RESUMO – O presente trabalho tem o intuito de abordar o tema Constituição e o tratado internacional a partir das perspectivas e dos sentidos que Carl Schmitt e Hans Kelsen conferem ao termo Constituição. O artigo procura traçar um quadro comparativo entre os pensamentos de ambos compreendendo as razões pelas quais os dois juristas chegam a conclusões distintas no que tange à primazia do Direito Internacional.
PALAVRAS-CHAVES: Constituição – Tratado Internacional – Carl Schmitt – Hans Kelsen.
1– Considerações iniciais: A Constituição sob a concepção de Carl Schmitt e Hans Kelsen
O Direito Constitucional tem logicamente por objetivo o estudo de uma Constituição, tendo por objeto as normas relativas à estrutura do Estado, a forma de governo, o estabelecimento de seus órgãos, o modo de aquisição e o exercício do poder, bem como a limitação desse poder, além da previsão de direitos e garantias fundamentais do homem. Em apertada síntese, José Afonso da Silva define a Constituição como: "o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado" [01]. Sem embargo, como bem ressalta o mestre mineiro, essa definição empresta tão-somente uma noção de constituição estatal, isto é, uma concepção parcial de seu conceito, tendo em vista que se encontra divorciada da realidade social, uma vez que para haver a plena compreensão de seu sentido deve-se levar em consideração todo um conjunto de valores [02].
Diante dessa constatação, surgem intensos debates e interessantes controvérsias relativas a qual sentido devem ser concebidas as Constituições. Além do sentido sociológico defendido por Ferdinand Lassale [03], segundo o qual a Constituição é essencialmente a soma dos fatores reais de poder, outros dois sentidos ganharam destaque, posteriormente, no cenário internacional. Ao publicar o livro Teoria da Constituição, em 1928, Carl Schmitt desenvolveu brilhantemente a noção de concepção política de Constituição, para a qual o ordenamento máximo do Estado é uma decisão política fundamental.
Noutra quadra, Hans Kelsen compreendia a Constituição sob a perspectiva meramente formal, considerando-a como norma pura, sem qualquer pretensão de cunho sociológico, político ou filosófico. [04] Nesse particular, ao apresentar a obra Teoria Pura do Direito, no ano de 1934, o jurista austríaco consolidava a divergência do pensamento de Carl Schmitt, cuja doutrina apregoa que "no hay ningún sistema constitucional cerrado de naturaleza puramente normativa, y es arbitrario conferir trato de unidad y ordenacíon sistemáticas a una serie de prescripciones particulares, entendidas como leyes constitucionales, si la unidad no surge de una supuesta voluntad unitaria". [05]
Para Carl Schmitt, a Constituição, em sentido absoluto, é a concreta situação de um conjunto de unidade política e ordenação social de um Estado [06]. A validade de uma Constituição não se sustenta na justiça de suas normas, mas, sim, na decisão política que lhe confere existência [07]. Dessa maneira, não há que se falar em ordem constitucional de caráter unicamente normativo, como determina Hans Kelsen com sua norma fundamental. Na visão do autor alemão, o conceito de Constituição como sendo um fenômeno normativo não passa de mais uma idéia oriunda do positivismo liberal, que se nega a reconhecer o papel decisivo do poder político na função de uma ordem [08].
