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Incentivos fiscais como instrumento da política de ação afirmativa

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08/11/2011 às 10:45
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3.INCENTIVOS FISCAIS COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA

Conforme lição de Ricardo Lobo Torres [18], "o poder de tributar nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por eles é totalmente limitado. O Estado exerce o seu poder tributário sob permanente limitação dos direitos fundamentais e de suas garantias constitucionais"

Dessa forma, o poder tributário exercido pelo Estado deve especial respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes e esse respeito não se refere apenas à observância das clássicas limitações constitucionais ao poder de tributar, mas também à utilização do direito tributário como instrumento de mudança social. Tal constatação se deve ao fato de que o tributo não pode ser considerado tão somente uma relação de poder, na qual o Estado se sobrepõe aos seus súditos, ou mesmo como um sacrifício para os cidadãos. Pelo contrário, o tributo deve ser considerado "como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado." [19]

No que pertine às técnicas de implementação das ações afirmativas, a doutrina indica que podem ser utilizadas, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais como instrumento de motivação do setor privado. Nesse sentido, Joaquim B. Barbosa Gomes destaca:

De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da nossa tradição, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico. [20]

Considerando que o Direito Tributário sofre os influxos do Direito Constitucional, é inconteste a possibilidade de se falar em discriminações positivas em matéria tributária. Como afirmou José Ricardo do Nascimento Varejão, "A ação afirmativa em Direito Tributário reflete a dinâmica do tributo em atendimento a sua função social." [21]

Em relação ao sistema constitucional tributário, a norma proclamada no art. 150, II, da Constituição Federal, estabelece ser vedado o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Essa proibição da desigualdade se expressa sob as formas principais de proibição de privilégios odiosos e proibição de discriminação fiscal.

A proibição de privilégios odiosos indica que qualquer discriminação que leve à diminuição ou à exclusão da carga tributária, aumentando a desigualdade entre contribuintes está proibida. Por sua vez, as discriminações fiscais odiosas são desigualdades desarrazoadas que excluem alguém da regra tributária geral ou de um privilégio não-odioso, constituindo ofensa aos direitos humanos do contribuinte. [22]

Se "todos são iguais perante a lei", não será possível a esta reservar tratamento fiscal diverso aos indivíduos que se acham nas mesmas condições, daí se inferindo que não serão toleráveis discriminações nem isenções que não correspondam a critérios razoáveis e compatíveis com o sistema da Constituição. [23]

As ações afirmativas promovidas com esteio nos incentivos fiscais, com o escopo de inclusão social de membros de grupos vulneráveis, não constituem privilégios odiosos, pois têm por objetivo reduzir, e não aumentar, as desigualdades, de forma que prestigiam valores constitucionalmente consagrados, como os objetivos fundamentais da República. Também não se trata de discriminação fiscal odiosa, pois o discrímen é, ou ao menos deve ser, estabelecido com razoabilidade.

O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor justiça [24]. Esse princípio, que mantém uma relação de fungibilidade com o princípio da proporcionalidade, é dividido em três requisitos: a) adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da existência de meio menos gravoso para o alcance dos fins pretendidos; c) proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício traduzido, para verificar se é justificável a interferência sobre os direitos dos cidadãos.

A ação afirmativa atende a esses três requisitos de razoabilidade. A adequação é, como visto, um critério de utilização dessas políticas, estando presente quando a medida for apta a corrigir a situação de exclusão, o que é plenamente atendido pelo escopo de inclusão social inerente às ações afirmativas.

Além disso, essas medidas são necessárias para alcançar os objetivos da República traçados constitucionalmente, mormente tendo em vista que o modelo repressivo de combate à discriminação tem se mostrado ineficiente para uma efetiva inclusão social de indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis.

Por sua vez, o requisito da proporcionalidade em sentido estrito também é satisfeito, haja vista que, especialmente nas ações afirmativas estabelecidas mediante incentivos fiscais, o ônus ocasionado pela renúncia de receita não é suficiente para impedir a adoção de políticas sociais desejáveis, que têm por objetivo tornar a sociedade mais igual em termos gerais.

A concessão de incentivos fiscais em benefício de indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis ou mesmo para empresas que promovam voluntariamente a inclusão social desses indivíduos é uma forma subutilizada de medida de ação afirmativa, embora com grande potencialidade de eficácia.

Tendo em vista a importância atual conferida pela atividade empresarial ao planejamento tributário como metodologia para se obter um menor ônus fiscal, as ações afirmativas são facilmente adotadas pela iniciativa privada, em contrapartida à concessão de incentivos fiscais, o que pode ser feito utilizando-se da função extrafiscal dos tributos.

Ao lado da tributação com finalidade fiscal, que é aquela que se limita a retirar do patrimônio dos particulares recursos pecuniários para a satisfação de necessidades públicas, há a finalidade extrafiscal das normas tributárias, que é voltada a outros fins que não a captação de recursos para o erário, mas sim à ordenação de relações sociais e econômicas em consonância com valores constitucionalmente consagrados, como a proteção da dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais.

Ao utilizar a função extrafiscal do tributo, portanto, o Estado intervém nas relações sociais e na economia, o que configura um poderoso instrumento para promoção dos direitos fundamentais, em especial a igualdade. Como afirmou há muito o Raimundo Bezerra Falcão:

o intervencionismo do Estado na economia e, por via conseqüência, nas relações sociais e na elevação geral do nível de vida é o caminho menos cruento de ser palmilhado por aqueles que, de sã consciência e sem a venda da ganância desenfreada, efetivamente desejem nítida mudança social. [25]

O direito tributário, historicamente, tem camuflado a realidade de que a figura do contribuinte tem sido usada como instrumento de apropriação do patrimônio (riqueza) de uns (os mais fracos) em proveito de outros (os mais poderosos). [26]

Nessa diretriz, o direito tributário passou a ser utilizado para a promoção de políticas públicas para alcance do ideal de justiça social, a exemplo das ações afirmativas. Trata-se de uma intervenção estatal por normas que induzem o comportamento dos particulares. Nessa espécie de normas, a sanção punitiva é substituída por um prêmio, um estímulo à iniciativa privada para adoção da política de ação afirmativa em contrapartida à concessão de incentivos fiscais.

O direito tributário, com sua função extrafiscal, já vem sendo utilizado no direito positivo brasileiro como instrumento das políticas de ação afirmativa. Contudo, essa utilização ainda é modesta.

Como exemplos de utilização da função extrafiscal dos tributos com a finalidade de inclusão social, pode-se citar, no âmbito federal, a isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na aquisição de automóvel de passageiro por pessoas portadoras de deficiência (art. 1°, IV, da Lei n° 8.989/95); e a isenção de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) nas operações de financiamento para aquisição de veículos por pessoas portadoras de deficiência (art. 72, IV, da Lei nº 8.383 de 30.12.91).

Há quem defenda que tais medidas afirmativas pudessem ser expandidas na legislação tributária federal, a exemplo da legislação do imposto de renda e proventos de qualquer natureza, que, permitindo o abatimento de verbas gastas em determinados investimentos, tidos como de interesse social ou econômico, poderia ser um campo fértil para o desenvolvimento de tais políticas de inclusão social. Essa técnica poderia, de lege ferenda, ser utilizada como ação afirmativa, permitindo-se a dedução de percentual da base de cálculo do IR para aquelas empresas que empregassem pessoas pertencentes a grupos vulneráveis, como afrodescendentes [27], mulheres e portadores de necessidades especiais, ou que melhorassem as condições de trabalho dessas pessoas, contribuindo para uma maior inserção social.

O Juiz Federal e Professor da Faculdade de Direito de Vitória-ES Américo Bedê Freire Júnior [28] defende a mesma idéia:

A empresa, então, que tiver determinado percentual de determinada categoria que sofreu discriminação terá um benefício fiscal. Ora, se a Constituição autoriza a adoção de isenções fiscais para a redução das desigualdades regionais, com muito mais razão é constitucional a adoção de isenções para diminuir as desigualdades vivenciadas pelos cidadãos brasileiros.

Vale citar, também, o Programa Universidade para Todos (ProUni) institucionalizado pela Lei n° 11.096, de 13 de janeiro de 2005, que é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos, a estudantes que tenham cursado o ensino médio completo na rede pública de ensino ou em instituições privadas com bolsa integral; aos estudantes portadores de deficiência; e aos professores da rede pública de ensino, para determinados cursos destinados à formação do magistério da educação básica. Tal lei, ainda, prevê que a instituição de ensino superior, ao aderir ao ProUni, adote um termo de adesão onde conste a cláusula da reserva de percentual de bolsas de estudo destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados indígenas e negros.

Nos termos do art. 8ª da supracitada lei, as instituições de ensino que aderirem ao ProUni ficam isentas de uma série de tributos federais, dentre eles: o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social e Contribuição para o Programa de Integração Social.

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No âmbito dos tributos estaduais, destaca-se o Convênio/CONFAZ 77/2004, que trata da isenção do ICMS nas saídas internas e interestaduais de veículo automotor novo com até 127 HP de potência bruta, especialmente adaptado para ser dirigido por motorista portador de deficiência física incapacitado de dirigir veículo convencional (normal), desde que as respectivas operações de saída sejam amparadas por isenção do IPI, nos termos da legislação federal vigente.

Há também exemplos de ação afirmativa, que utilizam o direito tributário como instrumento, na legislação municipal. Nesse sentido, pode-se destacar o art. 384 da Lei Orgânica do Município de Manaus-AM, o qual estatui que as empresas que comprovarem manter em seus quadros funcionais dez por cento do total de seus empregados, ex-hansenianos, ex-presidiários, deficientes e pessoas idosas, com idade superior a 45 anos, gozarão de isenção de 20 por cento do imposto sobre serviços de qualquer natureza. [29]

A Lei do Município de Bauru-SP nº 3.491, de 19/10/1992, alterada pelo art. 54 da Lei Municipal nº 5.077, de 29/12/2003, prevê, em seu art. 1º, que as empresas que mantiverem em seus quadros de funcionários pessoas portadoras de deficiência, assim atestado pela Secretaria Municipal da Saúde, gozarão de descontos no pagamento de impostos e taxas municipais. [30]

Com essa aplicação da política de ação afirmativa, aumenta-se o comprometimento dos particulares empregadores com a não-segregação social de membros de grupos vulneráveis, bem como com a promoção dos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores. Isso porque uma das funções dos direitos fundamentais é propiciar um certo equilíbrio de forças entre partes conflitantes que não se encontrem em mínimas condições de igualdade [31], sendo dever do legislador, com prioridade, a concretização dos direitos fundamentais.

No Estado social de direito não apenas o Estado ampliou suas atividades, mas também a sociedade participa mais ativamente do exercício do poder. Assim, os direitos fundamentais merecem proteção não apenas contra atos do poder público, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade [32], devendo o Estado forçar o respeito pelos particulares aos direitos fundamentais, a exemplo do direito à igualdade, escopo das ações afirmativas.

O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que essa utilização da função extrafiscal dos tributos como política de ação afirmativa é compatível com o princípio da igualdade, quando do julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade em que se alegava ser inconstitucional a Lei nº 9.085/95, do Estado de São Paulo, que instituiu a concessão de incentivos fiscais a empresas que contratassem empregados com mais de quarenta anos de idade. Vejamos parte da ementa desse julgado:

Ao instituir incentivos fiscais a empresas que contratam empregados com mais de quarenta anos, a Assembléia Legislativa Paulista usou o caráter extrafiscal que pode ser conferido aos tributos, para estimular conduta por parte do contribuinte, sem violar os princípios da igualdade e da isonomia.(...) [33]

Iniciativas desse jaez poderiam ser estendidas a indivíduos pertencentes a outros grupos vulneráveis. Como se vê, a utilização da extrafiscalidade não se deu de forma compulsória aos particulares. Ao contrário, tratou-se de induzir o comportamento destes com vistas ao respeito do direito fundamental à igualdade, mediante a concessão de um incentivo fiscal, isto é, uma forma de sanção premial.

Nesse desiderato, são utilizados os mecanismos de redução de alíquotas, de dedução de despesas na base de cálculo de tributos ou mesmo a concessão de isenções condicionais, sendo necessário salientar que toda renúncia fiscal, é claro, deve ser tomada com responsabilidade fiscal, em atenção ao art. 165, § 6°, da Constituição Federal e aos arts. 5°, II, e 14 da Lei Complementar nº 101/2000.

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Sobre o autor
Luiz Octavio Rabelo Neto

Mestre em Direitos Humanos pela UFPA, Especialista em Direito Processual Civil e Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RABELO NETO, Luiz Octavio. Incentivos fiscais como instrumento da política de ação afirmativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3051, 8 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20377. Acesso em: 18 abr. 2024.

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