Artigo Destaque dos editores

Lei Ficha Limpa estadual e limites constitucionais de sua produção legislativa.

Análise da inacessibilidade a cargos em comissão por condenados por improbidade administrativa sem trânsito em julgado: o caso da lei catarinense

Exibindo página 3 de 4
08/11/2011 às 13:09
Leia nesta página:

7. Considerações finais

O tema "ficha limpa", no âmbito do discurso jurídico, pode ser abordado entre duas perspectivas de análise: a dos moralistas e a dos constitucionalistas. [25]

Os moralistas seriam aqueles operadores do Direito que olhando para a nossa Constituição e para a cena política brasileira, encontram no princípio da moralidade administrativa, no princípio da probidade, na idéia de vida pregressa ilibada para candidatos, o maior valor a ser perseguido em uma eleição. Para esses operadores, tais princípios, somados ao cânone de proporcionalidade entre bens em conflito (direitos individuais x moralidade), são os principais critérios que devem balizar toda a produção das leis, especialmente uma lei que defina o processo de escolha dos candidatos, através da fixação de hipóteses de inelegibilidades ou de inacessibilidade a cargos ou empregos públicos.

Tais posturas jurídicas são alimentadas pelo sentimento geral da população (e o alimentam em retorno) de descontentamento com a classe política, que é tratada e avaliada não pela média ou excelência de seus representantes, mas sim pelos piores exemplos conhecidos midiaticamente (Paulo Maluf, Eurico Miranda, Jader Barbalho, Joaquim Roriz, etc).

Os raciocínios moralistas partem de particularidades para chegarem a generalizações nada animadoras: se alguns são tão vis e indignos, é preciso todos cuidarem de todos, pois muito mais o serão! O homem é o lobo do homem (Hobbes)! A lei eleitoral deve ser preventiva de improbidades! A presunção reinante é a de desconfiança do candidato e da não confiança na capacidade de escolha do eleitor... Por tais razões, que a justiça eleitoral, que juízes filósofos (Platão), decidam quem deve dirigir as cidades e seus governos! A vontade popular deve ser tutelada pela vontade judicial, essa última orientada pela vontade do legislador.

Os constitucionalistas, por sua vez, são aqueles operadores que veem na Constituição um limite ao exercício arbitrário de poderes públicos ou privados. Para esses a Constituição tem um sistema de direitos fundamentais que deve ser observado na feitura de leis, sem qualquer exceção para as leis eleitorais ou leis administrativas tratantes de provimento em cargo ou emprego públicos. A vontade de Constituição é o fiel da balança a regrar a vontade popular, a vontade do legislador e a vontade judicial. Para esses operadores, entre os direitos fundamentais respeitáveis em qualquer produção do Legislativo ou do Judiciário está a segurança jurídica, a não retroatividade das leis, a presunção de inocência, a razoabilidade da ação legislativa punitiva, o limite anual para incidência de leis novas que alterem o processo eleitoral. E mais: o sagrado direito de receber votos, de candidatar-se, de disputar um mandato público, de exercer um cargo público efetivo ou em comissão é tão importante quanto qualquer direito fundamental como é o de votar; é tão relevante para o regime democrático como a liberdade de ir, vir e ficar é para qualquer regime afastado da barbárie e que caminha rumo ao avanço civilizatório.

Esses operadores constitucionalistas se sustentam na razão (Voltaire), expressa na razão jurídico-constitucional, para ditarem seus comportamentos e decisões jurídicas. Para eles uma Constituição é importante também para as minorias e para conter a fúria e a paixão das maiorias, que, em dados momentos históricos, podem, sem freios constitucionais, desencadear involuções ao argumento de estatuírem progressos.

Pois há épocas em que o ânimo de fazer justiça pode levar a intoleráveis injustiças, como são os justiçamentos passionais e homicidas. Para esses operadores uma Constituição é seguro critério de julgamento em grandes causas públicas na história das nações. É o mastro de Ulysses diante do canto atraente e destrutivo das sereias. Esses homens laboram para a história, e não para o momento; eles plantam carvalhos para o amanhã e não couves para as próximas semanas (Rui Barbosa).

Esse embate entre moralistas e constitucionalistas é salutar para que descubramos, depois das lutas pelas diretas já e pelo impeachment de Collor, que a moralidade é um valor constitucional fundamental, mas não constitui um direito fundamental e não é norma superior as garantias e direitos individuais estabelecidos na Constituição. Aliás, a moralidade administrativa sequer é cláusula pétrea, enquanto os direitos fundamentais o são, por obra da razão que ilumina e não da paixão que cega.

