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O "jus puniendi" e a dignidade humana do preso: o desrespeito à Lei de Execução Penal

06/09/2011 às 10:57
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O poder estatal descumpre sistematicamente todos os preceitos cominados pela Constituição e especialmente pela Lei de Execução Penal.

INTRODUÇÃO

O desrespeito à Lei de Execução Penal é, sem dúvidas, um tema que causa grande discussão entre os operadores do Direito, o Estado e toda sociedade civil.

Atualmente é inquestionável a ingerência estatal e, por isso, faz-se necessário analisar o indivíduo infrator penal como ser humano, dotado de dignidade e merecedor da tutela do Estado. A partir desse raciocínio, surge a compreensão de que a pena não é um limitador incondicional dos direitos do preso sendo, portanto, necessário que o Estado respeite determinados limites quanto ao seu poder de punir.

Dessa forma, a Lei de Execução Penal é um meio pelo qual o Estado pauta suas condutas, estabelecendo com o preso uma relação de direitos e deveres mútuos, com o intuito de alcançar um fim especifico, ou seja, a reintegração social do apenado.

Contudo, infelizmente, essa prática não corresponde à realidade, que se mostra injusta e fria, pois a pena muitas vezes ultrapassa todos os limites.


1 A DIGNIDADE HUMANA

1.1 A DIGNIDADE HUMANA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

Na visão de Immanuel Kant (apud, LEMOS, 2007, p.23), o ser humano é dotado de total autonomia, não podendo a ele, de forma alguma, ser atribuído um valor, pois

no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade

É a partir deste raciocínio que nasce a compreensão de dignidade humana, "o Homem como um fim em si mesmo" (KANT, apud LEMOS, p.23, 2007), sendo vedado a qualquer indivíduo equipará-lo a um objeto ou a uma coisa. Portanto, a dignidade é uma qualidade própria de todo ser humano e, por tais razões, tem status jurídico-normativo, constitui um dos princípios fundamentais expressos em nossa Constituição Federal, no art. I, inciso III (BRASIL, 2009, p.7, grifo nosso):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

[...]

Dessa forma, o Constituinte de 1988,

além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário , já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal (SARLET, 2004, p. 65)

Contudo, é pertinente ressaltar que, a análise da relação entre o Estado e os indivíduos, a quem o poder estatal tem a obrigação de tutela, deve ser observada com cautela, uma vez que,

tomar o homem como fim em si mesmo e que o Estado existe em função dele, não nos conduz a uma concepção individualista da dignidade da pessoa humana. Ou seja, que num conflito indivíduo versus Estado, privilegie-se sempre aquele. Com efeito, a concepção que aqui se adota, denominada personalista, busca a compatibilização, a interrelação entre os valores individuais e coletivos; inexiste, portanto, aprioristicamente, um predomínio do indivíduo ou o predomínio do todo. A solução há de ser buscada em cada caso, de acordo com as circunstâncias, solução que pode ser tanto a compatibilização, como, também, a preeminência de um ou outro valor (SANTOS, 1998)

Sendo assim, em casos específicos previstos em lei, o Estado, por intermédio de seu poder de punir, pode fazer prevalecer sua vontade sobre a de determinados indivíduos. Contudo, é imprescindível dizer que há limites ao poder de atuação estatal.


2 O ESTADO, SEU PODER DE PUNIR E LIMITES

2.1 O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO

Há dois elementos básicos da norma jurídica, o preceito e a cominação da pena. A compreensão de preceito é a previsão da conduta criminosa, ou seja, a demarcação das condutas que devem ou não ser praticadas. E a cominação da pena é a sanção aplicada àqueles que transgridem o preceito. Portanto, quando um cidadão desobedece um preceito, a ele é atribuída uma pena em razão do que praticou, e dessa forma, abre-se a possibilidade do Estado utilizar o seu direito de punir, o seu jus puniendi, visto que, como o Estado produz a norma, então cabe única e exclusivamente a ele aplicá-la.

