4 O instituto do ônus da prova no Direito Brasileiro
No sistema processual brasileiro, há uma regra geral: o ônus da prova incumbe ao autor, que deve demonstrar os fatos constitutivos do seu direito, para que a verdade alegada em juízo seja administrada pelo magistrado. Ao réu, por sua vez, cabe demonstrar a existência de fatos que modificam ou mesmo extinguem o direito pleiteado pelo autor, podendo contestá-lo por meio de contraprovas. No dizer do festejado Cândido Dinamarco [18],
Toda pretensão prende-se a algum fato, ou fatos, em que se fundamenta (ex facto oritur jus). Deduzindo sua pretensão em juízo, ao autor da demanda incumbe afirmar a ocorrência do fato que lhe serve de base, qualificando-o juridicamente e dessa afirmação extraindo as conseqüências jurídicas que resultam no seu pedido de tutela jurisdicional.
O sistema brasileiro de apreciação das provas faz prevalecer o livre convencimento motivado. É o que se extrai do artigo 131 do Código de Processo Civil:
O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formarem o convencimento.
A prova constitui, pois, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo. Como comunicam as Ordenações Filipinas [19], apud, Cândido Dinamarco, "a prova é o farol que deve guiar o juiz nas suas decisões".
O instrumento probatório deve ser compreendido como algo intrínseco e necessário à ordem jurídica justa. Na mesma esteira, conclui Marcelo Abelha [20] que:
A prova no processo tem uma força capital, qual seja a de único instrumento legitimador da coisa julgada, ou, em outras palavras, é a prova e especialmente a convicção que dela resulta que servem com real elemento para a coincidência da verdade formal e da verdade real (ainda que esta esteja vista como uma utopia).
Embora importante na formação do convencimento do juiz, a regra do ônus da prova pode ser relativizada diante de determinadas situações de direito substancial. No ordenamento jurídico pátrio, a inversão do ônus da prova foi consolidada pelo Código de Defesa do Consumidor, quando preceitua:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências. (Grifamos).
Aduz-se, em conformidade com a norma em exame, que fica a critério do juiz a inversão quando estiver presente qualquer das duas alternativas: a verossimilhança ou a hipossuficiência. Ambas são vistas como pressupostos de admissibilidade da inversão do ônus da prova.
5 A inversão do ônus da prova nas questões ambientais
A verificação in concreto do nexo de causalidade existente entre o dano ambiental e o agente imputável torna-se prejudicada, levando grande número de demandas coletivas em favor do meio ambiente ao fadado insucesso. Ainda que se demonstre adequada para a maioria das lides, no caso das ações ambientais, a regra do ônus da prova pode representar um empecilho processual.
Não apenas por desconsiderar as dificuldades naturais da prova do nexo de causalidade entre a atividade exercida e a degradação, como também ignora um princípio fundamental do Direito Ambiental: o de que a adoção de medidas para evitar a ocorrência de danos ambientais não deve ser protelada – nem mesmo nos casos em que não há certeza científica do dano.
A inversão do ônus da prova, prevista legalmente nos termos supracitados pelo Código de Defesa do Consumidor, aplicada no âmbito do Direito Ambiental apresenta-se como instrumento de extrema importância e que vem ao encontro de todos os preceitos constitucionais que visam proteger o meio ambiente. Tal posicionamento afigura-se louvável, uma vez que beneficia não o autor, mas a sociedade detentora do patrimônio público coletivo consubstanciado no meio ambiente.
Em razão da tutela ao meio ambiente, o princípio da precaução determina que diante de incertezas científicas a respeito dos danos ambientais que possam ser causados pela implementação de determinada atividade econômica, devem ser tomadas medidas de precaução, no sentido de minimizar os riscos provenientes dessa atividade, para que o risco não venha consubstanciar-se em dano ambiental [21].
Considerando que o desenvolvimento científico em prol dos meios de produção é sensivelmente mais rápido que o desenvolvimento científico de técnicas de proteção do meio ambiente, a tendência é justamente que se adote, com maior freqüência, o postulado da precaução, na medida em que se torna cada vez mais difícil apurar se esta ou aquela determinada atividade pode causar degradação da qualidade do ambiente.
No bojo do direito processual, admite-se a inversão do ônus probatório nas demandas ambientais por aplicação subsidiária do artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor, supracitado, c/c o artigo 17 deste mesmo diploma legal e, sobremaneira, em menção aos princípios da prevenção e da precaução. Como discorre Geórgia Karênia [22],
O princípio da precaução atua nas demandas judiciais sejam estas individuais ou coletivas, quando houver a necessidade de tutelar os bens ambientais e sempre que houver hipossuficiência técnica acerca dos efeitos nocivos advindos da exploração de determinadas atividades econômicas, servindo de respaldo para inversão do ônus da prova em favor do meio ambiente.
O entendimento ora exprimido, se baseia na idéia de que, quando o conhecimento científico não é suficiente para demonstrar a relação de causa e efeito entre a ação do empreendedor e uma determinada degradação ecológica, o benefício da dúvida deve prevalecer em favor do meio ambiente – o que se traduz na expressão in dubio pro ambiente, ou interpretação mais amiga da natureza.
Importante salientar que a responsabilidade civil ambiental é fundada nitidamente no interesse público. Volta-se, inclusive, de acordo com o entender de Marchesan [23], à mudança do modus operandi que conduziu a prováveis situações de risco ou de dano. A tutela ambiental atua como instrumento do princípio do desenvolvimento sustentável e, como direito difuso de conteúdo intergeracional, carece de interpretação e aplicação de maior relevância, já que não se equipara à tutela de direitos individuais em que – na maioria das vezes – é almejado o mero ressarcimento de danos patrimoniais.
Nesse diapasão, Marcelo Abelha [24] assevera, brilhantemente, que:
É regra de direito material, vinculada ao princípio da precaução, a que determina que, em toda ação de responsabilidade civil ambiental onde a existência do dano esteja vinculada a uma incerteza científica (hipossuficiência científica), o ônus de provar que os danos advindos ao meio ambiente não são do suposto poluidor a este cabe, de modo que a dúvida é sempre em prol do meio ambiente. Não se trata de técnica processual de inversão, mas de regra principiológica do próprio direito ambiental, e como tal já é conhecida pelo suposto poluidor desde que assumiu o risco da atividade.
Portanto, no que se refere às ações judiciais que tentam obstar o desenvolvimento de determinadas atividades consideradas potencialmente poluidoras, deve ser aplicada a inversão do ônus da prova de modo que seja atribuído a empresas o dever de provar que sua atividade não dá ensejo a danos ambientais, sob pena de terem suas atividades paralisadas.
Logo, deve o empreendedor buscar respaldo em informações técnicas, laudos, pareceres e comunicação devidamente documentada com o órgão ambiental para garantir sua defesa em eventual processo no qual lhe seja imputada a obrigação de reparar o dano ou mesmo aponte a impossibilidade de exercer atividade sem certeza jurídica. A prova documental poderá garantir o convencimento do juiz, dispensando, em certos casos, a prova pericial.
5.1 Inversão do ônus da prova e a nova racionalidade jurídica no julgamento de ações ambientais
Motivado pela abordagem fulcrada no Princípio da Precaução, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem adotado uma nova racionalidade jurídica no julgamento das ações civis ambientais. O colendo Tribunal tem inovado em sua jurisprudência, ao admitir a inversão do ônus da prova em casos de empresas e/ou empreendedores acusados de dano ambiental, ratificando o entendimento de que cabe ao próprio acusado provar que sua atividade não enseja riscos à natureza.
A aplicação do Princípio da Precaução como instrumento hermenêutico foi evidenciada em julgamento paradigmático da Segunda Turma do STJ (REsp 972.902/RS) [25]. O processo envolveu uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul objetivando a reparação de dano ambiental de uma indústria de borracha. No recurso especial que interpôs no Tribunal, o Ministério Público pleiteou a inversão do ônus da prova, pedido que havia sido negado pelas instâncias inferiores.
Em seu voto, a relatora do processo, ministra Eliana Calmon, deferiu o pedido por meio da equiparação da proteção ao meio ambiente às relações de consumo, nas quais o instituto da inversão do ônus da prova aparece expressamente previsto:
RECURSO ESPECIAL Nº 972.902 – RS (2007/0175882-0)
RELATORA: MINISTRA ELIANA CALMON
Justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento, a partir da interpretação do art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, conjugado ao Princípio Ambiental da Precaução. (Grifamos).
Em julgamento envolvendo a emissão do carbonato de cálcio por uma empresa de transportes e armazenagem do interior de São Paulo [26], o entendimento de que nas ações por dano ambiental cabe a aplicação do princípio da precaução foi pacificado:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.060.753 – SP (2008/0113082-6)
RELATORA: MINISTRA ELIANA CALMON
O princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus probatório, competindo a quem supostamente promoveu o dano ambiental comprovar que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva.
Decerto que ao interpretar o disposto no Código de Defesa do Consumidor sob a lente da gestão preventiva do dano ambiental, a jurisprudência do STJ transferiu para o empreendedor da atividade potencialmente lesiva o ônus de demonstrar a segurança da atividade. As decisões acima relacionadas conferiram normatividade aos princípios do Direito Ambiental que vinculam a ação humana presente a resultados futuros, trazendo à luz uma nova concepção ética da tutela ao meio ambiente.
Considerações Finais
A civilização tem isto de terrível: o poder indiscriminado do homem abafando os valores da Natureza. Se antes recorríamos a esta para dar uma base estável ao Direito (e, no fundo, essa é a razão do Direito Natural), assistimos, hoje, a uma trágica inversão, sendo o homem obrigado a recorrer ao Direito para salvar a natureza que morre. [27]
A questão ambiental traz implicações complexas e polêmicas que transcendem a poluição de rios e mares, as queimadas ou a devastação de florestas, englobam também o modo como as indústrias fabricam seus produtos e os desdobramentos sócio-econômicos decorrentes dos impactos ambientais.
A Constituição Federal de 1988 elevou o direito de viver em um ambiente ecologicamente equilibrado à categoria de Direito Fundamental, trazendo à tona a relevância jurídica desses temas no Brasil.
O Princípio da Precaução é a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda suficientes identificados. Como relacionado ao longo do presente artigo, o princípio em tela afirma que, na ausência da certeza científica formal, a existência do risco de um dano sério ou irreversível requer a implementação de medidas que possam prever esse dano.
Ante o exposto, conclui-se que quando se pretende evitar o risco mínimo ao meio ambiente, nos casos de incerteza científica acerca da sua degradação há de se utilizar o postulado da precaução. Conforme entendimento de Marcelo Abelha [28], torna-se necessário impedir que a incerteza científica milite contra o meio ambiente:
Quando houver dúvida científica da potencialidade do dano ao meio ambiente acerca de qualquer conduta que pretenda ser tomada, incide o princípio da precaução para prevenir o meio ambiente de um risco futuro.
Neste ínterim, o meio ambiente deve ter em seu favor o benefício da dúvida sobre o nexo causal – relação de causa e efeito – entre determinada atividade e uma conseqüência ecologicamente degradante.
Considere-se, ainda, que o fundamento de uma decisão justa, que se aproxime ao máximo da realidade, é conseqüência inexorável do instituto da prova. Numa visão de vanguarda do Direito Ambiental, sobretudo no processo, o ideário privatista não pode ser tomado por norte, justamente para que se alcance um resultado coincidente ou mais próximo do direito visto sob uma concepção de justo.
Ao que pese, bem expõe Marcelo Abelha [29]:
Essa "mudança" de concepção (de privatista para publicista) faz com que a prova, ou os meios de prova, deixe de ser utilizada como mecanismo de obstaculização do direito, na medida em que, verificando-se a fraqueza do "meu" adversário, acaba-se adotando a postura inerte de sonegação de informações, para se aguardar, a favor do recalcitante, a regra fria do art. 333 do CPC para os casos non liquet.
Como observou-se no trabalho em tela, a tendência do STJ é estabelecer a inversão do ônus da prova nas ações civis propostas para resguardar o meio ambiente das constantes agressões por parte dos poluidores. A proposta é que as causas envolvendo direito ambiental recebam tratamento realmente diferenciado, pois a proteção ao meio ambiente há de ser informada por uma série de princípios que a diferenciam na vala comum dos conflitos humanos.
Uma nova fase do Direito Ambiental é inaugurada pelo Princípio da Precaução. Já não cabe aos titulares de direitos ambientais provar efeitos negativos, impõe-se, agora aos degradadores potenciais, o ônus de corroborar a inofensividade de sua atividade proposta, principalmente nos casos em que eventual dano possa ser irreversível, de difícil reversibilidade ou de larga escala.
Deve, portanto, a precaução balizar o processo civil ambiental de modo a transformar radicalmente a forma como as atividades potencialmente lesivas ao meio ambiente vêm sendo tratadas ao longo do tempo. É preciso assimilar que há um dever genérico e abstrato de não degradação ambiental, invertendo-se, nestas atividades, o regime da ilegalidade, uma vez que, nas novas bases jurídicas, esta se encontra presumida até que se prove o contrário. A precaução não admite sequer a negociação de riscos, de modo a evitar que as presentes e futuras gerações sejam privadas do Direito Constitucional ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.