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O jugo da Imprensa X liberdade de apreciação da autoridade policial

09/09/2011 às 21:23
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A condução de informações relevantes para atacar ou beneficiar algum grupo, induzindo o cidadão a apoiar ou negar algum fato é reprovável. É preciso que a imprensa atue sem direcionamentos, fazendo apenas com que o cidadão pense, analise e avalie cada situação posta.

Todos nós sabemos a força que a imprensa tem e também sua importância para o desenvolvimento de uma sociedade livre e democrática. Uma imprensa livre mobiliza os cidadãos e fiscaliza o poder público. Ela trabalha levando a todos as situações relevantes do país e do mundo, trata da economia, da política, da cultura e de todos os demais assuntos que nos interessam cotidianamente. Às vezes, inclusive, nos alertam para problemas que requerem soluções urgentes e dos quais sequer tínhamos noção da magnitude. Podemos dizer sem medo de errar que a imprensa tem um papel relevante na formação da cidadania de um país.

Diante desta imensa responsabilidade, é importante que ela esteja acima de qualquer manipulação de idéias ou fatos, porque se assim não for estará ameaçando valores que são essenciais numa sociedade democrática como a nossa. A condução de informações relevantes para atacar ou beneficiar algum grupo, induzindo o cidadão a apoiar ou negar algum fato é reprovável. É preciso que a imprensa atue sem direcionamentos, fazendo apenas com que o cidadão pense, analise e avalie cada situação posta. E é com base nestas premissas que me disponho a alertar sobre as dificuldades que a imprensa vem impondo ao trabalho da Polícia Civil. Ela, com base no seu grande poder de intimidação, tenta impor seu jugo, deturpando notícias e situações, que por sua vez, levam a sociedade a uma visão equivocada do trabalho policial civil.

Começamos pela triste situação da desinformação técnica da imprensa. Claro que os repórteres não conseguem saber de todos os assuntos que noticiam, mas para isso dispõem de vários especialistas para rever e explicar determinadas situações. Mas aqui mora o primeiro dos nossos problemas. Os "especialistas em segurança pública" muitas das vezes não são sequer formados em Direito e nunca atuaram como Autoridades Policiais. Muitos são policiais militares, que dentro do seu universo de policiamento preventivo, repressivo e de operações especiais são realmente especialistas, mas seria pedir muito que além de conhecer o funcionamento do sistema de gestão do policiamento preventivo e repressivo, eles pudessem também atuar como analistas jurídicos sem a necessária formação técnica jurídica. E aqui vai um elogio especial ao ex-integrante do BOPE do Rio de Janeiro, que hoje atua como consultor de uma grande rede de televisão, sempre com opiniões abalizadas, mas apenas sobre assuntos que vivenciou na sua carreira de policial militar. Já pude ouvi-lo dizer que não tinha condições de analisar certas situações que fugiam do seu conhecimento. Este sim é um especialista em segurança pública que sabe atuar sem sucumbir a vaidades. Outros chamados a opinar são advogados ou atuam como defensores, promotores ou magistrados, sem contar aqueles que são somente repórteres policiais. Todos muito distantes da realidade da atividade diária de uma Autoridade Policial, a qual atua naquele momento único, de necessária pacificação social, em que os ânimos estão insuflados e os dados são, em regra, parciais, dependendo, muitas vezes, de respostas técnicas posteriores. O momento da autuação em flagrante é um momento extremamente delicado e são poucos os que possuem a necessária capacidade de agir com presteza, discernimento e impessoalidade, lembrando da responsabilidade imensa que é levar um inocente ao cárcere ou deixar um culpado livre. Como diria Voltaire "É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente."