O jus puniendi é dessa forma, "uma manifestação da soberania de um Estado, consistente na prerrogativa de se impor coativamente a qualquer pessoa que venha a cometer alguma infração penal, desrespeitando a ordem jurídica vigente e colocando em perigo a paz social" (CAPEZ, 2007, p.16). Sendo assim, a pena é o meio de coerção utilizado pelo Estado para assegurar e proteger os bens jurídicos relevantes à sociedade, à existência humana. Zaffaroni (2004, p.92) ensina que, "a existência humana não pode existir senão na forma da coexistência, de existir com outros que também existem. Disto decorre que nem sequer se pode ter consciência do ‘eu’ quando não há um ‘tu’ de quem distinguir-se".

Porém, Zaffaroni (2004, p.92) ainda complementa dizendo que, a coexistência só pode ser assegurada por meio de uma ordem coativa que não permita a guerra entre os indivíduos, tornado necessariamente previsível a conduta alheia, sendo que, cada um saiba que o próximo abstém de desejos e condutas que possam afetar entes – bens jurídicos ou direitos – indispensáveis à coexistência, que é a única forma de auto-realizar-se.

Portanto, é possível compreender que a auto-realização é baseada num sistema de concessões recíprocas, como ensina Bobbio (1992, p.20), ao dizer que "são bem poucos os direitos fundamentais que não entram em concorrência com outros direitos também considerados fundamentais, e que, portanto, não imponham, em certas situações e em relação a determinadas categorias de sujeitos, uma opção".

2.2 LIMITES AO JUS PUNIENDI

Quando alguém desrespeita uma norma de conduta, a ele é posta uma pena que afeta alguns de seus bens jurídicos – "de sua liberdade, na prisão ou reclusão; de seu patrimônio, na multa; de seus direitos, nas penas restritivas" (ZAFFARONI, 2004, p.92), dessa maneira, essas conseqüências, tanto jurídicas quanto sociais, visam privar o autor do delito de alguns bens, com o objetivo precípuo de resguardar os bens dos outros integrantes da sociedade.

Contudo, a privação de bens jurídicos deve respeitar certos limites, visto que:

A ingerência nos bens jurídicos do infrator se faria necessária para motivar-se conforme normas e reforçar assim o sentimento de segurança jurídica, neutralizando o alarme social do delito, mas não pode exceder deste grau de tolerância socioculturalmente determinado e, por conseguinte, historicamente condicionado, sob pena de que esta mesma ingerência cause alarme social, isto é, afete o próprio sentimento de segurança jurídica [...]. Não se trata de que a pena ‘retribua’ nenhum mal com outro mal, e sim de que garanta os bens jurídicos sem lesionar o sentimento de segurança jurídica da comunidade (ZAFFARONI, 2004, p.93)

A própria Constituição Federal impõe certos limites à função atribuída ao Estado, Paulo de Souza Queiroz (apud, GRECO, 2005, p.5) leciona que:

É a Constituição que delineia o perfil do Estado, assinalando os fundamentos, objetivos e princípios basilares (particularmente, arts. 1º ao 5º da CF) que vão governar a sua atuação. Logo, como manifestação da soberania do Estado, o Direito e, em especial, o Direito Penal partem da anatomia política (Focault), devem expressar essa conformação político-jurídica (estatal) ditada pela Constituição, mas, mais do que isso, devem traduzir os valores superiores da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da justiça e da igualdade, uma vez que o catalogo dos direitos fundamentais constitui, como ressalta Gómez de la Torre. O núcleo específico da legitimação e limite de intervenção penal e que, por sua vez, delimita o âmbito do punível das condutas delitivas

A compreensão global desse raciocínio nos leva a crer que, a pessoa é o foco primordial de tutela e, por isso, embora o Estado possa aplicar sanções àqueles que incorreram em infrações penais, a pena aplicada obrigatoriamente deve respeitar os princípios constitucionais expressos na Constituição. O Estado tem o dever de zelar pela integridade dos seus cidadãos e, necessariamente buscar limites ao seu direito de punir.

