Capa da publicação Meu nome não é Johnny: Direito e Psicanálise pela recuperação do réu
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Caso João Guilherme Estrella: Direito e Psicanálise como sinônimos de não dogmatismo jurídico

Resumo:


  • O estudo analisa a relação entre o Direito e outras ciências, como a Psicanálise, destacando a crítica à Teoria Pura do Direito de Kelsen.

  • O caso concreto de João Guilherme Estrella é utilizado como exemplo para mostrar a união do Direito à Psicanálise, evidenciando a importância da interpretação não dogmática da norma jurídica.

  • A influência da mídia na formação da cultura jurídica, a importância do método interpretativo do juiz e a relação com as teorias de Dworkin são abordadas, ressaltando a eficácia de uma interpretação equilibrada e contra-kelseniana.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Analisa-se o caso de um traficante de classe média, biografado no livro e no filme "Meu nome não é Johnny". Verifica-se que a teoria Pura do Direito pôde ser invalidada, aliando o Direito e a Psicanálise, ambos focalizados na recuperação social do acusado.

Resumo: O Direito, inerente às relações sociais, pode ser visto sob a luz de diferentes teorias, dentre elas a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, e a Teoria do Direito como Integridade, de Dworkin. O presente artigo constrói uma crítica à teoria kelseniana a partir da análise do caso concreto do ex-traficante e dependente químico João Guilherme Estrella, no qual foram unidos o Direito à Psicanálise a partir de uma interpretação não dogmática da norma jurídica. Destaca-se, também, a influência que a mídia exerce na formação da cultura jurídica, bem como a importância que o método interpretativo do juiz tem para a eficácia da sentença judicial. O estudo é norteado pelo seguinte questionamento: é possível correlacionar o Direito a outras ciências sem que sua essência seja afetada? Por fim, são feitas as considerações finais acerca das pontes entre Direito, Psicanálise e Kelsen, e as consequências que são acarretadas.

Palavras Chaves: Direito – Psicanálise- Kelsen – Dworkin – Dogmática


1. Introdução

O Direito possui um leque de amplitude que permite relacioná-lo com diversas outras ciências, ainda que existam teorias que prefiram analisá-lo como único e singular, sendo principal e mais famosa, a Teoria Pura do Direito, do austríaco Hans Kelsen.

Através da análise do caso concreto de João Guilherme Fiúza Rodrigues Estrella, o presente artigo objetiva mostrar que as outras ciências podem se unir ao Direito de forma a aumentar a eficácia do caráter de ressocialização das sentenças jurídicas. À medida que essa análise é feita, uma crítica à teoria de Kelsen vai se concretizando.

Diferentemente do que diz a teoria, este artigo demonstra que a união do Direito a outros tipos de ciências é perfeitamente capaz de ser realizada, e é diante dessa perspectiva que o caso do ex-traficante João Estrella se configurou.

A Psicologia e a Psicanálise foram fundamentais para a escolha da decisão do Judiciário. Essas áreas puderam comprovar que o Direito Penal pode ter sua eficácia melhorada pelas análises de cada caso como sendo particulares, na medida em que se coloca o sujeito como agente de busca da solução do problema.

Além disso, é possível se estabelecer uma relação entre o método de interpretação da juíza responsável pelo caso com os estudos de Ronald Dworkin, que vê o Direito como um conjunto de princípios.

Inicialmente, esse artigo irá tratar da contraposição entre a Teoria Pura do Direito e a união de Direito e Psicanálise. Diante disso, é construída uma critica a tal teoria, demonstrando que o citado caso desmonta a base da teoria de Hans Kelsen.

Em seguida, tratar-se-á do Direito como Integridade, sob o olhar de Dworkin, relacionando-o ao método interpretativo utilizado pela juíza, que será, inclusive, abordada, de acordo com a categorização dworkiana, como o tipo de Juiz Hércules. Além disso, será discutido como a mídia contribuiu para a divulgação da decisão não dogmática à qual o caso foi submetido.


2. O caso

João Guilherme Fiúza Rodrigues Estrella era um jovem carioca de classe média e usuário de drogas, que passou a ser, em pouco tempo, um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro. Ele conheceu o submundo das drogas ainda aos 14 anos de idade, quando começou fazer uso da maconha. Estrella era um rapaz cheio de sonhos e anseios por liberdade, mas levou isso ao extremo, confundindo liberdade como sinônimo de transgressão e libertinagem.

Com 28 anos de idade, Estrella virou traficante e entre os anos de 1989 a 1995, fornecia cocaína em quantidades exorbitantes, chegando a guardar em sua própria casa quinze quilos da droga de uma única vez. Além de vender em grande quantidade, João Estrella, que era popular e carismático, logo se tornou praticamente o único vendedor de cocaína da região, visto que seu produto vendido praticamente puro atraia mais usuários, inclusive os pertencentes à alta sociedade carioca. Em pouco tempo, foi considerado o "barão do pó", o que lhe fez alvo de busca da Polícia Federal, que o prendeu no dia 25 de outubro de 1995 quando estava prestes a enviar seis quilos de cocaína para a Europa.

Apesar de conter esse título, João Estrella se diferenciava dos outros tipos de traficantes: morava em uma zona nobre da cidade, não comercializava violentamente, não utilizava armas e nem realizava assaltos. Nunca se envolveu em crimes de homicídios e nem utilizava crianças como intermediarias em sua rede de tráfico. Todos esses quesitos foram citados como argumentos que provaram sua dependência química e psicológica como motivo impulsionador do tráfico que comandava, inicialmente, para amigos e posteriormente, para grande parte de usuários cariocas.

A então juíza federal Marilena Soares Franco foi a encarregada de julgar o caso. Diferentemente do tradicional destino dos réus de casos como este, Marilena Franco considerou a dependência química e psicológica de João Estrella como fator determinante no processo. Não o viu como o grande empresário do tráfico, mas sim como um rapaz viciado que poderia se recuperar. Para tanto, foi crucial provar a total dependência do réu às drogas, e foi nesse aspecto que a Psicanálise atuou como personagem importante no processo.

Além disso, um dos argumentos utilizados durante o processo no qual o próprio réu declarou-se confesso foi o fato de não existir nenhuma organização ou controle do dinheiro recebido. Os exorbitantes valores em dinheiro eram gastos rapidamente com a compra de drogas, bebidas, viagens e festas.

Em meio a esse cenário de aparente brilho, João Estrella se tornava mais preso ao seu vicio, que não lhe permitia adquirir qualquer tipo de patrimônio. Isso, segundo o seu advogado, refletia a total falta de autocontrole de seu cliente, que não intencionava construir um império do tráfico, mas sim, ganhar dinheiro para gastá-lo compulsivamente. Isso significa que o réu mantinha-se no tráfico amarrado por outros fatores que não são típicos dos demais traficantes que mantêm o tráfico como rede de negócios.

A condenação de João Estrella se deu em duas partes. A primeira delas foi em uma cela ao lado de membros de uma perigosa facção criminosa, o Comando Vermelho. Já a segunda parte foi cumprida em um manicômio judiciário do Rio de Janeiro, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilh, durante dois anos. Foi lá que João Estrella encontrou força para vencer seu vício.


3. A Teoria Pura de Kelsen e outras ciências

Através da análise do processo de número 95.0032967-0 referente ao réu João Guilherme Estrella é possível perfazer uma crítica importante sobre a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen.

A Teoria atribui ao Direito um patamar de ciência, pois lhe concede a exatidão e a objetividade.

Como teoria, quer [...] conhecer seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já lhe não importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como ele deve ser feito. É ciência jurídica e não política do direito. (KELSEN, 1979, p. 17)

Ela é ousada por transformar o Direito em um positivismo puro, ou seja, livre da interferência de outras ciências, tais como as exatas e humanas. Kelsen estabelece que as ciências sociais podem ou não ser diferentes das naturais. Se elas são provenientes do princípio da imputação, em que os elementos são ligados pela ordem do dever-ser, como é o caso do Direito, então elas se diferem das ciências naturais. Essas últimas compreendem uma ordem dos elementos dos quais são interligados por outro princípio: o da causalidade. Já as ciências sociais, como a Filosofia, Sociologia, Psicologia, são regidas pelas relações de causa e efeito, o que permite analisar uma regularidade no comportamento humano.

