RESUMO: Trata-se de um artigo que busca, em síntese, trazer à baila as controvérsias trazidas pelo Supremo Tribunal Federal, após a decisão proferida na Reclamação 2138/DF, que entendeu que aos agentes políticos não se aplica a Lei 8.429/92, já que estes agentes se submetem a regime próprio, estabelecido na lei 1079/1950, que prevê as sanções para o crime de responsabilidade. Para tanto, foi necessário, primeiramente, alcançar o correto conceito de agente político para, posteriormente, se discutir a questão da competência para julgar estes agentes, e analisar a questão dos prefeitos e vereadores, que também têm regime próprio previsto no Decreto-Lei 201/67.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 2.1. Abordagem Constitucional; 2.1.1 A Supremacia do Interesse Público sob a ótica dos Direitos e Garantias Fundamentais;2.2 A Aplicabilidade da Lei 8429/92 Aos Agentes Políticos; 2.3 A Questão da Competência; 2.4 A Questão dos Prefeitos e dos Vereadores; 3 Considerações finais; Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Lei 8.429/1992, popularmente conhecida como Lei do Colarinho Branco, veio dar efetividade ao §4º do art. 37 da CFRB/88. Segundo o dispositivo constitucional, os atos de improbidade administrativa provocam a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo da ação penal cabível.
Na doutrina e na jurisprudência, há grande controvérsia quanto à aplicabilidade da Lei 8429/1992. O STF, na RCL 2138/DF, entendeu que quando os atos de improbidade administrativa são tipificados como crime de responsabilidade na Lei n° 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo, não é possível aplicar dois os regimes de responsabilização político-administrativa. Segundo a Corte Suprema, o sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos, não se admitindo a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regulado pela Lei n° 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, "c", (disciplinado pela Lei n° 1.079/1950). Conforme o entendimento do STF, se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituição.
No aludido julgado, o STF entendeu que os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, "c"; Lei n° 1.079/1950), não se submeteriam ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/1992), ou seja, seria competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal processar e julgar os delitos político-administrativos, nas hipóteses do art. 102, I, "c", da Constituição, assim como, por uma interpretação lógica, em todas as demais hipóteses em que a Constituição garante o foro especial por prerrogativa de função.
Este entendimento da Suprema Corte parece não ter sido corretamente interpretado por parte da doutrina que agora sustenta que agentes políticos não respondem por improbidade administrativa. Há ainda quem sustente que este entendimento deve ser estendido aos demais agentes políticos que também têm foro especial por prerrogativa de função no STJ como, por exemplo, o Governador de Estado (art. 105, I, a CFRB/88).
Deve-se destacar que a jurisprudência já começa a sinalizar no sentido de que, como os prefeitos e os vereadores têm um regime próprio responsabilização político-administrativa (Decreto-Lei 201/67), também aos mesmos não se aplicaria a Lei. 8429/1992, já que a aplicabilidade simultânea dos institutos acarretaria em um inaceitável bis in idem.
Não parece ser este o entendimento correto a ser extraído do julgado da Suprema Corte. É o que se passa a analisar.
2. DESENVOLVIMENTO
Primeiramente é necessário definir o conceito de agente político, já que na doutrina, há diferentes definições.
Para José dos Santos Carvalho Filho, agente político é aquele que cuja investidura se dá através de eleição, a quem incumbe a execução das diretrizes traçadas pelo poder público. São os que criam estratégias políticas. [01]
Para Hely Lopes Meirelles o termo "agente político" tem um inclui Magistrados, membros do Tribunal de Contas e membros do Ministério Público. Segundo o autor, "agentes políticos" são aqueles agentes com parcela de poder, mencionados na Constituição Federal. [02]
Parece mais correta, a corrente de José dos Santos Carvalho Filho. O que realmente caracteriza o agente político não é só o fato de serem mencionados na constituição, mas o fato de exercerem efetivamente (e não eventualmente), a função política de governo e administração, de comando e fixação de estratégias de ação.
Agentes políticos, são aqueles que recebem o mister constitucional de traçar os destinos do país. Não obstante os Magistrados e os Membros do Ministério Público ou dos Tribunais de Contas tenham regimes jurídicos próprios, não podem ser conceituados como agentes políticos. Primeiramente porque eles não são escolhidos via processo eletivo. Seu ingresso se dá via concurso público. Suas funções, por disciplina constitucional, muitas vezes, se voltam para uma atividade de controle da própria atividade dos agentes políticos, seja analisando e julgando suas contas, seja ingressando com ações civis públicas para anular os atos lesivos aos princípios da administração, ou para impor determinada sanção por improbidade administrativa.
Isto posto, é possível afirmar que o entendimento do STF quanto à inaplicabilidade da Lei de improbidade aos agentes políticos, não se estende aos membros do Ministério Público, Magistrados, ou Membros dos Tribunais de Contas justamente porque estes não são agentes políticos.
O que resta analisar é a correção ou não deste entendimento do STF.
2.1 ABORDAGEM CONSTITUCIONAL
A improbidade administrativa não é um instituto recente. Com efeito, desde a Constituição do Império, de 1824, em seu art. 133, já se via a preocupação do Constituinte com os atos que importassem em malversação dos princípios basilares da Administração Publica. No artigo supra citado, se previa que os Ministros de Estado poderiam ser responsabilizados pela prática de peita, suborno ou concussão, abuso do poder, ou qualquer dissipação dos bens públicos.
Não se busca aqui fazer uma análise histórica acerca da improbidade administrativa, já que não é este o objetivo do trabalho. Porém, o fato é que as Constituições que se seguiram, também previram sanções para condutas tidas como ímprobas. Até que, em 1965, a Lei 4.771 regulamentou a Ação Popular, propiciando ao cidadão um controle dos atos lesivos ao patrimônio público, o que só fortalece a assertiva de que improbidade administrativa não é um tema de preocupação recente.
Na Constituição de 1988, diversos dispositivos visam proteger a probidade na Administração Pública. Veja-se, por exemplo, o art. 14 §9º, que dispõe que Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de cassação a fim de proteger a probidade na administração. Veja-se ainda o art. 15, V, que prevê a suspensão dos direitos políticos em caso de improbidade administrativa, e o art. 85, V, que reza ser crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atente contra a probidade na Administração.
Importa frisar, porém, que é o art. 37§4º, CFRB/88, a fonte normativa principal sobre a matéria. Conforme o dispositivo, o ato de improbidade administrativa importará em determinadas sanções, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. O que pretende o constituinte, com efeito, é garantir maior controle da atividade administrativa, visando preservar a incolumidade dos princípios comezinhos da Administração Pública, como o da Legalidade, da Impessoalidade, da Moralidade, da Publicidade e da Eficiência (art. 37 CFRB/88), objetivando-se, em síntese, evitar que a atividade daqueles que detém parcela do poder Estatal, se afaste do interesse primário da Administração Pública.
Recorde-se que o interesse primário da Administração Pública não é outro senão o Interesse Público. Nas palavras de José Dos Santos Carvalho Filho, não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social num todo [03].
2.1.1 A supremacia do interesse público sobre a ótica dos direitos e garantias fundamentais
Não obstante o princípio do interesse público seja, hodiernamente, analisado nos livros e manuais de Direito Administrativo, certo é que o aludido princípio remonta suas origens no Direito Constitucional, nomeadamente, em virtude das incessantes marchas revolucionárias que galgaram, de tempos em tempos, os diversos direitos e garantias fundamentais, que a doutrina como um todo, os elenca como sendo direitos de primeira, segunda, terceira, e até já se fala em direitos de quarta dimensão/geração.
Os direitos de primeira dimensão estariam ligados aos direitos de liberdade e propriedade do indivíduo, vale dizer, direitos que refletem um limite à intervenção Estatal, objetivando-se garantir o status quo do indivíduo.
Já os direitos e garantias de segunda dimensão estariam relacionados aos direitos sociais, ou seja, já nesta fase, o que se objetivava era uma intervenção estatal, para garantir ao cidadão um mínimo de dignidade.
Quanto aos direitos de terceira dimensão, estes refletem os direitos trans- individuais, intimamente relacionados com os direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à proteção consumerista, proteção à ordem econômica, proteção à ordem tributária, ao patrimônio público, à ordem urbanística, etc.
