RESUMO: O artigo aborda o Plano Nacional sobre Governo Aberto instituído pelo Decreto Presidencial não numerado de 15 de setembro de 2011 como mecanismo para fortalecimento do exercício da democracia participativa.
A soberania popular é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto e, ainda, por intermédio do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, nos termos do artigo 14 da Constituição da República Federativa do Brasil. [01]
Tais mecanismos tradicionais de exercício da cidadania ativa configuram poderosos instrumentos de participação popular, contudo, ainda não lograram a necessária consagração na práxis política brasileira [02].
O modelo de democracia semidireta não tem correspondido integralmente a todos os anseios e interesses da sociedade. A representação popular na decisão política é caracterizada pela crise decorrente da complexidade da sociedade pós-moderna.
Nessa perspectiva, tem-se defendido a indispensabilidade da oitiva da população sobre questões de relevo nacional, lançando a necessidade de revisitação da democracia semidireta como proposta para superação da crise participativa [03].
Assim, fala-se, hodiernamente, em direitos fundamentais de quarta dimensão – ou geração –, entre os quais se enquadram os direitos de democracia, de informação e de pluralismo [04].
Segundo Bonavides:
"A democracia positivada enquanto direito de quarta geração há de ser, de necessidade, uma democracia direta. Materialmente possível graças aos avanços da tecnologia de comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sistema. Desse modo, há de ser também uma democracia isenta já das contaminações da mídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder. Tudo isso, obviamente, se a informações e o pluralismo vingarem por igual como direitos paralelos e coadjutores da democracia; esta, porém, enquanto direito do gênero humano, projetado e concretizado no último grau de sua evolução conceitual." [05]
A noção de democracia direta pode ser concretizada no plano fático por intermédio dos meios de informática e eletrônicos, tais como internet, e-mail, redes sociais, twitter, a permitir que os indivíduos debatam questões de relevo para a sociedade brasileira e influenciem as decisões governamentais [06].
Reconhece-se, portanto, que os direitos de quarta dimensão "[...] compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política." [07]
No âmbito normativo foi editado pela Presidência da República o Decreto não numerado de 15 de setembro de 2011 (DOU 16/09/2011) que instituiu o Plano Nacional sobre Governo Aberto em prol da democratização da política.
Segundo preconiza o ato presidencial, o Plano de Ação Nacional sobre Governo Aberto é "destinado a promover ações e medidas que visem ao incremento da transparência e do acesso à informação pública, à melhoria na prestação de serviços públicos e ao fortalecimento da integridade pública" [08].
A execução do Plano deverá observar as seguintes diretrizes: I - aumento da disponibilidade de informações acerca de atividades governamentais, incluindo dados sobre gastos e desempenho das ações e programas; II - fomento à participação social nos processos decisórios; III - estímulo ao uso de novas tecnologias na gestão e prestação de serviços públicos, que devem fomentar a inovação, fortalecer a governança pública e aumentar a transparência e a participação social; e IV - incremento dos processos de transparência e de acesso a informações públicas, e da utilização de tecnologias que apoiem esses processos [09].
Ainda, segundo prevê o Decreto, o plano sobre governo aberto deverá contemplar "iniciativas, ações, projetos, programas e políticas públicas voltados para: I - o aumento da transparência; II - o aprimoramento da governança pública; III - o acesso às informações públicas; IV - a prevenção e o combate à corrupção; V - a melhoria da prestação de serviços públicos e da eficiência administrativa; e VI - o fortalecimento da integridade pública." [10]
Não obstante a criação do Plano de Governo Aberto seja veiculada na forma de Decreto não numerado, é indispensável reconhecer que tal diploma possui eficácia vinculante e deve ser executado pela Administração Pública, pois (a) foi editado nos termos do artigo 84, inciso VI, alínea ‘a’, da Constituição [11], (b) trata de matéria protegida por cláusula pétrea, atinente à democracia e (c) representa fundamento da República Federativa do Brasil, materializado no pleno exercício da democracia.
Além disso, a cogência do Decreto também decorre das normas constitucionais estampadas no artigo 37 da Constituição, com destaque para os princípios da moralidade, publicidade e eficiência.
Adotando-se os mesmos fundamentos e com base no princípio da simetria, é possível reconhecer que o Plano de Governo Aberto não pode se limitar apenas ao Poder Executivo Federal, atingindo, ainda, outras esferas, em especial, os Poderes Executivo Estaduais e Municipais.
Nada obstante a perspectiva decorrente do princípio da separação e da independência entre os Poderes – artigo 2º da Constituição -, é plenamente razoável e recomendável que idêntica providência seja perseguida no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário.
Vale dizer, não se concebe, na atual quadra pós-positivista, que o Estado – ou seja, todos os entes e agentes públicos, de todas as esferas – atue de forma autocrática, encapsulado em si mesmo e sem admitir a participação e o controle público.
Para Bobbio, o fortalecimento da democracia depende da ampliação dos espaços próprios para o exercício do direito de participação [12].
A soberania popular deve ser entendida não como expressão da vontade majoritária, mas um compromisso que se renova de maneira aberta e responsável [13].
A noção de governo aberto instituída pelo Decreto Presidencial não numerado de 15 de setembro de 2011, por força do Estado Constitucional Democrático, deverá ser perseguido por todos os Poderes e entes públicos, não se limitando apenas ao âmbito federal, pois constitui novo mecanismo de superação da crise de Estado e, em especial, do déficit de democracia.
Referências das fontes citadas:
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Sociedade e espaço público na Constituição, in SAMPAIO, José Adércio Leite (coordenador). 15 anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
BOBBIO, Norberto. Il futuro della democrazia: Una defesa delle regole del gioco. Torino: Eunaudi, 1984.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
JULIUS-CAMPUZANO, Alfonso de. Constitucionalismo em tempos de globalização. Tradução de Jose Luis Bolzan de Morais e Valéria Ribas do Nascimento. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
Notas
- O plebiscito, o referendo e a iniciativa popular foram regulamentados pela Lei 9.709/98.
- ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Sociedade e espaço público na Constituição, in SAMPAIO, José Adércio Leite (coordenador). 15 anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 385.
- A Constituição da República estabelece inúmeros mecanismos de participação e controle popular que, entretanto, não são suficientes para o exercício da democracia desejada. Robério Nunes dos Anjos Filho apresenta o seguinte quadro: "1. Os mecanismos tradicionais de cidadania ativa: 1.1. De participação legislativa: 1.1.1. Plebiscito (14, I); 1.1.2. Referendo (14, II); 1.1.3. Iniciativa legislativa popular (14, III); 61, § 2º); 1.2 De participação judicial: 1.2.1. Ação popular (5º, LXXIII); 1.2.2. Ação civil pública. 2. Outros mecanismos de cidadania ativa: 2.1. De participação administrativa. 2.1.1. Participação em Conselhos – Penitenciário, de Meio Ambiental, de Educação, de Saúde, de Assistência Social, Tutelar, da República (89, VII); 2.1.2. Participação dos órgãos públicos colegiados nos quais sejam objeto de discussão e deliberação os interesses profissionais ou previdenciários dos trabalhadores e empregadores (10); 2.1.3. Participação do usuário da Administração Pública direta e indireta (37, § 3º); 2.1.4. Participação dos produtores e trabalhadores rurais no planejamento e execução da política agrícola (187); 2.1.5. Participação dos trabalhadores, empregadores e aposentados nos órgãos colegiados da seguridade social (194, parágrafo único, VII); 2.1.6. Participação da comunidade nas ações e serviços de saúde (198, III); 2.1.7. Participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas públicas e no controle das ações de assistência social (204, II); 2.1.8. Participação da comunidade na promoção dos direitos culturais (216, § 1º); 2.1.9. Representação e órgãos públicos – Tribunal de Contas da União (74, § 2º), Ministério Público, Poder Legislativo (58, § 2º, IV); 2.1.10. Deflagração de processo de impeachment; 2.1.11. Participação em audiências públicas; 2.2. Institutos polivalentes de participação: 2.2.1. Direito à obtenção de informações (5º, XXXIII) e certidões (5º, XXXIV, b); 2.2.2. Direito à publicidade (5º, LX e 37, caput); 2.2.3. Direito de petição (5º, XXXIV, a)." (Sociedade e espaço público na Constituição, in SAMPAIO, José Adércio Leite (coordenador). 15 anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 384-385).
- BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 571.
- BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 571.
- Exemplo dessa nova possibilidade vem da Islândia, que permitiu a participação da população na redação na nova Constituição, por intermédio da Internet. O país é composto por aproximadamente 300.000 habitantes e praticamente todos possuem acesso à Internet. O crowdsourcing permitiu que as reuniões da Assembléia Constituinte fossem transmitidas on line, a permitir que os indivíduos apresentassem opinião em tempo real (Constituição.com. In Folha de São Paulo. 05/07/2011, p. A11.
- BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 572.
- Artigo 1º do Decreto não numerado de 15 de setembro de 2011.
- Artigo 1º do Decreto não numerado de 15 de setembro de 2011.
- Artigo 2º do Decreto não numerado de 15 de setembro de 2011.
- Dessa forma, não se permite, na espécie, a interpretação literal das regras estampadas na Lei Complementar 95/1998, - que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona -, em especial, os artigos 18 (Art. 18. Somente serão numerados os decretos que contenham regras jurídicas de caráter normativo geral e abstrato, em continuidade à seqüência iniciada em 1991. § 1º Os decretos relativos a abertura de crédito, declaração de utilidade pública, reforma agrária, doação e aceitação de imóvel, luto oficial, concessão de rádio e televisão, criação de embaixadas e consulados, declaração de calamidade pública, e todos aqueles relativos a situações particulares e casuais, não serão numerados, mas apenas ementados, de forma a permitir a identificação do ato pela ementa e data de promulgação. § 2º Os decretos pessoais e os relativos a provimento ou vacância de cargo público não serão numerados nem conterão ementa.) e 52 (Art. 52. A constituição de delegações, comissões, comitês ou grupos de trabalho, que dependa de autorização ou aprovação do Presidente da República, far-se-á mediante exposição de motivos, dispensada a edição de decreto, exceto nos casos em que a constituição tenha sido determinada por lei ou por despacho do Presidente da República. § 1º A exposição de motivos, devidamente fundamentada e instruída com os anexos, indicará a autoridade encarregada de presidir ou de coordenar os trabalhos do colegiado, a sua composição e, quando for o caso, os membros, o órgão encarregado de prestar apoio administrativo, a autoridade encarregada de estabelecer o regimento interno ou as normas de funcionamento, bem como o custeio das despesas, se for o caso, e o prazo de duração dos trabalhos. § 2º Findo o prazo para conclusão dos trabalhos, deverá ser apresentado à Casa Civil da Presidência da República ou à Câmara do Conselho de Governo, de que trata o § 4º, relatório circunstanciado das atividades desenvolvidas. § 3º Quando a constituição desses colegiados se der por decreto, este não será numerado e conterá as indicações referidas no § 1º.)
- BOBBIO, Norberto. Il futuro della democrazia: Una defesa delle regole del gioco. Torino: Eunaudi, 1984, p. 16.
- JULIUS-CAMPUZANO, Alfonso de. Constitucionalismo em tempos de globalização. Tradução de Jose Luis Bolzan de Morais e Valéria Ribas do Nascimento. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 102.