A imprensa, então embasada na opinião destes "especialistas", traz à sociedade uma visão equivocada dos atos das Autoridades Policiais, levando a opinião pública a cometer erros crassos de interpretação dos fatos policiais. Acreditam em soluções mágicas e oportunistas, muitas vezes levados pelo calor da hora e da vontade de noticiar e mostrar em primeira mão os acontecimentos, sem uma reflexão necessária. Exemplo disso são os acidentes de trânsito que levam a morte, os homicídios culposos na condução de veículo automotor, onde o próprio tipo penal previsto no CTB fala da culpa do motorista. Acontecimentos recentes envolvendo veículos caros, alguns importados, que pertencem a pessoas das altas classes sociais fizeram com que a imprensa tentasse exercer uma pressão indevida sobre as Autoridades Policiais para que os motoristas fossem autuados em flagrante pelo delito de homicídio doloso, atribuindo a eles "dolo eventual". Aqui temos que lembrar que muito doutrinadores ainda se debatem discutindo como diferenciar o que seja dolo direto do dolo eventual. Depois, temos que cada caso em concreto é único no seu universo, será sempre diverso do outro, ainda que os leigos possam achar que é sempre a mesma coisa.

Para atribuir "dolo eventual" numa situação dessas é necessário que se façam diversas investigações e se chegue a algumas comprovações inequívocas, que demonstrem que o acusado teve previsão do resultado, que anuiu a este resultado alcançado ou ao menos atuou com indiferença frente à possibilidade deste resultado ocorrer. Afinal, não se pode admitir a presunção do dolo eventual, pois quem alega deve provar, como muito bem já colocou nossos Tribunais Superiores. Assim, deve a Autoridade Policial conseguir provar que o condutor estava com nível de álcool acima do permitido ou que sua velocidade era incompatível com as regras de trânsito ou que o condutor participava de uma disputa, os famosos "rachas". Não conseguindo provar algum destes fatores de pronto ou existindo qualquer outra situação que possa excluir sua culpa, não haverá naquele momento como a Autoridade Policia autuar o condutor do veículo em flagrante delito. Estas são apenas algumas das dificuldades para o devido enquadramento da conduta. Caso a Autoridade Policial autue estará sendo arbitrária e deverá sofrer as sanções por assim agir.

O que impressiona é que a lei de trânsito é de 1997 e de lá para cá houve centenas, senão milhares de acidentes de trânsito com evento morte, e a grande maioria, quase a totalidade, foram autuados como homicídio culposo sem que a imprensa colocasse qualquer obstáculo. E nos perguntamos por que somente agora, quando os casos envolvem pessoas abastadas e veículos caros, a imprensa se mobiliza pressionando os Delegados de Polícia para que autuem em um determinado enquadramento penal que lhes parece mais glamoroso. Será que a morte de centenas de pessoas menos favorecidas envolvendo veículos comuns durante estes 14 anos não tem o mesmo valor? Ou será que dá mais destaque a notícia de um crime de homicídio doloso do que culposo?

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Outro episódio é em relação aos guardadores de veículo, os "flanelinhas". A cada grande evento esportivo, shows e espetáculos diversos a imprensa critica a não autuação policial em relação à conduta dos "flanelinhas", alegando que as pessoas são extorquidas e que nada é feito. Contudo, numa análise mais atenta veremos que, em primeiro lugar, a Prefeitura de São Paulo autoriza tal atividade, inclusive cadastrando os profissionais, que são sindicalizados, o que por si só demonstra não se tratar de atividade ilícita, já que fomentada pelo próprio Poder Público. Aqueles que são atingidos, apesar de não gostarem do comportamento, não se dirigem a um Distrito Policial e lavram um registro dos fatos. Bem lembrando que extorsão é um crime contra o patrimônio, podendo o atingido pela lesão considerar irrelevante a conduta e anuir a ela, dispondo do patrimônio que é seu. A imprensa, ao dar a notícia, chega a comentar que se trata de ação pública incondicionada, sem entender que este fator processual não exime a necessidade de haver uma vítima individualizada da conduta delituosa. Pois de outra forma não será possível subsumir o comportamento do agente à descrição abstrata da lei, o que demonstra a fragilidade de seus conhecimentos jurídicos.

Indo mais além, temos o caso recente dos cartões magnéticos possivelmente clonados. Pergunto como autuar em flagrante delito, por estelionato, furto mediante fraude ou receptação? Bastaria para ser autuado pelos delitos, estar portando dinheiro e cartões magnéticos, às vezes sequer cartões bancários. É necessário provar que aqueles cartões são produtos de ilícitos anteriores para permitir uma autuação por receptação, ou que foram utilizados para saques em contas bancárias, para autuar por furto ou estelionato. Para isso necessário se faz a informação bancária das possíveis contas acessadas, que somente através de ordem judicial é fornecida pelas instituições bancárias. E mais, devemos provar que as tarjetas dos referidos cartões possuem as informações que permitem o acesso às contas bancárias, esta prova somente é possível através de um laudo pericial. Caso contrário, bastaria pegarmos a carteira de algumas pessoas que portem cartões magnéticos diversos e autuá-lo por ser presumidamente autor de delito contra o patrimônio, ou será tão difícil assim encontrar alguém que ande com diversos cartões magnéticos na carteira?

A imprensa, na sua ânsia de notícias, se esquece que já não cabe numa sociedade democrática como a nossa, Autoridades Policiais agindo a seu bel-prazer, sem lastros legais. Ou estou equivocada, será que a imprensa e a sociedade me permitem agir a revelia da lei, deixando-me solta aos meus devaneios e vontades parciais e despóticas? Temo que isso não seja possível. Estamos todos nós, operadores do direito, atrelados intimamente às nossas regras, normas e limites. Já se foi ao longe o tempo dos caprichos e desmandos. Claro que dispomos de discricionariedade no nosso agir, até porque para decidir em cada caso em concreto a lei nos permite esta análise jurídica de todo o contexto dos fatos apresentados e a partir do entendimento da situação real apresentada. Devemos agir fundamentadamente, ou seja, explicando nossas tomadas de decisões. Esta possibilidade de agir discricionariamente é feita dentro do limite legal. Não vemos discussões na imprensa sobre as decisões judiciais aparentemente contraditórias, pois ao Magistrado também cabe esta análise do caso em concreto. Ele irá apreciar as provas e os fatos daquele caso apresentado e dará sua decisão que pode ser diferente de uma situação similar, lembrando que "similar" não é "idêntico".

Contudo, não podemos deixar de nos posicionarmos em relação a estas tentativas de subjugar as Autoridades Policiais aos caprichos da imprensa. Com certeza contaremos com o suporte necessário dos nossos dirigentes, que são pessoas dedicadas à Instituição, dignas do cargo que ocupam e possuidores de conhecimento jurídico compatível de um Delegado de Polícia, com certeza não admitirão que a imprensa nos submeta a qualquer tipo de dominação. Tal qual o jugo a que os romanos submetiam seus inimigos vencidos, quando os obrigavam a desfilar por baixo de uma espécie de forca, formada por uma lança posta horizontalmente sobre duas outras cravadas no solo, como símbolo de submissão, servidão (Michaelis). Qualquer tentativa de domínio moral deve ser expurgada e combatida, com apoio de toda a Polícia Civil. Lembrando do filósofo Etienne de La Boetie, em seu brilhante livro ‘Discurso da Servidão Voluntária’, não podemos nos curvar miseravelmente ao peso do jugo, esmagados por forças que nos parecem muito grande. A imprensa, por maior que seja sua força e abrangência, deve se curvar à correta aplicação das normas. Não cabe aos Delegados de Polícia este papel de servilismo voluntário. Numa sociedade democrática como a nossa, não existem donos de uma verdade absoluta.


REFERÊNCIAS

LA BOETIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: Martin Claret. 2010.

GOMES, Luis Flávio. Como diferenciar culpa e dolo eventual nos acidentes. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-ago-25/coluna-lfg-diferenciar-culpa-dolo-eventual-acidentes. Acesso em: 27/08/2011.

ZANELLA DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2. ed. 1991.

MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa.Disponível: http://michaelis.uol.com.br. Acesso em: 27/08/2011.

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Sobre a autora
Tani Bottini

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo, pós-graduada em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, professora de Direito Administrativo em curso preparatório para concurso.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOTTINI, Tani. O jugo da Imprensa X liberdade de apreciação da autoridade policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2991, 9 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19966. Acesso em: 22 dez. 2024.

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