A Teoria Pura do Direito contrapõe-se à ponte feita entre Direito e Psicanálise. É plausível ressaltar, então, que a união entre esses dois últimos é possível e tem sido recorrente nos tribunais brasileiros, ainda que sejam pertencentes a ciências distintas.

O caso concreto do ex-traficante João Guilherme Estrella constitui-se em uma crítica à teoria kelseniana, e é um exemplo que confirma a bem sucedida união entre Direito e Psicanálise.

Freud destacava que a Psicanálise pertencia às Ciências da Natureza. Nos dias hodiernos, no entanto, a Psicanálise está muito mais próxima das ciências humanas, tais como História e Etnologia. É o que diz o psicanalista e professor Renato Mezan em seu artigo Que tipo de ciência é, afinal, a Psicanálise? .

De acordo com a Doutora em Ciências Humanas e Mestre em Psicologia, Fernanda Otoni Barros Brisset, o Direito e a Psicanálise podem estar relacionados harmonicamente entre si, mas desde que essa relação seja "lado ao lado". Segundo ela, não se deve misturar Direito e Psicanalise visto que isso acarretaria a redução da Psicanálise a apenas argumentos jurídicos dos profissionais do Direito. Se isso acontecesse, o julgado deixaria de ser visto como sujeito, para ser visto como objeto.

Brisset ainda destaca a importante diferença entre a visão universal do Direito, e a visão individual da Psicanálise. Para a autora, a Psicanálise se refere às manifestações subjetivas que são norteadas pela direção do sujeito e dos sintomas. Antagonicamente, o Direito se refere às manifestações universais, e se orienta pela ordem estabelecida pelo formalismo da lei. Com as destoantes diferenças entre si, parece pouco provável o casamento entre Direito e Psicanálise. Todavia, a autora explica que isso pode ocorrer de modo eficaz e equilibrado.

Mas e então? Como o singular e o universal podem encontrar-se, em parte, nesse Mundo? Contudo, estamos por ali.

Sim! Sem se confundir com o Direito, mas ao seu lado, a Psicanálise está por ali, assim mesmo, desajustada. De início, sem saber muito bem em que pode servir, mas orientada quanto à ética que causa seu desejo, confiante em que, para onde for o caminho, não se vai sem o sujeito.

A Psicanálise transita pelas instituições jurídicas como uma "passageira clandestina", expressão que colhi de Jean de Munck. A presença do analista permite que, em situações nada ortodoxas, como em casos de violência envolvendo crianças e adolescentes, separações conjugais e acompanhamento de loucos que cometeram crimes, a invenção de Freud possa servir. Estamos cientes de que não se trata de enquadrar o sujeito no projeto da instituição, mas de deixá-lo elaborar a causa de sua entrada na mesma. Os sintomas podem, em diferentes lugares do mundo, inscrever-se nas particularidades locais de uma cidade e de um programa ou instituição, mas seu tratamento fará emergir dessas particularidades a singularidade de uma exceção. (BARROS-BRISSET, 2009, p.12).

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A determinação de Marilena Soares Franco, juíza responsável pelo caso supracitado, de que João Estrella deveria cumprir pena no manicômio como meio de conseguir sua reabilitação, abriu espaço para maior reflexão acerca do caráter ressocializante das sentenças jurídicas.

No caso em questão, ela poderia ter simplesmente considerado o réu como um traficante internacional de drogas, condenando-o a até 30 anos de prisão. Porém, conseguiu enxergar humanidade e sensibilidade no réu, através de uma visão voltada para a amplitude do caso que estava todo envolto à doença química e psicológica do rapaz. A juíza não o tratou como bandido e não lhe enviou para a cadeia. Porém, não o inocentou de seus atos. Essa decisão provocou estranheza na comunidade jurídica convencional ao distinguir traficante de depende químico.

Ao alinhar o Direito à Psicanálise, a condução do processo diverge totalmente da teoria kelseniana, que defende um Direito genuíno, livre da interferência de outras ciências.

De acordo com o filósofo e jurista austríaco, Hans Kelsen, a ciência jurídica está separada das outras ciências, tendo como objeto de estudo a norma jurídica. O conteúdo desta ultima está dissociado, inclusive, da moral e justiça. Porém, ele distingue claramente o Direito da Ciência do Direito. A sua obra é intimamente ligada ao positivismo jurídico, o que mais uma vez, diverge do curso tomado pelo processo em questão.

Diferentemente do que pensava Kelsen, o presente artigo visa provar que a aliança entre outras ciências e o direito é possível, e cabe ser feita para o melhor aproveitamento do fim último do Direito: resolver os problemas das demandas.

No caso em questão, o réu não era um mero traficante de drogas. A partir do âmbito psicológico, contatou-se que ele era um dependente químico e psicológico de drogas. Essa diferença é capaz de mudar todo o rumo da sentença jurídica, desde que os operadores do direito tenham a inteligência e a sensibilidade de casar o Direito com outras ciências de forma harmônica e contra-kelseniana.

Kelsen diz que

A norma funciona como um esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico), é o resultado de uma interpretação especifica, a saber, de uma interpretação normativa. (KELSEN, 1979, p. 20)

Entretanto, ao contrário daquilo afirmado pelo teórico, a interpretação da juíza Marilena Franco não se limitou somente ao texto constitucional, e sim, a uma interpretação da norma relacionada a todas as condições sob as quais o acusado estava submetido. Portanto, foi essencial a aplicação do estudo psicológico no caso para se obter a bem sucedida e acertada decisão da juíza.

A Psicanálise deu suporte para que o próprio sujeito encontre a sua solução. Foi exatamente a inspiração que a juíza Franco precisou para acertar na analise do caso, mesmo que sua atitude fosse em direção contrária ao convencional.

Ao fugir do formalismo jurídico e do apego ao positivismo jurídico, o decorrer do processo em questão elabora uma bem argumentada crítica contra a Teoria Pura do Direito, pois prova que a união das diferentes áreas do conhecimento podem frutificar excelentes resultados, desde que sejam equilibrada e ponderadamente aplicadas sob o discernimento crítico do Juiz Hércules dworkiano.


4. Mídia, Direito como Integridade e Interpretação não dogmática

A mídia possui papel fundamental na formação da opinião pública. Como tal, também pode influenciar a formação da cultura jurídica, seja de forma positiva ou de forma negativa. Vale ressaltar que, muitas vezes, a mídia se apresenta imparcialmente, o que pode interferir prejudicando decisões judiciais.

Com a trajetória do ex-traficante João Guilherme Estrella sendo descrita no livro Meu Nome Não É Johnny (Ed. Record), escrito pelo jornalista Guilherme Fiúza, e em seguida, sendo abordada pelo filme Meu nome não é Johnny, dirigido por Mauro Lima, a mídia foi o canal divulgador do caráter alternativo da aplicação da norma jurídica.

O filme trouxe a realidade para a televisão, facilitando a discussão acerca do assunto, além de incitar a realização de debates sobre o problema social gerado pelas drogas.

É comum casos famosos serem retratados em filmes ou livros, e no caso de João Guilherme Estrella, foi salutar a disseminação da idéia de que a sentença deve ser aplicada de forma particular, considerando que cada caso possui suas individualidades. Além disso, é transmitida a idéia de que usuários de drogas, traficantes ou não, têm chances de reabilitação, mas desde que possuam apoio da família e aparato do governo/ Poder Judiciário.

A imprensa da época utilizou-se do caso para apontar João Estrella como um perigoso traficante. Porém, omitiu uma importante singularidade que o diferenciava dos outros traficantes: ele era um dependente químico, enquanto que a maioria dos profissionais do tráfico não o é. Estrella, apesar de traficar, também consumia em elevadas quantidades a cocaína e o ácido que vendia.

É importante salientar que o filme e o livro divulgam o método interpretativo utilizado pela magistrada Marilena Franco, que de acordo com o desembargador federal Sérgio Feltrin2, "sempre se manteve sensível diante dos dramas sociais e pessoais que se encontravam nos processos. As ações não eram para ela apenas um amontoado de papéis". Fica evidente que a forma que o juiz interpreta a lei durante o julgamento de um acusado tem papel fundamental para eficácia da sentença.