Ao escrever a Teoria da Constituição, Schmitt ataca ferozmente as pretensões que Hans Kelsen já assinalava, no ano de 1911, em a sua obra Hauptprobleme der Staarechtlehre (Problemas Capitais da Teoria Jurídica do Estado). A proposta nessa obra foi o começo do desenvolvimento de uma teoria jurídica pura, ou seja, purificada de toda ideologia política e de todos os elementos da ciência natural [09]. Entretanto, o próprio Kelsen tinha ciência das sérias e freqüentes objeções sofridas pela criação da Teoria Pura, uma vez que, de acordo com a crítica, ela se mantinha alheia a toda política – afastando-se da vida real – e, por essa razão, deixava de ter qualquer valor científico [10]. Carl Schmitt, ao analisar a Teoria Pura e a norma fundamental retalhava:
"Quien dice que la Constitución vale como norma fundamental (no como voluntad positiva) afirma con ello que es capaz de portar en virtud de ciertas cualidades de contenido, lógicas, morales u otras, un sistema cerrado de preceptos justos. Decir que una Constitución no vale a causa de su justicia normativa, sino sólo de su positividad, y que sin embargo, funda como pura norma un sistema o una ordenación de puras normas, es una confusión llena de contradicciones" [11].
Seguindo essa linha de raciocínio, o pensador alemão era categórico ao afirmar que a unidade do ordenamento encontrava-se na existência política do Estado, e não em leis ou em regras sem nenhuma classe de normatividade. Por essa razão, entendia que as palavras e idéias que tratam a Constituição como lei fundamental ou uma norma fundamental são quase sempre obscuras e imprecisas. Ao analisar a Constituição de Weimar de 1919, Schmitt era enfático ao se manifestar no sentido de que a unidade do Reich alemão não descansava naqueles 181 artigos e em sua vigência, senão na existência política do povo alemão. Nesses termos, como bem deixou expresso em sua própria obra, "la Constitución de Weimar vale porque el Pueblo alemán se la há dado" [12].
Carl Schmitt destaca, outrossim, que a vontade política deriva, sobretudo, da autoridade do Poder Constituinte. Em outras palavras, o Poder Constituinte corresponde à vontade política, cuja força é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre o modo e a forma da própria existência política, determinando assim a subsistência de uma unidade política como um todo [13]. Portanto, é justamente no Poder Constituinte que consiste todas as faculdades e competências constituídas presentes na Constituição [14].
Com fundamento nessa concepção política, Carl Schmitt estabelece em sua obra a distinção entre Constituição e leis constitucionais. A primeira se refere à decisão política fundamental (por exemplo, organização do Estado, princípio democrático, princípio republicano, entre outros); já a segunda diz respeito às leis do ponto de vista formal, cujos preceitos não detêm conteúdo materialmente constitucional. De acordo com Schmitt, para o conceito formal é indiferente que a lei constitucional regule a organização da vontade estatal ou que tenha qualquer outro conteúdo. Mencionando a Constituição de Weimar, o célebre jurista exemplifica a quantidade de prescrições legal-constitucionais constantes naquele ordenamento totalmente desprovidas de caráter fundamental, ipsis litteris:
"En la Constitución de Weimar se encuentran en gran número tales prescripciones legal-constitucionales, de las que en seguida puede advertirse no son fundamentadoras (grundlegend) en el sentido de una "ley de las leyes"; p. ej., art. 123, 2: "Las reuniones al aire libre pueden ser sometidas al deber de previo aviso por una ley del Reich, y prohibidas en caso de inmediato peligro para la seguridad pública". Artículo 129, 3: "Se garantizará al funcionario el derecho a examinar su expediente personal". Art. 143: "Los docentes de las escuelas públicas tienen los derechos y deberes de funcionarios públicos". Art. 144, 2: "La inspección escolar será ejercida por funcionarios técnicos superiores especializados". Art. 149, 3: "Se mantendrán las Facultades de Teologia en las Universidades". Todas son regulaciones legales que se han convertido en leyes constitucionales mediante su recepción en "la Constitución" [15].
Desse modo, resta indubitável que as prescrições acima mencionadas, ao alcançarem o patamar constitucional, tendo em vista as condições de reforma, dificultam sensivelmente a alteração do Texto Constitucional – protegendo, assim, a duração e a estabilidade das leis constitucionais e aumentando conseqüentemente sua "força legal" [16]. Por oportuno, insta frisar que a distinção entre Constituição e lei constitucional somente é possível porque a essência da Constituição não está contida em uma lei ou em uma norma, mas reside em uma decisão política do titular do poder constituinte, isto é, o Povo na Democracia e o Monarca em uma Monarquia autêntica [17].