E a moralidade utilizada em alguns dos discursos midiáticos na atualidade brasileira, apesar da diferença de tempo, lugar e regime, parece ser a mesma que justificou o holocausto nazista; a prisão de Oscar Wilde; a discriminação racial que aprisionou Nelson Mandela e matou Luther King; alimentou a fúria do macarthismo no EUA e justificou atos de força e de exclusão política na era de Floriano Peixoto, Getúlio Vargas e do triunvirato militar pós 1964.

Calha ainda pontuar que a democracia não é a vacina definitiva contra a volta da ditadura nem imunidade inexpugnável contra o totalitarismo. E ditaduras e totalitarismos não morrem totalmente por que delas ou de suas cinzas emergiram democracias. Idéias democráticas assombram ditaduras (vejam os tsunamis políticos no oriente médio na crônica atual) e idéias totalitárias ou ditatoriais, convivem, cotidianamente, no seio das democracias com muita mais facilidade e sutileza (EUA, e caça ao terror; Brasil, moralidade pública superior a Constituição e seu regime de liberdades!). Muitas vezes essas idéias são ilusoriamente vendidas como democráticas... e compradas iludidamente como tais, por amplos setores da sociedade civil, imprensa, representações de classe, movimentos sociais, partidos políticos, tribunais, etc...

Isso ocorre em nações onde o debate não é verdadeiramente livre, plurilateral, franco e democrático. Onde o pluralismo de idéias é renegado em nome da unicidade dos dogmas fruto do moral e politicamente correto, a despeito do direito posto. Onde o medo de ser perseguido ou rotulado por suas idéias diferentes é moeda corrente. No Brasil não podemos deixar que tais idéias tenham vida fácil perante o Tribunal da razão e da ciência, como dissemos.

A democracia é o regime que, dialética e respeitosamente, admite o seu contrário (Norberto Bobbio). Mas é o constitucionalismo que lhe assegura a vida e impede o avanço das forças contrárias, mesmo que aclamadas por vontade popular circunstancial que agrida a perene e pétrea vontade constituinte fundacional (Vanossi).

O fiel da balança em uma democracia, que a salvaguarda da emergência de arroubos ditatoriais ou totalitários, ou melhor, de idéias provindas desses matizes, é a existência de uma Constituição democrática e efetiva (Luis Roberto Barroso). Constituição originada de uma constituinte livre, representativa e soberana, guarnecida por uma Corte Constitucional independente e ciosa de suas tarefas institucionais em um regime de direitos fundamentais e separação de poderes.

Corte Superior cujos juízes julguem, acima de qualquer expediente, com base em regras e princípios constitucionais pré-estabelecidos no próprio texto da Constituição. E não se fundamentem em volúveis, difusos, imprecisos e irracionais sentimentos populares vazados por setores da sociedade que nem sempre atentam para o valor de uma Lei Fundamental e seu regime de contenção dos arbítrios de toda sorte - proveiam esses abusos do Poder Estatal ou do Poder Social, ambos poderes constituídos e contidos pela Constituição democrática vigente.

No ânimo de atender a tais propósitos superiores, como integrante da ala constitucionalista do Direito, é que denunciamos, neste artigo, as inconstitucionalidades constatadas na lei catarinense n. 15.381, de 17.12.2010. Na esperança de que reine, acima das paixões, a segurança jurídica, sem a qual a democracia se desmancha e a estabilidade das instituições republicanas se desfaz.


8. Bibliografia.

AGRA, Walber de Moura. Elementos de Direito Eleitoral. São Paulo: Saraiva, 2009.

ARAGON, Manuel. Constitución y Democracia. Madrid : Tecnos, 1990. 138 p.

ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo : RT, 1985. 164 p.

BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro : Renovar, 1993. 429 p.

––––. "A Efetividade das Normas Constitucionais Revisitada". Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro : Renovar, n. 197, jul./set. 1994.

---. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004. 299 p.

COELHO, Marcus Vinicius Furtado. Direito Eleitoral e Processo Eleitoral - Direito Eleitoral e Direito Político. 2ª Ed. Rio de Janeiro: 2010.

CONCEIÇÃO, Tiago de Menezes. Direitos Políticos Fundamentais e sua suspensão por condenações criminais e por improbidade administrativa. Curitiba, Juruá, 2010.

Cordova Júnior,Milton Retroatividade da lei da ficha limpa: O Supremo Tribunal Federal não é o limite". Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2681, 3 nov. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17753>. Acesso em: 3 nov. 2010

DIMOULIS, Dimitri & MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 304 p.

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. A Constituição como Garantia da Democracia: o papel dos Princípios Constitucionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais/Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, ano 11, abr./jun. 2003, n. 44.