Sendo assim, o cumprimento da pena não pode, em nenhuma hipótese, resultar na perda ou diminuição dos direitos fundamentais, que são garantidos pela Constituição. Giuiseppe Bettiol (apud BITENCOURT, 1993, p.12) diz:

Se é verdade que o direito Penal começa onde o terror acaba, é igualmente verdade que o reino do terror não é apenas aquele em que falta uma lei e impera o arbítrio, mas é também aquele onde a lei ultrapassa os limites da proporção, na intenção de deter as mãos dos delinqüentes

É por isso que, na relação entre o preso e o Estado, não deve ser estabelecida uma relação de submissão, mas sim de direitos e deveres recíprocos. Os direitos inerentes à qualidade de ser humano só podem ser limitados nos casos específicos previstos em lei. Portanto, deve haver moderação entre o Estado e o seu jus puniendi, pois "apesar de ser um infrator da lei penal e estar preso, resta mantida a essência do ser humano, ou seja, sua consideração como pessoa e como cidadão, e não como um animal irracional" (LEMOS, 2007, p.27).

Isso quer dizer que, o Estado deve respeitar os direitos de todos os indivíduos, o que inclui aqueles que estão presos, sob a tutela estatal, de maneira que, em nenhuma hipótese, a pena ultrapasse qualquer outro direito não atingido pela sentença penal.


3 LEI DE EXECUÇÃO PENAL: OS DIREITOS BÁSICOS DO PRESO

3.1 NATUREZA DA EXECUÇÃO PENAL

A execução penal tem caráter jurisdicional, contudo há também uma grande atividade administrativa. Ada Pellegrini Grinover (apud MARCÃO, 2003) ensina que,

não se nega que a execução penal é uma atividade complexa, que se desenvolve estrondosamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estaduais: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos estabelecimentos penais

Portanto, o processo de execução da pena cabe tanto ao Poder Executivo, como também ao Judiciário. Sendo assim, é dever de ambos seguir as diretrizes impostas pela Lei nº 7.210, conhecida como Lei de Execução Penal.

A princípio, o art. 1º da Lei nº 7.210 assegura que "a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado" (BRASIL, 2009, p.1387). É por isso que execução penal é tão importante, pois é a partir dela que se efetiva a lei penal e se mantém assegurados os direitos do detento.

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3.2 OS DIREITOS DO PRESO DURANTE A EXECUÇÃO DA PENA

São direitos do preso àqueles que não foram atingidos pela sentença penal, como evidencia o art. 3º da Lei 7.210: "Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei" (BRASIL, 2009, p 1387).

As condições básicas para permanência do preso na prisão estão descritas basicamente no art. 11 (BRASIL, 2009, p. 1387) que determina que o preso e o egresso terão assistência " I – material; II – à saúde; III – jurídica; IV – educacional; V – social; VI – religiosa.", bem como o art. 28, que garante o direito ao trabalho, e especialmente os arts. 40, 41 e 43. Há ainda o art. 88 (BRASIL, 2009, p. 1394) que diz respeito às condições adequadas do alojamento dos presos em cela individual, com aeração, insolação, lavatório, dormitório, condições térmicas, aparelho sanitário e uma área mínima de 6m².

Entretanto, apesar da Lei de Execução penal preocupar-se em "assegurar ao condenado todas as condições para a harmônica integração social, por meio de sua reeducação e da preservação de sua dignidade" (CAPEZ, 2007, p.27), é sabido que o Estado não resguarda os direitos do preso previstos na lei, pois, de forma arbitraria, executa a pena ignorando completamente os princípios básicos do ordenamento jurídico. E é dessa maneira, que o poder estatal torna-se tão transgressor quanto àqueles indivíduos que infringiram a lei penal.


4 O EVIDENTE DESCASO DO ESTADO COM A EXECUÇÃO DA PENA

4.1 A CRISE DA PRISÃO

Desde o surgimento até os dias de hoje, a pena de prisão passou por inúmeras modificações, no princípio era destinada temporariamente a guarda do criminoso, que permanecia a espera dos castigos físicos, ou da pena de morte.

Atualmente a prisão é orientada por outras diretrizes, muito embora, mesmo com uma finalidade distinta da época em que surgiu, a execução da pena se encontra em crise e se assemelha ao contexto de barbárie na qual foi criada. O sistema prisional do Brasil não corresponde às exigências impostas pela Lei de Execução Penal, e dessa maneira, não é suficiente que todos os atos administrativos e judiciais que competem ao Estado estejam em conformidade com a lei, se as prisões não estão aptas a receber os condenados.

Os efeitos dessa ingerência prisional no Brasil, e em tantos outros lugares do mundo, subverte a lógica do sistema prisional, pois do modo que está, é um estimulo a reincidência, funciona como uma escola, mas ao invés de educar, forma criminosos.

Lamentavelmente, em contrapartida a esse raciocínio que nos leva a crer no mal causado pela prisão sobre o detento, em razão do aumento da violência, há muitos que ainda acreditam que os delitos devem ser punidos com rigor.

Contudo, ao invés de conter a delinqüência, a prisão acaba por estimulá-la, não traz benefício algum ao condenado, não contribuí para reformar o seu caráter, mas permite uma gama inimaginável de degradações e vícios. Carlos Eduardo Lemos (2007, p.68) ressalta que:

Nos últimos anos, a insegurança tem instigado o clamor público pelo endurecimento das penas e dos regimes prisionais. A mídia, por outro lado, tem veiculado corriqueiramente os crimes cometidos por adolescentes e jovens adultos, que são utilizados para reforçar a necessidade do agravamento das medidas sócio-educativas e das penas. E o resultado é a edição de novas leis que, no seu conjunto, podem ser definidas como "legislação do terror", que, no entanto, não refletem impacto positivo sobre as taxas de criminalidade

Portanto, imaginar que um tratamento desumano ou extremamente rigoroso, em função da idéia de que se pode expurgar o infrator da sociedade, seja a solução para a criminalidade é equivocada, visto que, o rigor não faz cessar a criminalidade, ao invés disso, a sociedade presencia o crescimento exponencial da delinqüência e da violência.

Entretanto, é importante ressaltar que, seria um erro pregar o fim da pena privativa de liberdade já que não há, até o momento, outro sistema que possa conter determinados tipos de violência.

Porém, não há dúvidas quanto aos efeitos devastadores da prisão atualmente, pois como bem observa Adeildo Nunes (2005, p.9) "[...] as cadeias brasileiras mais parecem um zoológico, já que pessoas humanas são tratadas como animais selvagens, ademais após algum tempo de prisão o detento transforma-se numa fera." César Roberto Bitencourt (1993, p. 149) também compartilha dessa idéia ao dizer que "o sistema penitenciário tradicional não consegue reabilitar o delinqüente, ao contrário, constitui uma realidade violenta e opressiva e serve apenas para reforçar os valores negativos do condenado".

4.2 O DESRESPEITO À DIGNIDADE HUMANA DO PRESO

É notável o desrespeito à dignidade dos presos em nosso país, tanto que Loïc Wacquant (2001, p.11), relata que

[...] o estado apavorante das prisões do país, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica – dissuasão, neutralização ou reinserção. O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levadas a uma escala digna de Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença dos políticos e do público: entupimento estarrecedor dos estabelecimentos, o que se traduz por condições de vida e de higiene abomináveis, caracterizadas pela falta de espaço,ar, luz e alimentação [...]

E ainda, o relatório elaborado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária realizado em 2009 no Espírito Santo demonstra claramente o caos do sistema penitenciário capixaba. Na Casa de Custódia em Viana (CASCUVI),

O estado de deterioração dos edifícios é digno de nota. Como não há qualquer controle sobre os presos, partes dos pavilhões, em sucessivos períodos, foram sendo destruídas. Não há luz elétrica. Não há chuveiros. A água é fornecida somente ao final do dia. Durante a noite, os pavilhões são iluminados com holofotes direcionados das muralhas. O estado de higiene é de causar nojo. Colônias de moscas, mosquitos, insetos e ratos são visualizáveis por quaisquer visitantes. Restos de alimentos são encontráveis em meio ao pátio. Larvas foram fotografadas em várias áreas do presídio. (CNPCP, 2009, p. 2)

O abandono a que os detentos estão expostos é aterrorizador, vivem a sombra da sociedade, que parece indiferente ao que ocorre dentro dos presídios, e ainda, não compreendem que o problema da criminalidade está diretamente associado à desigualdade social que vige no país. Por isso, é imprescindível compreender que,

Somente isolar e de abandono humano, como as prisões, na maioria das vezes longe dos centros urbanos e da nossa visão, faz parecer eficaz o sistema prisional. Entretanto, isso reforça a exclusão social do país, decretando a morte social da grande massa de excluídos. Porém, cabe aqui uma reflexão: nós e a sociedade produzimos o criminoso. Ninguém nasce um grande médico, jurista ou professor, a pessoa se constrói com o aprendizado. Do mesmo modo, ninguém nasce um grande criminoso: ele se constrói no meio deletério das favelas, do abandono familiar, da falta de escolas e, finalmente, coroa sua formação em uma delegacia ou presídio. Ou seja, a massa criminosa encarcerada é o reflexo da sociedade que a produz, ante a total ausência de políticas públicas. O problema é nosso é não o enfrentamos. (LEMOS, 2007, p.64).

4.3 AS CONSEQUÊNCIAS DA INEXECUÇÃO DA LEI PENAL PARA A SOCIEDADE

No Brasil há grande dificuldade em executar a pena de forma adequada, por isso, é interessante compreender que

Fazer valer a "vontade da constituição" [...] ensina Konrad Hesse, passa por uma interpretação que privilegia a "ótima concretização da norma", e requer que esteja presente, na consciência geral, a necessidade de respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que "sua observância revela-se incômoda". E todas as dificuldades por que passamos para fazer valer aquele conjunto primordial de postulados que constituem o coração das constituições, e com isso o cerne de todo o Direito, estende-se, sobremaneira, à execução da pena privativa de liberdade. A execução da pena talvez represente o limite do desrespeito aos direitos fundamentais. Nos cárceres, as constituições não entram. Tal desrespeito, além de afrontar a própria existência do Estado Democrático e Social de Direito, acaba por brutalizar o ser humano que, ao deixar a prisão, reincide na prática criminosa (FRANCO, 2008).

Por tais razões, como é possível observar hoje no Brasil, podemos aplicar à nossa realidade a afirmação de Nietzsche (apud FRANCO, 2008) que descreve que, em alguns casos, a "Justiça talvez não represente outra coisa senão uma modificação de nosso ressentimento, isto é, uma forma de vingança com nome diverso". É dessa forma que tratamos os presos do nosso país, com total desprezo e repugnância.

Contudo, os efeitos da ingerência estatal na tutela do preso, não se limitam somente ao interior dos presídios, eles se estendem por toda a sociedade. Renato Flávio Marcão (2003) ressalta que "a crise instalada na execução penal se reflete, também, na segurança pública. Não se restringe aos direitos e garantias do preso", haja vista que,

a única certeza que temos hoje no Brasil é que o preso, um dia voltará ao convívio social, pois, como já exposto a Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 5º, inciso XLVII, proibiu a pena de morte e a prisão perpétua, entre outras penas cruéis. Por isso, não investir na recuperação do preso e, ao contrário, recrudecê-lo, só produzirá uma personalidade criminógena pior do que a inicial, que contra nós cometerá crimes cada vez mais violentos. (LEMOS, 2007, p. 68)

E ainda, Carlos Eduardo Lemos (2007, p.110) ressalta que, uma vez que o indivíduo retorna ao convívio social, continua a sofrendo os estigmas da prisão, visto que, não terá qualificação alguma para ingressar no mercado de trabalho, como também, será taxado como ex-presidiário.

Dessa forma, "a pena imposta pela Lei, o Egresso consegue pagar, mas aquela a que a sociedade o condena jamais conseguirá chegar ao seu final. Ela começa quando ele ultrapassa – livre – os portões para fora da prisão" (GOLÇAVES DE SÁ, apud LEMOS, 2007, p.110). Por essas razões, é incontestável que, ao passo em que não há o respeito pelas regras da execução penal, pune-se duplamente os infratores, uma vez pelo Estado, e outra pela sociedade. Engana-se, porém, quem crê que os efeitos mais drásticos e nefastos, estão restritos aos presos e aos egressos, pois

a apenação maior recai sobre a sociedade ordeira que financia, com o pagamento de impostos, taxas etc., a estruturação de um sistema que idealiza, busca e não atinge, mercê do descaso daqueles que foram eleitos e são pagos com o fruto do trabalho e do esforço dos que a integram. A parcela ordeira da população é, no mínimo, triplamente vítima. Vítima do medo; do crime, e também da inércia/ineficiência de seus representantes junto a Poderes Instituídos, há muito fracassados ante a incontida ascensão do império em que reina absoluta a ilicitude penal. (MARCÃO, 2003)

Após a análise de diversos pontos essenciais à compreensão do detento como ser humano dotado de dignidade, da obrigação do Estado em resguardar a integridade física e moral do preso - durante o tempo em que permanece encarcerado até o retorno à sociedade - parece ao final, claro e evidente que o poder estatal descumpre sistematicamente todos os preceitos cominados pela Constituição e especialmente pela Lei de Execução Penal.

E pior é saber, ao final, que os indivíduos retornam à sociedade, após o período em que permaneceram presos, embrutecidos, mais violentos. Por essas razões, a Lei de Execução Penal não é imprescindível somente àqueles que estão presos, mas a toda sociedade, que deveria ao menos, beneficiar-se com a recuperação e ressocialização do apenado, que dentro da prisão convive com uma série de degradações e humilhações, não há, portanto, nesse ambiente, espaço para a reabilitação.

Está expresso na Lei de Execução Penal, é dever do Estado prevenir o crime e orientar o regresso dos apenados ao convívio em sociedade. Porém, à medida que a Lei é desrespeitada, pelo próprio Estado e esquecida pela sociedade, ela se torna uma falácia, quando não cumpre sua finalidade, torna-se apenas um ideal normativo sem valor algum.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Vade Mecum Saraiva. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CAPEZ, Fernando. Execução Penal. 13 ed. São Paulo: Editora Damásio de Jesus, 2007.

FRANCO, José Henrique Kaster. Execução da pena privativa de liberdade e ressocialização. Utopia?. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2009, 31 dez. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12153>. Acesso em: 13 maio 2010.

GRECO, Rogério. Direito Penal: parte geral. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2005.

LEMOS, Carlos Eduardo Ribeiro. A dignidade humana e as prisões capixabas. Vila Velha: Univila, 2007.

MARCÃO, Renato Flávio. Crise na Execução Penal. 2003. Disponível em: < http://www.mundojuridico.adv.br >. Acesso em: 3 de maio de 2010.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. CNPCP: Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Relatório de visita ao Espírito Santo. Brasília, DF, 27 de abril de 2009.

NUNES, Adeildo. A realidade das prisões brasileiras. Recife: Editora Nossa Livraria, 2005.

SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/160>. Acesso em: 11 maio 2010.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução: André Telle. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERAGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

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Sobre a autora
Carolinna Bridi Gomes

Estudante de Direito da Faculdade de Direito de Vitória - FDV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Carolinna Bridi. O "jus puniendi" e a dignidade humana do preso: o desrespeito à Lei de Execução Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2988, 6 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19930. Acesso em: 6 mai. 2024.

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