Nesse viés, Carl Schmitt não deixa a menor dúvida de quem é o detentor da autoridade para instituir a norma fundante do direito de um Estado. Em sua visão, quem possui legitimidade para tal desiderato é o próprio Poder Constituinte. Entretanto, se tal pensamento for seguindo, o sistema fica inevitavelmente aberto, fazendo com que a norma fundante derive de um fato social, qual seja: o Poder Constituinte [18].
Com o propósito de fechar o sistema e evitar o recursus ad infinitum, Kelsen criou a norma fundamental como base do ordenamento jurídico. Seria essa a única forma de atribuir unidade formal ao sistema e de obliterar que a norma fundante adviesse de um fato social. De acordo com o pensamento do jurista vienense, o Poder Constituinte seria autorizado por uma norma fundamental hipotética, a qual estabelece que todos os cidadãos devem obedecer às normas emanadas de tal poder, isto é, daquela força política capaz de pôr normas para toda sociedade e de impor-lhes observância. [19] Nesse sentido, explica Hans Kelsen:
"Como já anotamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm)" [20].
É de se reparar que na concepção teórica de Hans Kelsen, tal como foi aventada, o ordenamento jurídico funciona como uma estrutura escalonada. Forma-se um conjunto hierarquizado de normas nos moldes de uma pirâmide abstrata, ou seja, a norma hierarquicamente inferior deve obediência imediata à norma superior, e assim sucessivamente. Como visto acima, a esse conceito dá-se o nome de norma hipoteticamente fundamental, de onde as demais disposições retiram, de maneira escalonada, o seu substrato de validade [21].
Sublinhe-se que, ao avaliar a estrutura hierárquica da ordem jurídica de um Estado, pressupondo a norma fundamental hipotética, a Constituição é o nível mais elevado dentro do Direito nacional. Sendo que, nesse sentido, a Constituição é compreendida não em um sentido meramente formal, mas, sim, material. Kelsen deixa bem claro em sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado a distinção entre constituição em sentido formal e constituição em sentido material. A primeira, segundo o autor, é um documento solene, isto é, um conjunto de normas jurídicas que pode ser modificado somente com a observância de prescrições especiais cujo propósito é tornar mais difícil a modificação dessas normas. A segunda, por sua vez, consiste nas regras que regulam a criação das normas jurídicas gerais, em particular os estatutos [22].
Em breve resumo, mister se faz destacar os dois sentidos que Hans Kelsen empresta à palavra Constituição. O sentido lógico-jurídico, em que se faz presente a norma fundamental hipotética, conceito esse de onde a Constituição positiva retira toda a sua validade, não possuindo sequer enunciado explícito. Assim, Kelsen abstrai todo significado social, político ou filosófico da norma jurídica, isto é, o seu fundamento passa a se encontrar na relação de hierarquia existente entre elas. Já no sentido jurídico-positivo, a Constituição corresponde à norma positiva suprema – lei nacional no seu mais alto grau. Pode ser entendida ainda em seu aspecto puramente formal, cujas normas jurídicas somente podem ser alteradas diante de um processo especial de modificação [23].
Portanto, mediante tais considerações, extrai-se que enquanto Carl Schmitt vislumbrava um sentido político de Constituição, Hans Kelsen a concebia em seu sentido puramente normativo. Schimitt entendia que a Constituição é uma decisão política fundamental, fazendo a clássica distinção entre Constituição e leis constitucionais. Por outro lado, Kelsen compreendia a Constituição em uma perspectiva avalorativa – estritamente formal – em que a norma fundamental do Estado servia de parâmetro de validade para todo o ordenamento jurídico. Em suma, a Constituição é considerada como norma pura, abstendo-se de qualquer pretensão política, sociológica ou filosófica.
1.2 – A Constituição e o Tratado Internacional na visão de Carl Schmitt e Hans Kelsen
Após compreender os sentidos que ambos os autores empregam ao termo Constituição, necessário se faz, antes de adentrar no tema em si, analisar os principais conceitos, as fontes e o desenvolvimento do Direito Internacional a fim de um melhor exame do caso em questão. Em clássica definição, Hans kelsen leciona que "International law or the Law of Nations is the name of a body of rules which – according to the usual definition – regulate the conduct of the states in their intercourse with one another"(O Direito Internacional ou a Lei das Nações é o nome de um conjunto de regras que - de acordo com a definição usal - regula a conduta dos Estados em suas relações uns com os outros) [24]. O Direito Internacional, portanto, tem a função de estabelecer regras entre Estados soberanos, no âmbito de suas relações externas, com o propósito de se alcançar um determinado fim.
De acordo com essas premissas iniciais, necessário destacar as fontes do direito internacional, isto é, os fatos e atos que produzem uma norma jurídica internacional. Elas encontram-se previstas, atualmente, no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, cuja função é decidir as controvérsias de direito internacional que lhe sejam submetidas [25]. As fontes são as seguintes: os tratados ou convenções internacionais; o costume; os princípios gerais de direito, comuns às nações civilizadas; a jurisprudência; a doutrina e a equidade como instrumentos de interpretação e integração do direito internacional.
Dentre as fontes de direito internacional mencionadas, a que expressa maior relevo e significado são os tratados. É inegável que com o desenvolvimento da sociedade internacional e a intensificação das relações entre as nações, os tratados tornaram-se a principal fonte de direito internacional existente, e atualmente assumem função semelhante às exercidas pelas leis e contratos no direito interno dos Estados, ao regulamentarem as mais variadas relações jurídicas entre países e organizações internacionais, nos diversos campos do conhecimento humano [26].
Assim sendo, necessário destacar a Convenção de Viena, adotada em 22 de maio de 1969, que codificou o direito internacional consuetudinário referente aos tratados. Definiu, em seu art. 2º, I, a, o conceito de tratado como um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica.
No entanto, em época recente, os tratados internacionais não eram objetos de codificação na ordem jurídica. Sob a perspectiva histórica, os tratados consistiam até o século passado em uma ordem de caráter costumeiro com raízes em princípios gerais como o pacta sunt servanda e a boa fé [27]. O século XX, contudo, abriu espaço a dois pontos relevantes na seara dos tratados: a entrada em cena das organizações internacionais, e a codificação do direito dos tratados tendo expressivo significado, uma vez que as regras de natureza costumeiras transformaram-se em regras convencionais, escritas, expressas, constando elas mesmas no texto de um tratado [28].
A partir de então, o tratado passou a ser um documento solene, não prescindindo da forma escrita de seu feitio. Os Estados soberanos, em razão do animus contrahendi, passaram a criar verdadeiros laços obrigacionais entre as partes concordantes. O tratado, portanto, passou a produzir definitivamente efeitos de direito [29]. Nessa linha, Franz von Liszt é categórico em acentuar que: "el tratado obliga fundamentalmente a las partes contratantes en su conjunto, es decir, en la totalidad de sus disposiciones" [30].
Diante desse quadro obrigacional entre os Estados, surgem no âmbito do direito temas controversos e curiosos do ponto de vista da teoria constitucional. Tendo em vista a concepção de constituição ilustrada por Carl Schmitt e Hans Kelsen, indaga-se: seria possível coexistir Constituição e tratado internacional na ordem jurídica? De que modo e de que forma se daria essa relação na visão de ambos os pensadores?
