dois juízes ou mais) não se terá, obviamente, o problema da falta de Juízes, bastando readequar a lei de organização judiciária de cada Estado. Como alternativa bastante simples e plausível, sugere-se que um seja o "Juiz das garantias" nos processos em que o outro Juiz da Comarca atuar como Juiz do processo. Nas Comarcas onde houver apenas um Juiz (segundo levantamento do CNJ aproximadamente 40%), conquanto possam os Tribunais de Justiça enfrentar um pouco mais de dificuldade, pode-se superar este fato com a alteração de suas normas de organização judiciária, seja disciplinando novas formas de substituição, seja criando a figura de um "Juiz de garantias" regional, tudo isso para que seja observada a já mencionada regra de impedimento do Juiz que atuou na fase da investigação (art. 16, do PL 156/09).
Assim, embora se reconheça que a realidade econômica e a extensão territorial entre algumas cidades (mais de cem quilômetros entre elas) de Estados como o do Acre, do Amazonas, do Pará, de Rondônia, de Roraima etc., poderá inviabilizar (pelo menos até que sejam investidos novos juízes na carreira) a implementação desse novo ator processual, não podemos tornar a exceção uma regra e fazer disso um empecilho ao direito fundamental dos milhões de brasileiros que terão já de imediato fortificadas suas garantias ao devido processo legal.
A propósito, destaca-se o seguinte trecho constante da Exposição de Motivos do Projeto: "Evidentemente, e como ocorre em qualquer alteração na organização judiciária, os tribunais desempenharão um papel de fundamental importância na afirmação do juiz das garantias, especialmente no estabelecimento de regras de substituição nas pequenas comarcas. No entanto, os proveitos que certamente serão alcançados justificarão plenamente os esforços nessa direção".
Também otimista quanto à viabilidade de criação do "Juiz das garantias", Maya [19] assim se manifesta:
A adoção de um juizado de garantias, de fato, mexe com a estrutura do Poder Judiciário brasileiro. Como criar um juiz de garantias em um país onde quase 4.000 comarcas são compostas por varas judiciais únicas, ou seja, têm apenas um juiz? Esse é o argumento "oficial" daqueles que se opõem ao instituto em questão. Mas não é, sabemos, o verdadeiro motivo pelo qual órgãos representativos, como a AJUFE, são contra o juiz de garantias. A figura de um juiz de garantias competente para assegurar a legalidade da investigação criminal e tutelar os direitos fundamentais dos investigados, ao afastar da fase pré-processual o magistrado competente para julgar o processo, retira dele Poder. Sim, retira dele o controle sobre o direcionamento da investigação, e isso mexe com alguns juízes, em especial com aqueles imbuídos de um espírito justiceiro. Ora, imaginemos afastar esse juiz do acordo de delação premiada!? Imaginemos deixá-lo sem acesso à interceptação telefônica!? Impossível… esse juiz, para fazer "justiça" (e vejam que a inicial minúscula é proposital) precisa investigar, pois a investigação, para ele, nada mais é do que a busca de provas necessárias para comprovar uma hipótese (culpabilidade) já desenhada no seu imaginário – primado da hipótese sobre os fatos. O Ministério Público, para esse magistrado, não passa de uma figura necessária para que ele possa, ao final, fazer "justiça". Não é um órgão capaz de, por si só, controlar a investigação e colher provas aptas a amparar um futuro juízo condenatório. Ele não confia no promotor… aliás, melhor seria que não houvesse o promotor, e que ao juiz fossem dados amplos poderes, para investigar e julgar, ou melhor, investigar e condenar (porque, nesses casos, a condenação é que é a garantia). Daí o adjetivo perigoso, a caracterizar a figura do juiz de garantias, como ouvi de um magistrado um dia desses. É perigoso porque subtrai Poderes dos juízes, é perigoso porque torna o processo penal um pouco mais democrático; e democracia, para alguns juízes, parece ser um conceito ainda muito novo… Seguindo essa linha, espero, sinceramente, que o processo penal torne-se cada vez mais perigoso…
Compartilhando desse entendimento, Gomes [20] afirma que:
Ainda que haja dificuldade para a implementação dessa novidade, todo esforço deve ser feito para que ela se concretize irrestrita e prontamente em todo país. Claro que alguns tribunais alegarão razões orçamentárias para não se implantar o juiz das garantias, mas quem acha que isso representa um alto custo é porque ainda não parou para quantificar o prejuízo que vem causando o sistema atual, que tem dado ensejo a muitos e exorbitantes abusos (que geram nulidades), sem contar o desprestígio para a própria justiça criminal (que é posto em relevo pela mídia, influenciando a percepção negativa da população quanto ao funcionamento da Justiça). Nada disso, evidentemente, contribui para o aprimoramento do nosso Estado constitucional e humanista de direito, fundado na legalidade, constitucionalidade e convencionalidade do seu ordenamento jurídico.
Também engajado na criação desse novo ator processual, Lopes Jr. [21] afirma que:
Em relação ao juiz das garantias, na ausência de argumentos juridicamente sustentáveis (ao menos para os que superam o conhecimento epidérmico do processo penal), emprega-se o reducionismo retórico da "falta de...". Ora, a falta é constitutiva e sempre existirá, sendo este um argumento reducionista. Uma reforma de verdade exige, principalmente, mudanças de cultura e de estruturas. Cabe ao Estado (daí a necessidade de comprometer também os poderes legislativo e executivo para o judiciário poder dar conta) estruturar-se para atender à nova realidade. A existência de um período de transição (o de 6 anos proposto para as comarcas únicas é muito longo), permitirá suprir as deficiências materiais e pessoais. Além disso, diversas medidas podem contribuir para a implantação do novo modelo, como o estabelecimento de um rodízio entre os juízes (para que ninguém se sinta um subjuiz por só atuar na investigação preliminar), o alargamento da competência do juiz das garantias (na organização judiciária de cada Estado) para que ele também atue no JECrim, na vara de família etc., não sobrecarregando os demais; a regionalização do juiz das garantias (em comarcas pequenas, um juiz para atender as cidades próximas, até que seja superado o problema das comarcas únicas).
Sintetizando e refutando as críticas à nova previsão, Zanóide de Moraes [22] assim argumenta:
As críticas ao instituto do "juiz das garantias" caminham em dois sentidos: o primeiro é que ele é desnecessário, porque já há juízes que garantem os direitos do investigado; o segundo, é que o Poder Judiciário, tanto no âmbito federal quanto estadual, não possui condições orçamentárias para assegurar ao menos dois juízes em cada seção judiciária ou comarca do território nacional. A resposta a primeira crítica é fácil, porque ela está totalmente desfocada. Com o juiz das garantias não se assegura apenas os direitos do cidadão no curso da investigação e o aperfeiçoamento dessa fase da persecução penal, mas, para além e acima disso (que realmente já são, mal ou bem atendidos), está a garantia de melhor isenção do juiz que julgará a causa, logo, uma maior garantia de que toda aquela plêiade de direitos fundamentais será melhor e mais tecnicamente assegurada. O juiz das garantias não está sendo inserido para melhorar a participação judicial em fase investigativa, mas para assegurar que ao juiz da causa não se imporá mais a exigência inumana do atual sistema de ele não poder se contaminar ou se influenciar ou não estar vinculado com os atos por ele mesmo praticados em fase persecutória anterior. Com o juiz das garantias, caminha-se para um juiz da causa mais imparcial, pois a princípio e de modo sistêmico, ele não estará mais ligado às suas próprias decisões anteriores. À segunda critica, de fundo dito "prático", pois falta condição orçamentária para assegurar ao menos dois juízes em cada local do território nacional, o PLS 156/2009 já deu uma resposta satisfatória. Está previsto no art. 701 do PLS 156/2009 (Livro – Das Disposições Transitórias e Finais) que a regra que trata do impedimento do juiz das garantias atuar como juiz da causa em cuja investigação tenha participado (art. 16) somente "entrará em vigor no prazo de 3 (três) anos após a publicação deste Código, e em 6 (seis) anos, se se tratar de comarca onde houver apenas 1 (um) juiz". Logo, para a adaptação das estruturas organizacionais do Poder Judiciário haverá uma ´vacatio legis´ maior e especifica para o juiz das garantias. Afirmar que no prazo projetado, ou em outro a ser definido, não é possível se preparar uma nova organização para efetiva implementação de direitos fundamentais é confessar não uma insuficiência de recursos, mas uma vontade política de não mudar. (....) Basear uma crítica na atual falta de recursos, como se essa realidade isentasse de obrigação ou de responsabilidade de cumprir o prometido na Constituição a curto ou médio prazos (não esqueçamos que a Constituição já tem mais de 20 anos), não serve sequer para oferecer desculpas aos cidadãos pela continuidade desse caos no sistema criminal atual. Também não será argumento razoável ou aceitável pelas Cortes Internacionais de Direitos Humanos ou pela Comunidade Internacional se continuarmos a ser condenados politicamente por esses organismos. Em verdade, negar uma evolução ao sistema, mesmo a médio prazo, em razão da atual falta de recursos não é ter um argumento minimamente razoável, é esconder, por detrás dessa atual insuficiência, uma verdadeira intenção de "mudar o sistema desde que tudo fique como está"!!!!
Merece uma ressalva, todavia, a referência ao art. 701 e aos prazos de 3 (três) e 6 (seis) anos para criação do "Juiz das garantias", constante dos dois últimos trechos acima transcritos. Ocorre que o Presidente do Senado, José Sarney, apresentou em sessão de 30/11/2010, uma emenda ao texto original do PLS 156/09, aprovada pela Comissão Especial Temporária, a qual transformou o art. 701 no atual art. 748, I, do Projeto. Pelo que se nota, infelizmente não há mais previsão de prazo de vacatio legis para a implementação da figura do "Juiz das garantias", deixando o legislador ao bel prazer dos administradores a necessária alteração da legislação organizacional. Diante dessa mudança, sabe-se lá, então, quando teremos a atuação do "Juiz das garantias" em todas as comarcas do Brasil.
Por fim, oportuno lembrar que em seu art. 15, o PLS 156/09 [23] ressalva a atuação do "Juiz de garantias" nas infrações de menor potencial ofensivo. Ao que tudo indica, a justificativa é a de que a apuração desses crimes segue o rito da Lei 9.099/95, que, como regra, substitui o Inquérito Policial pela elaboração de um Termo Circunstanciado. A nosso ver, trata-se de um deslize grave do legislador, pois olvida que o Inquérito Policial é apenas uma das formas de investigação criminal. Ora, se a intenção é impedir a vinculação psicológica do Juiz que atua na fase pré-processual e purificar o julgamento da ação penal, nos parece óbvia a necessidade de também aqui atuar a figura do "Juiz das garantias" e fazer valer a regra de impedimento contida no art. 16, do PLS 156/09.
Por tudo que foi dito, temos a convicção de que esse distanciamento de funções, com a criação de um "Juiz das garantias", que atuará exclusivamente na fase das investigações, vem ao encontro do modelo acusatório, determinação da Constituição Federal e corolário do Estado Democrático de Direito. Não podemos nos aprisionar em paradigmas medievais, fascistas ou inquisitoriais, como queiram. Precisamos de uma superação prática, e não apenas teórica. Devemos aplaudir e incentivar toda e qualquer reforma que venha garantir os direitos fundamentais e robustecer o sistema acusatório, eliminando qualquer resquício que possa levar a uma identificação dos nossos juízes aos antigos clérigos inquisidores da Idade Média.
E, nesse sentido, a idéia de um "Juiz das garantias" é uma tendência salutar que demonstra ser um satisfatório método para evitar a contaminação e os pré-julgamentos. De fato, esse novo modelo é muito bem vindo. Entretanto, devemos favorecer um sistema de garantias que realmente funcione. Para tanto, eficientemente se espera uma indispensável reforma não só administrativa, mas principalmente uma mudança cultural, de postura e mentalidade na disposição do Poder Judiciário. Espera-se, sinceramente, que mais essa garantia não se inviabilize pela complacência do Poder Judiciário enquanto prestador de serviço público e garantidor dos direitos fundamentais.