7. Considerações finais
O tema "ficha limpa", no âmbito do discurso jurídico, pode ser abordado entre duas perspectivas de análise: a dos moralistas e a dos constitucionalistas. [25]
Os moralistas seriam aqueles operadores do Direito que olhando para a nossa Constituição e para a cena política brasileira, encontram no princípio da moralidade administrativa, no princípio da probidade, na idéia de vida pregressa ilibada para candidatos, o maior valor a ser perseguido em uma eleição. Para esses operadores, tais princípios, somados ao cânone de proporcionalidade entre bens em conflito (direitos individuais x moralidade), são os principais critérios que devem balizar toda a produção das leis, especialmente uma lei que defina o processo de escolha dos candidatos, através da fixação de hipóteses de inelegibilidades ou de inacessibilidade a cargos ou empregos públicos.
Tais posturas jurídicas são alimentadas pelo sentimento geral da população (e o alimentam em retorno) de descontentamento com a classe política, que é tratada e avaliada não pela média ou excelência de seus representantes, mas sim pelos piores exemplos conhecidos midiaticamente (Paulo Maluf, Eurico Miranda, Jader Barbalho, Joaquim Roriz, etc).
Os raciocínios moralistas partem de particularidades para chegarem a generalizações nada animadoras: se alguns são tão vis e indignos, é preciso todos cuidarem de todos, pois muito mais o serão! O homem é o lobo do homem (Hobbes)! A lei eleitoral deve ser preventiva de improbidades! A presunção reinante é a de desconfiança do candidato e da não confiança na capacidade de escolha do eleitor... Por tais razões, que a justiça eleitoral, que juízes filósofos (Platão), decidam quem deve dirigir as cidades e seus governos! A vontade popular deve ser tutelada pela vontade judicial, essa última orientada pela vontade do legislador.
Os constitucionalistas, por sua vez, são aqueles operadores que veem na Constituição um limite ao exercício arbitrário de poderes públicos ou privados. Para esses a Constituição tem um sistema de direitos fundamentais que deve ser observado na feitura de leis, sem qualquer exceção para as leis eleitorais ou leis administrativas tratantes de provimento em cargo ou emprego públicos. A vontade de Constituição é o fiel da balança a regrar a vontade popular, a vontade do legislador e a vontade judicial. Para esses operadores, entre os direitos fundamentais respeitáveis em qualquer produção do Legislativo ou do Judiciário está a segurança jurídica, a não retroatividade das leis, a presunção de inocência, a razoabilidade da ação legislativa punitiva, o limite anual para incidência de leis novas que alterem o processo eleitoral. E mais: o sagrado direito de receber votos, de candidatar-se, de disputar um mandato público, de exercer um cargo público efetivo ou em comissão é tão importante quanto qualquer direito fundamental como é o de votar; é tão relevante para o regime democrático como a liberdade de ir, vir e ficar é para qualquer regime afastado da barbárie e que caminha rumo ao avanço civilizatório.
Esses operadores constitucionalistas se sustentam na razão (Voltaire), expressa na razão jurídico-constitucional, para ditarem seus comportamentos e decisões jurídicas. Para eles uma Constituição é importante também para as minorias e para conter a fúria e a paixão das maiorias, que, em dados momentos históricos, podem, sem freios constitucionais, desencadear involuções ao argumento de estatuírem progressos.
Pois há épocas em que o ânimo de fazer justiça pode levar a intoleráveis injustiças, como são os justiçamentos passionais e homicidas. Para esses operadores uma Constituição é seguro critério de julgamento em grandes causas públicas na história das nações. É o mastro de Ulysses diante do canto atraente e destrutivo das sereias. Esses homens laboram para a história, e não para o momento; eles plantam carvalhos para o amanhã e não couves para as próximas semanas (Rui Barbosa).
Esse embate entre moralistas e constitucionalistas é salutar para que descubramos, depois das lutas pelas diretas já e pelo impeachment de Collor, que a moralidade é um valor constitucional fundamental, mas não constitui um direito fundamental e não é norma superior as garantias e direitos individuais estabelecidos na Constituição. Aliás, a moralidade administrativa sequer é cláusula pétrea, enquanto os direitos fundamentais o são, por obra da razão que ilumina e não da paixão que cega.
E a moralidade utilizada em alguns dos discursos midiáticos na atualidade brasileira, apesar da diferença de tempo, lugar e regime, parece ser a mesma que justificou o holocausto nazista; a prisão de Oscar Wilde; a discriminação racial que aprisionou Nelson Mandela e matou Luther King; alimentou a fúria do macarthismo no EUA e justificou atos de força e de exclusão política na era de Floriano Peixoto, Getúlio Vargas e do triunvirato militar pós 1964.
Calha ainda pontuar que a democracia não é a vacina definitiva contra a volta da ditadura nem imunidade inexpugnável contra o totalitarismo. E ditaduras e totalitarismos não morrem totalmente por que delas ou de suas cinzas emergiram democracias. Idéias democráticas assombram ditaduras (vejam os tsunamis políticos no oriente médio na crônica atual) e idéias totalitárias ou ditatoriais, convivem, cotidianamente, no seio das democracias com muita mais facilidade e sutileza (EUA, e caça ao terror; Brasil, moralidade pública superior a Constituição e seu regime de liberdades!). Muitas vezes essas idéias são ilusoriamente vendidas como democráticas... e compradas iludidamente como tais, por amplos setores da sociedade civil, imprensa, representações de classe, movimentos sociais, partidos políticos, tribunais, etc...
Isso ocorre em nações onde o debate não é verdadeiramente livre, plurilateral, franco e democrático. Onde o pluralismo de idéias é renegado em nome da unicidade dos dogmas fruto do moral e politicamente correto, a despeito do direito posto. Onde o medo de ser perseguido ou rotulado por suas idéias diferentes é moeda corrente. No Brasil não podemos deixar que tais idéias tenham vida fácil perante o Tribunal da razão e da ciência, como dissemos.
A democracia é o regime que, dialética e respeitosamente, admite o seu contrário (Norberto Bobbio). Mas é o constitucionalismo que lhe assegura a vida e impede o avanço das forças contrárias, mesmo que aclamadas por vontade popular circunstancial que agrida a perene e pétrea vontade constituinte fundacional (Vanossi).
O fiel da balança em uma democracia, que a salvaguarda da emergência de arroubos ditatoriais ou totalitários, ou melhor, de idéias provindas desses matizes, é a existência de uma Constituição democrática e efetiva (Luis Roberto Barroso). Constituição originada de uma constituinte livre, representativa e soberana, guarnecida por uma Corte Constitucional independente e ciosa de suas tarefas institucionais em um regime de direitos fundamentais e separação de poderes.
Corte Superior cujos juízes julguem, acima de qualquer expediente, com base em regras e princípios constitucionais pré-estabelecidos no próprio texto da Constituição. E não se fundamentem em volúveis, difusos, imprecisos e irracionais sentimentos populares vazados por setores da sociedade que nem sempre atentam para o valor de uma Lei Fundamental e seu regime de contenção dos arbítrios de toda sorte - proveiam esses abusos do Poder Estatal ou do Poder Social, ambos poderes constituídos e contidos pela Constituição democrática vigente.
No ânimo de atender a tais propósitos superiores, como integrante da ala constitucionalista do Direito, é que denunciamos, neste artigo, as inconstitucionalidades constatadas na lei catarinense n. 15.381, de 17.12.2010. Na esperança de que reine, acima das paixões, a segurança jurídica, sem a qual a democracia se desmancha e a estabilidade das instituições republicanas se desfaz.
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