Ante a perspectiva apresentada, necessário esclarecer que Carl Schmitt repelia veementemente a concepção de que uma Constituição pudesse repousar em um tratado internacional – ele não admite que um Estado independente possua uma Constituição que tenha como fundamento essencial um pacto ou convênio. Para o mestre alemão, a idéia de pacto ou convênio poderia surgir em uma Constituição Federal, e tão-somente em relação àqueles estados que viessem a se converter em membros da Federação [31].
Afirmava ainda que um tratado internacional jamais seria uma Constituição em sentido positivo. Para tanto, uma Constituição, em tal sentido, somente é concebida quando surge mediante um ato do Poder Constituinte. Na avaliação do autor, um ato constituinte consiste na totalidade da unidade política cuja existência é anterior. Isto é, não é que a unidade política surja porque veio à luz uma Constituição. Pelo contrário, a Constituição em sentido positivo contém somente determinações de uma forma concreta de conjunto porque se pronuncia ou decide por meio de uma unidade política [32]. Assim define Schmitt:
"La unidad de la Constitución, sin embargo, no reside en ella misma, sino en la unidad política, cuya particular forma de existencia se fija mediante el acto constituyente. La Constitución no es, pues, cosa absoluta, por cuanto que no surge de si misma. Tampoco vale por virtud de su justicia normativa o por virtud de su cerrada sistemática. No se da a sí misma, sino que es dada por una unidad política concreta. Al hablar, es tal vez posible decir que una Constitución "se establece por si misma" sin que la rareza de esta expresión choque en seguida. Pero que una Constitución se dé a si misma es un absurdo manifesto. La Constitución vale por virtud de la voluntad política existencial de aquel que la da. Toda especie de normación jurídica, y también la normación constitucional, presupone una tal voluntad como existente". [33]
Nesses termos, seria inviável conceber uma Constituição em sentido positivo que sofresse influência direta de um tratado internacional. Se a Constituição – no sentido de decisão política fundamental – viesse a tolerar a celebração de pactos ou convênios alienígenas, a existência política que corresponde à capacidade de autodeterminação [34] restaria completamente negada. Em passagem que se tornou clássica, Schmitt deixa cristalinamente claro que Constituição em sentido positivo e tratado são dois institutos inconciliáveis:
"Cuando un tratado (pacto) internacional regula el gobierno y administración de un tercer país, este país se convierte con ello en objeto de convenios y compromisos ajenos. Lo que significa negación de la existencia política; entonces no es posible una Constitución en sentido positivo". [35]
Em outra mão, para Hans Kelsen, o Direito Internacional e o Direito nacional formam um todo inseparável. Essa unidade entre ambos reside no fato de que os Estados, na condição de pessoas atuantes, são órgãos do Direito Internacional, ou da comunidade por ela constituída [36]. Conforme revela o autor, a criação do Direito Internacional por meio de tratados revela claramente os Estados na condição de órgãos da comunidade internacional.
Oportuno sublinhar que Kelsen admite, sem maiores problemas, a coexistência entre a ordem jurídica interna e o direito internacional, com primazia para o último [37]. Desse modo, levando em consideração o conceito de norma fundamental, esta se desloca da ordem jurídica nacional para a ordem jurídica internacional. Isto é, a única e verdadeira norma fundamental – norma não criada por um procedimento jurídico específico, mas pressuposta – é a norma do Direito Internacional [38].
Portanto, vê-se que os Estados Nacionais estão umbilicalmente ligados à ordem jurídica internacional, existindo, de fato, uma relação de subordinação. Então, a norma fundamental de uma ordem jurídica nacional não é mera pressuposição do pensamento jurídico, mas uma norma jurídica de cunho positivo, ou seja, uma norma do Direito Internacional aplicada à ordem jurídica de um Estado concreto [39].