---. "A Lei ficha limpa em revista e os empates no STF: as liberdades políticas em questão e o dilema entre o politicamente correto e o constitucionalmente sustentável." In: - George Salomão Leite (coord.) Direitos, Deveres e Garantias Fundamentais. Bahia, Juspodium, 2011p. 781/798, p. 793/794

---.A Lei Ficha Limpa em revista e os empates no STF. O dilema entre o politicamente correto e o constitucionalmente sustentável. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2711, 3 dez. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17925>. Acesso em: 1 maio 2011;

----. STF, insegurança jurídica e eleições em 2012: Até quando o embate entre moralistas e constitucionalistas em torno da lei ficha limpa?. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2827, 29 mar. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/18790>. Acesso em: 2 maio 2011; (iii)

----. Moralistas versus Constitucionalistas – o caso Roriz, no STF – Conjur e Adriano da Costa Soares; setembro de 2010.

---. Conceito de Princípios Constitucionais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. [La teoria delle forme di governo nelle storia del pensiero politico]. Trad. Sérgio Bath, nota Nelson Saldanha, pref. Celso Lafer. 6 ed. Brasília: UnB, 1992. 179 p.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

---. Teoria do Ordenamento Jurídico [Teoria dell’ordinamento giuridico]. Trad. Cláudio de Cicco e Maria Celeste C. J. Santos. São Paulo/Brasília : Polis/UnB, 1989. 184 p.

––. O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito. Trad. de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos R. Rodrigues. São Paulo : Ícone, 1995. 239 p.

---. Teoria da Norma Jurídica, trad. Fernando Pavan e Ariani Bueno. 2 ed.São Paulo, Edipro, 2003, p. 145/176.

---. Estado, Governo e Sociedade: Para uma teoria geral da política.[Stato, Governo, Società. Per una teoria generale della política]. trad. Marco Aurélio Nogueira. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

---. Liberalismo e Democracia. [Liberalismo e Democrazia]. trad. Marco Aurélio Nogueira. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. 100 p.

---. O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 171 p.

---. Teoria Geral da Política – a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra : Almedina, 1992. 1.214 p.

COELHO, Inocêncio Mártires. "Konrad Hesse: uma nova crença na Constituição". Revista de Direito Público. São Paulo : RT, ano 24, n. 96, out./dez. 1990.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo, Martins Fontes, 1990. P. 53/61.

––––. "La Función de la Constitución".Apud Enrique E. Mari et alii. Derecho y Psicoanálisis: teoría de las ficciones y función dogmática. Buenos Aires : Hachette, 1987. 168 p.

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional (Selección). Trad. Pedro Cruz Villalón. Madrid : Centro de Estudios Constitucionales, 1983. 112 p.

––––. Força Normativa da Constituição [Die normative Kraft der Verfassung]. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre : Fabris, 1991. 34 p.

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.

Mello, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 27ª ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 308.

Ramos, Elival da Silva A Inconstitucionalidade das Leis. Vício e Sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. 255 p.

REIS, Márlon Jacinto et all (cords.). Ficha Limpa: lei complementar n. 135 de 04 de junho de 2010 interpretada pelos juristas e responsáveis pela iniciativa popular. Bauru: Edipro, 2010.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes . Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 169

SOARES, Adriano da Costa. http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com:

VERDU, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional – aproximação ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Trad. Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Ruy Samuel Espíndola

Advogado publicista e sócio-gerente integrante da Espíndola e Valgas Advogados Associados, com sede em Florianópolis/SC, com militância nos Tribunais Superiores. Professor de Direito Constitucional desde 1994, sendo docente de pós-graduação lato sensu na Escola Superior de Magistratura do Estado de Santa Catarina e da Escola Superior de Advocacia da OAB/SC. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996). Atual Membro Consultor da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB/Federal e Membro da Comissão de Direito Constitucional da Seccional da OAB de SC. Membro efetivo da Academia Catarinense de Direito Eleitoral, do Instituto Catarinense de Direito Administrativo e do Octagenário Instituto dos Advogados de Santa Catarina. Acadêmico vitalício da Academia Catarinense de Letras Jurídicas na cadeira de número 14, que tem como patrono o Advogado criminalista Acácio Bernardes. Autor da obra Conceito de Princípios Constitucionais (RT, 2 ed., 2002) e de inúmeros artigos em Direito Constitucional publicados em revistas especializadas, nacionais e estrangeiras. Conferencista nacional e internacional sobre temas jurídico-públicos. [email protected], www.espindolaevalgas.com.br, www.facebook.com/ruysamuel. 55 48 3224-6739.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Lei Ficha Limpa estadual e limites constitucionais de sua produção legislativa.: Análise da inacessibilidade a cargos em comissão por condenados por improbidade administrativa sem trânsito em julgado: o caso da lei catarinense. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3051, 8 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20385. Acesso em: 23 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos