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O Estado transnormativo e a democracia em Hans Kelsen

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08/10/2011 às 14:00
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7.O Estado transnormativo

O Estado é um complexo que articula uma dimensão material (território e ações sociais), um aspecto normativo (uma estrutura institucional cogente) e um aspecto político (o poder de fato e os fins do Estado).

Há uma interseção entre Direito, Sociedade e Política na configuração do ser que chamamos Estado. Os aspectos normativo, sociológico e político do Estado não podem ser abstraídos sem prejuízo para compreensão do que seja ele de fato.

Não é possível analisar esse entre pluridimensional a partir de uma ciência exclusiva. Durkheim advertia que "não há reino na natureza que não dependa de outros reinos" (2004, p. 32). O próprio Kelsen revê sua posição purista em What is justice (O que é justiça?), publicado nos Estados Unidos em 1957:

O Direito pode ser objeto de diversas ciências. A Teoria Pura do Direito nunca pretendeu ser a única ciência do Direito possível ou legítima. A sociologia do Direito e a história do Direito são outras. Elas, juntamente com a análise estrutural do Direito, são necessárias para uma compreensão completa do fenômeno complexo do Direito (Kelsen, 1997, 291-292).

O substrato da doutrina de Kelsen pode ser resgatado mediante a concessão de que o objeto fundamental do Direito é a norma, o dever ser, mas que a formação e a operação da norma, a integração do Direito com a realidade não pode ser ignorada pela Ciência Jurídica, nem resolvido por ela de forma isolada, sem concurso da Sociologia e da Ciência Política. E essa transcendência do Direito é essencial à captação do que seja o Estado.

A noção de norma fundamental é perfeitamente compatível com essa ampliação do objeto da Ciência do Direito que aparece na Teoria Pura. A norma fundamental poderia ser compreendida nas democracias, não como ficção, mas como uma representação coletiva de Direito ideal, que baliza, em concreto, a consubstanciação do Direito fático e inclusive da própria constituição.

A evolução dessa representação explicaria a proscrição e a criação de normas à revelia das instâncias formais. O poder que cria o Direito e move o Estado é condicionado pelo formalismo jurídico, mas não neutralizado por ele.

O mais importante desdobramento dessa concepção teórica seria a unificação dos fundamentos de validade do Direito estatal e do Direito internacional. A representação coletiva que subjaz ao Estado tem controle direto sobre este, e participa da representação coletiva mais ampla, que governa o sistema internacional.

O julgamento sobre a constitucionalidade das normas, nesse contexto, assumiria uma legitimação mais democrática do que a que se apoia em substrato puramente normativo. A fundamentação do Poder Judiciário no poder da sociedade seria menos remota do que na sistemática excessivamente normativa hoje vigente.

Essa mudança, aparentemente simples, expõe o Direito em sua origem, e, em decorrência, em todos os seus desdobramentos, a algum grau de controle político. O poder que funda o Direito também tem autoridade para retificá-lo.

É possível conceber uma nova Ciência do Direito, que aproveite e concilie os aspectos estruturais do pensamento de Kelsen de forma a configurar um direito relativamente flexível, forjado, de um lado, pela dogmática jurídica, que deve presidir à estruturação da pirâmide normativa e a aplicação do Direito, e de outro pelo princípio democrático, que deve preencher as normas do sistema, inclusive, a norma básica.

É epistemologicamente viável uma Ciência jurídica em que o Direito e a democracia se pressuponham mutuamente. O fato de se conceder que o objeto da Ciência do Direito não é uma construção absolutamente lógica, mas lógico-democrática, não afeta em nada a assepsia que deve presidir tanto o estudo do Direito na academia como sua aplicação pelos diversos órgãos do Estado.


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Notas

  1. "Estabelecer a Ciência do Direito como disciplina normativa" (Tradução livre do autor).
  2. "Primeiramente, Kelsen abandona sua visão anterior no que tange a concepção de que as normas estão sujeitas a constrangimentos impostos pela lógica. Segundo, ele desiste da ideia de que a Ciência do Direito tem uma dimensão normativa. Terceiro, ele defende uma versão completamente empobrecida da tese da norma fundamental, nominalmente, a norma básica como ficção" (Tradução livre do autor).
  3. Interessante, nessa questão epistemológica, a posição de Robert Alexy: ‘É natural orientar-se, de início, por aquilo que de fato é praticado como Ciência do Direito e designado como "dogmática jurídica’ ou ‘ciência jurídica’, ou seja, pela Ciência do Direito em sentido estrito e próprio. Se isso é feito, é possível distinguir três dimensões da dogmática jurídica: uma analítica, uma empírica e uma normativa" (Alexy, 2008, p. 33).
  4. "A teoria kelseniana jamais foi formalista, no sentido ingênuo desta palavra. Para ele, fiel à doutrina de Kant, para quem a forma sem a realidade é vazia, e a realidade sem forma é cega, o elemento formal jamais se apresenta como algo válido em si, mas sempre como uma estrutura aplicável a determinada porção ou determinado momento da experiência. A forma, própria do normativismo kelseniano, é, desse modo, constitutiva, no sentido de que desempenha sempre uma função referencial em relação à experiência social" (REALE, 1985, p. 125).
  5. A Teoria Pura é informada por uma inequívoca pretensão positivista, como se vê no seguinte excerto:
  6. "(...) [A Teoria Pura] quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito (2009, 1)."

  7. Quando se fala de "Direito", "ordem jurídica" e "norma jurídica", deve-se observar muito rigorosamente a diferença entre os pontos de vista jurídico e sociológico. Quanto ao primeiro, cabe perguntar o que idealmente se entende por direito. Isto é, que significado, ou seja, que sentido normativo, deveria corresponder, de modo logicamente correto, a um complexo verbal que se apresenta como norma jurídica. Quanto ao último, ao contrário, cabe perguntar o que de fato ocorre, dado que existe a probabilidade de as pessoas participantes nas ações da comunidade – especialmente aquelas em cujas mãos está uma porção socialmente relevante de influência efetiva sobre essas ações –, considerarem subjetivamente determinadas ordem como válidas e assim tratarem, orientando, portanto, por elas suas condutas" (Weber, 1999, v. I, p. 209).
  8. A Ciência do Direito, nessa óptica, constitui o próprio objeto. Direito válido é uma expressão redundante, porque na perspectiva da Ciência Jurídico a validade é inerente ao Direito.
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Sobre o autor
Edvaldo Fernandes da Silva

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, da Universidade Cândido Mendes (IUPERJ-UCAM), especialista em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB), bacharel em Direito e em Comunicação Social-Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor de Direito Tributário em nível de graduação e pós-graduação no Centro Universitário de Brasília (UniCeub); e de Pós-Graduação em Ciência Política no Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e advogado do Senado Federal (de carreira).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Edvaldo Fernandes. O Estado transnormativo e a democracia em Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3020, 8 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20163. Acesso em: 26 abr. 2024.

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