Em suma, as normas fundamentais das diversas ordens jurídicas nacionais retiram a sua validade de uma norma geral da ordem jurídica internacional [40]. A propósito, Kelsen alerta para um fato curioso que é a forte tendência que o Direito Internacional tem de regulamentar as normas que seriam a priori de incumbência do direito doméstico – suprimindo, assim, a liberdade da jurisdição interna dos Estados. Dessa forma, ocorre nítida "internacionalização" da lei nacional e o conseqüente esvaziamento do direito interno. O direito doméstico, portanto, cede a vez ao direito externo na forma de tratados. Explica o mestre austríaco:
"International law more and more shows the trend to regulate matters which originally were positively regulated only by national law, the tendency to restrict more and more the so-called domestic jurisdiction of the states. For the matters of so-called domestic jurisdiction are more and more subjected to regulation by treaties. If they are at the same time regulated by norms of national law in conformity with the treaties concerned, we are confronted by a simultaneous competence of national and international law. We may characterize this phenomenon as the increasing inclination to internationalize the law, to determine the content of the norms of national law by international law, or to replace national by international law created by treaties" [41].
Feitas essas observações, fica evidenciada a primazia do direito internacional sobre a ordem jurídica interna. Ao adotar a teoria monística com preponderância ao direito externo, Kelsen confere à ordem internacional superioridade normativa tanto do ponto de vista formal como do material no que tange ao ordenamento interno. Se o Estado reconheceu o Direito Internacional, não resta outra opção senão obedecer-lhe, mesmo porque é como se passasse a vigorar uma ordem jurídica supra-estadual [42]. E, sendo assim, vale a norma de Direito Internacional segundo a qual os Estados ficam vinculados aos tratados por ele celebrados, qualquer que seja o conteúdo que eles dêem às normas pactuadamente criadas [43].
Não era essa, contudo, a visão de Carl Schmitt. O insigne jurista entende que a partir do momento em que um Estado assume uma obrigação internacional e o trato passa a integrar o corpo de uma Constituição, tal ingresso se dá na forma de leis constitucionais. Não há primazia da ordem jurídica internacional sobre a ordem interna. Ao ser recepcionada como lei constitucional, o único benefício é que se adota um método técnico-jurídico de defesa contra as reformas praticadas nas vias legislativas ordinárias [44]. Sendo assim, não há que se falar em supressão ou sequer em diminuição da independência política do Estado [45] - um tratado internacional não afeta, em absoluto, as disposições de uma Constituição em sentido positivo. Explica Schmitt, mencionando o artigo 178 da Constituição de Weimar:
"Según el artículo 178, 2, C.a., el Tratado de Versalles "no puede ser afectado en sus determinaciones por la Constitución". Este precepto de la Constitución de Weimar no significa renuncia a la existencia política y al derecho de autodeterminación del pueblo alemán; enuncia tan sólo que el Reich alemán no quiere sustraerse a los deberes internacionales de este Tratado mediante apelación a prescripciones legal-constitucionales. La declaración expresa se explica por la situación política del año 1919. Aparte de esto, y desde el punto de vista internacional, es un postulado general reconocimiento el de que un Estado no puede sustraerse a sus deberes internacionales, en subsistan válidamente, apelando a obstáculos o imposibilidades de carácter jurídico-político interno. "Si hay un postulado indiscutible del Derecho Internacional, es éste" (Triepel: Völkerrecht und Landesrecht, 1899, pág: 313). La declaración 178, 2. C.a. no tiene, pues, un contenido independiente constitutivo. Sería inexacto decir que las determinaciones del Tratado de Versalles "tienen precedencia respecto a las de la Constitución de Weimar, y especialmente absurdo designar como reforma de la Constitución de Weimar una reforma en el Tratado de Versalles exigiendo, p. ej., una ley de reforma de la Constitución para una restitución del territorio del Sarre al gobierno y administración alemanes antes del año 1935. Un deber puramente internacional no pertence a la Constitución en sentido positivo" [46].
Desse modo, necessário frisar que as disposições de um tratado internacional não se conciliam com a Constituição no sentido de decisão política fundamental. Como afirma o próprio Schmitt, a diferença entre Constituição em sentido positivo e as determinações legal-constitucionais se fazem singularmente claras. As disposições jurídico-internacionais são tão-somente protegidas pelo Direito Interno para fins de dificultar o processo de modificação – nada além disso. Para isso que se serve a forma de lei constitucional [47]. Nesse passo, as determinações de ordem internacional, por não serem atos do Poder Constituinte de um povo, não podem ser consideradas como Constituição em sentido positivo – tampouco tendem a suprimir a soberania de um Estado [48].
Em relação a essa questão, interessante observar as lições de Hans Kelsen sobre o tema soberania e tratado internacional. Para ele, nenhum conteúdo pode ser excluído de uma norma criada por tratado internacional ou ser negada vigência em virtude de ser inconciliável com a natureza do Estado que celebra – especialmente invocar questões referentes à soberania [49]. O fundamento da soberania não é empecilho para que se cumpra um tratado internacional.
De acordo com o autor, mesmo sabendo que a soberania de um Estado não seja limitada pelo Direito Internacional, é perfeitamente conciliável com o fato de um Estado, pelas circunstâncias e por força da sua soberania, reconhecer o Direito Internacional e, desse modo, torná-lo parte constitutiva da ordem jurídica interna, limitando assim a própria soberania, isto é, passando a respeitar e observar as obrigações estatuídas pelo Direito internacional geral e pelos tratados por ele concluídos [50]. Assim, como concluiu Umberto Campagnolo, Kelsen reconhece ser soberano o ordenamento jurídico supremo, o direito internacional, do qual depende a validade de todos os ordenamentos estatais [51]. Reconhece, assim, que o desenvolvimento do direito internacional tem como finalidade a constituição de um Estado Universal [52].
Portanto, enquanto Carl Schmitt entende que uma norma de caráter internacional não viola a soberania de um Estado pelo fato de não ser oriunda de um ato do Poder Constituinte, não é, pois, uma decisão política fundamental – sendo admitida como lei constitucional. Hans Kelsen, por sua vez, reconhece que a partir do momento em que um Estado celebra um tratado internacional, nem mesmo o fundamento da soberania pode servir de óbice para o seu cumprimento, haja vista que uma vez recepcionada a norma externa, há limitação da própria soberania.
Assim, por tudo que foi exposto, chega-se à conclusão de que o fato de se conceber ou não um tratado internacional em face da lei fundamental do Estado, para os dois autores, está relacionado – direta e indiretamente – à concepção que cada um deles tem pelo sentido da palavra Constituição. Carl Schmitt, ao entender que a Constituição em sentido positivo deriva de um ato do Poder Constituinte, nega peremptoriamente primazia ao direito internacional. Se a norma de caráter externo, porventura, constar no bojo de uma Constituição, terá validade tão-somente do ponto de vista formal, de modo a protegê-la de eventuais alterações que possam surgir pelas vias legislativas ordinárias.
Por outro lado, Hans Kelsen ao defender a sua concepção de Teoria Pura e da norma fundamental, passa a construir o ordenamento jurídico de forma escalonada, isto é, como sendo um conjunto hierarquizado de normas, estruturado nos moldes de uma pirâmide abstrata, cuja norma inferior retira seu substrato de validade da norma imediatamente superior, e assim sucessivamente. O ponto final dessa linha, para não haver o chamado regresso ad infinitum, é justamente a norma hipotética fundamental – o marco zero de onde as demais normas retiram o seu fundamento.
Ao longo do tempo, o jurista vienense consolida suas idéias ao enunciar que a norma fundamental é a norma de direito internacional, dispondo sempre no sentido de que os pactos internacionais devem ser sempre honrados pelos Estados. Em síntese, de acordo com a visão de Kelsen, ao aderir à teoria do monismo com primazia para o Direito externo, o fundamento de validade de uma Constituição são as normas de Direito Internacional e esta, por sua vez, passa a ser considerada a norma fundamental.