Pode-se afirmar então, que a sentença proferida pela juíza, além de estabelecer um contraponto entre a Teoria Pura do Direito e Direito e Psicanálise, permite ainda associar o seu método de interpretação às teorias de Ronald Dworkin acerca da resolução de casos difíceis.

Franco estava diante de um caso concreto que possuía duas alternativas de aplicação do direito: ou caminharia para o sentido de uma aplicação dogmática, ou para o sentido de uma aplicação de pena alternativa, que nesse caso, significa não dogmática. Através do estudo do caso como particular, e considerando todas as condições sob os quais o réu se encontrava, a juíza corajosamente optou pela pena alternativa de obrigar o réu a realizar o tratamento contra o vício

É importante ressaltar também, que Marilena Franco, durante o processo de interpretação da norma e de aplicação desta no caso concreto de João Estrella, assemelhou-se ao que seria o Juiz Hercules, de Dworkin, que defende que as normas devem ser lidas de modos principiológicos sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal.

Segundo Ronald Dworkin em seu livro Império do Direito, existem três tipos de juízes: o convencional, o pragmático e o Hércules. Para o juiz convencional, não existe resposta correta para o caso concreto, mas, sim, resposta conforme a lei. Já para o juiz pragmático, não existe somente uma solução para o caso, mas várias. E, finalmente, para o juiz Hércules, cabe encontrar uma resposta correta por meio de um trabalho árduo, através de uma análise e reflexão de casos e teorias. Para resolver os casos constitucionais difíceis (hard cases), Dworkin dá vida ao protagonista Hércules, que seria um juiz filósofo com elevado poder intelectual.

O Juiz Hércules contrasta com a formação acadêmica padrão dos juízes, pois ele julga a partir de um intenso e árduo processo de interpretação do texto constitucional, considerando todas as possibilidades de resolução do caso. Ele, durante o processo de resolução, aceita o direito como integridade e assume os princípios de justiça e equidade.

A juíza Marilena Franco se enquadraria na classificação de juiz Hércules na medida em que se esforçou para obter a melhor decisão para o caso concreto, não se preocupando apenas em estabelecer uma posição convencional ou pragmática. O presente artigo enfatiza que não se pode confundir a sua decisão como pertencente ao movimento do Direito Alternativo. Sua decisão foi a melhor das alternativas das possibilidades de decisões para o caso, comportamento este que seria a do Juiz Hércules: totalmente não dogmática.

O movimento do Direito Alternativo originou-se entre os juízes do Rio Grande Do Sul, durante o período pré-constituinte. Ele foi motivado pela busca de uma sociedade mais justa, com menos contrastes sociais.

Os idealizadores do Direito Alternativo objetivam influenciar os operadores do Direito a lutarem por um direito mais democrático. De acordo com Amilton Bueno de Carvalho, em seu livro Direito Alternativo em Movimento, quando o operador do Direito age consoante ao Direito Alternativo, ele provoca inquietação entre os conservadores e ainda evidencia um novo modo de atuar no Judiciário. Essa mudança de comportamento se dá pela sensibilidade mais aguçada aos despossuídos ou menos favorecidos economicamente.

Dessa forma, o movimento rompe com a neutralidade do magistrado e ainda serve ao processo de emancipação dos oprimidos e dos explorados, para quem o Direito será empenhado em favorecer.

Tendo em vista que o caso em questão tem como personagem principal um jovem de classe média alta, que possui estrutura familiar com certa bagagem financeira, é de salutar importância enfatizar que seu processo não se enquadra nos casos de Direito Alternativo. João Guilherme Estrella não pertencia a uma minoria discriminada ou a uma maioria pobre e despossuída. Portanto, a decisão da Justiça que olhou para o réu com vistas sensíveis à sua condição de dependente químico foi uma decisão alternativa ou não dogmática, mas que não pertence ao movimento gaúcho de Direito.

É possível afirmar, todavia, que a decisão foi inspirada no Direito Alternativo somente por ser não dogmática, não convencional e não pragmática.

Apesar do bem sucedido tratamento de recuperação do João Guilherme, não se pode generalizar seu caso a ponto de dizer que o mesmo procedimento funcionaria com outros casos parecidos. Além de ser necessário analisar todas as particularidades de cada caso, é extremamente salutar atentar-se para os péssimos alojamentos dos hospitais psiquiátricos judiciários.


Conclusão

Diante do estudo do caso de João Estrella, é possível provar e evidenciar a bem sucedida relação entre o Direito e outras ciências, dentre as quais a Psicanálise. Essas pontes entre Direito e diferentes áreas do saber permite que o fim último do Direito Penal seja atingindo: a eficácia da norma como caráter ressocializante do acusado.

Apesar das péssimas condições do manicômio em que passou dois anos internado, João Estrella conseguiu sucesso no seu tratamento. Isso enfatiza que a decisão não dogmática da juíza Marilena Franco foi acertada.

Logo, é possível se construir uma reflexão acerca da importância de que o molde interpretativo do magistrado exerce no resultado do processo. A sua sentença não convencional ou não pragmática, enraizada no abstrato sensível da juíza, pôde, inclusive, incitar o repensar acerca do papel do juiz na resolução dos casos em geral. O desempenho de Marilena Franco, cujo trabalho foi realizado com esforço e afinco, assemelha-se ao juiz Hércules, de Dworkin, em que o Direito é sinônimo de Integridade e aplicado conforme à justiça , à equidade e ao devido processo legal.

É importante ressaltar a influência que a mídia exerceu na comunidade jurídica ao explorar o caso concreto no livro ‘Meu nome não é Johnny’, e em seguida, no filme de mesmo título. A mídia pôde aproximar o caso jurídico da sociedade, o que provoca um questionamento acerca do modo como o Direito pode ser abordado pelo Judiciário brasileiro, cuja base está calcada em um convencionalismo e formalismo jurídicos.

Portanto, o desfecho da trajetória de João Guilherme Estrella, ex- traficante, ex-dependente químico e atual produtor musical, deixa transparecer que a teoria Pura do Direito pôde ser invalidada, na medida em que se aliou o Direito à Psicanálise, ambos focalizados na recuperação social do então acusado.


Referências Bibliográficas

BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni de. A substância da tragédia: literatura, Direito e psicanálise. Ver. Dir. Psic.,Curutuba,v.2,n.1,p.23-36,jan/jun.2009

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo em Movimento. Niterói: Luam Ed., 1997 – 13-22; 31-36; 37-[58].

DWORKIN, Ronald. Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. PP 185-332.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5.ed. Coimbra: Sucessor, 1979.

MEZAN, Renato. Que tipo de ciência é, afinal, a Psicanálise?. Nat. hum. [online]. 2007, vol.9, n.2, pp. 319-359. ISSN 1517-2430.


Notas

[1] Disponível em <https://www2.trf2.gov.br/noticias/materia.aspx?id=2210>


Abstract: The Law, which is inherent to human relations, can be seen by the light of different theories, like the Hans Kelsen’s Pure Theory of Law and Dworkin’s Theory of Law as Integrity. This article criticizes Kelsen’s Theory and it makes an analysis about the case of the ex-trafficker and addicted on drugs João Guilherme Estrella. In this case, Law was united with Psychoanalysis with a non-dogmatic way of interpretation of the rule of law. It also emphasizes the influence that media has on the creation of the judicial culture and emphasizes the importance of the way of judge’s interpretation has for the success of the judicial judgment. The study tries to answer the following question: is it possible to correlate Law with others sciences and doesn’t affect its essence? Finally, it makes some final considerations about the links between Law, Psychoanalysis and Kelsen, and the consequences that these links originates.

Keywords: Law- Psychoanalysis- Kelsen- Dworkin - Dogmatic

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Sobre as autoras
Vanessa Moura Feitosa

Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal do Piauí (UFPI)

Brenda de Souza Vieira

Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal do Piauí (UFPI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FEITOSA, Vanessa Moura ; VIEIRA, Brenda Souza. Caso João Guilherme Estrella: Direito e Psicanálise como sinônimos de não dogmatismo jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2999, 17 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20011. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Orientadora: Professora Doutora Maria Sueli Rodrigues. Texto originalmente apresentado ao curso de Direito da Universidade Federal do Piauí como requisito da disciplina Teoria Geral do Direito.

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