Neste presente tópico, o que interessa são os direitos de segunda e terceira dimensão. Como visto, os direitos de segunda dimensão, por traduzirem os direitos a uma prestação, refletem um dever por parte do Estado: Garantir a intangibilidade e a intocabilidade no núcleo consubstanciador do mínimo existencial, pilar de sustentação do próprio princípio da dignidade da pessoa humana. É aqui que podemos dizer que, quando o administrador se distancia do princípio da supremacia do interesse público, seja tangenciando sua atividade administrativa para o interesse público secundário, ou para o seu próprio interesse particular, em contra partida ele acaba se afastando de seu mister constitucional, de garantir o tão sofrido "mínimo" que a sociedade espera, e a constituição lhe garante. E não é muito difícil entender o porquê: Quando o administrador financia, com o dinheiro vindo dos cofres públicos, por exemplo, um "jatinho" para um político se deslocar para outro Estado, ou ainda quando se permite que este mesmo político viaje de primeira classe em um avião fretado e pago com o dinheiro do erário, em contra partida, se está tirando milhares de quilos de arroz e feijão daqueles que, para comer, viajam descalços pela rua, pedindo aos seu pares aquilo que o Estado tem o dever moral e constitucional de prestar.
Não se está querendo dizer que a viajem do político de jatinho não seja, ou possa ser importante, mas, se é importante, nunca será mais do que o direito a uma vida digna, e aqui se inclui, alimentação, saúde, lazer, trabalho, educação, etc. Aliás, direitos garantidos no art. 6º, CFRB/88. É este o liame que liga o princípio da supremacia do interesse público aos direitos e garantias fundamentais de segunda dimensão. O administrador deve pautar sua conduta administrativa de molde a resguardar, primeiramente, os direitos mínimos de todos os cidadãos, de toda a coletividade. Se, e somente se, após resguardo destes valores, sobrarem recursos, aí será possível, discutir para onde estes valores serão revertidos. E aqui se ingressa no direito e garantia fundamental de terceira dimensão.
Como se percebe, os direitos de terceira dimensão estão ligados aos direitos meta individuais, como por exemplo, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, patrimônio público, à proteção consumerista, proteção à ordem econômica, proteção à ordem tributária, ao patrimônio público, à ordem urbanística, etc.
Estes direitos ligados à coletividade como um todo, essencialmente difusos, refletem um dever de atuação proba não apenas do administrador, mas também do próprio cidadão individualmente considerado, já que, o dever de preservar o meio ambiente, por exemplo, pode ser considerado uma "via- de- mão- dupla": Assim como é um direito do cidadão ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado, é dever seu, constitucionalmente previsto (art. 225caput, CFRB/88), protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Do mesmo modo, é possível asseverar que a proteção do patrimônio público é um direito do cidadão, assim como um dever seu. Basta lembrar, do mecanismo de controle que lhe é outorgado através da ação popular (Lei 4.717/65), para pleitear a anulação dos atos lesivos ao patrimônio público. Mas, em contra partida, lembre-se da Lei 8429/92, que em seu art. 3°, prevê a possibilidade de aplicação das sanções da lei de improbidade também àqueles que não são agentes públicos, mas se beneficiaram com o ato de improbidade.
Assim, é possível assegurar que o princípio da supremacia do interesse público está também, intimamente ligado aos direitos e garantias fundamentais de terceira dimensão. E o mais interessante é que agora a obrigatoriedade de se pautar conforme o interesse público, sobre este prisma, não é apenas do administrador, mas também do próprio indivíduo a quem a Constituição lhe garante o direito.
Esta constatação é de suma importância para que se dê prosseguimento à abordagem: A Constituição Federal, quando busca proteger os direitos e garantias individuais de terceira dimensão não distingue se se trata de particular ou de agente público. A preocupação é com a proteção. Ou melhor, com a máxima efetividade da proteção. Como podemos tratar de maneira distinta as respectivas condutas ímprobas, se a própria Constituição assim não o faz?
Quando a CFRB/88, estabelece o foro especial por prerrogativa de função, assim o faz em relação às infrações penais comuns e aos crimes de responsabilidade praticados, por exemplo, pelo Ministro de Estado.
Resta averiguar se, crime de responsabilidade e improbidade administrativa são os mesmos institutos, ou se cada um destes institutos visa resguardar valores distintos. Se alcançarmos a afirmação de que são institutos diversos, efetivamente, por tudo que foi exposto, não se mostra razoável o entendimento do STF, que estabelece uma distinção onde a própria Constituição não prevê.
É o que se passa a analisar.
2.2. A APLICABILIDADE DA LEI 8429/92 AOS AGENTES POLÍTICOS
O STF partiu de uma premissa equivocada para deduzir que a Lei 8429/92 não se aplica aos agentes políticos. Para o STF o crime de responsabilidade e o crime de improbidade se equiparam. Impende refutar esta equiparação, o que, por consequência acarretará em outra conclusão.
Com efeito, é certo que os dois regimes jurídicos protegem a moralidade na Administração Pública, porém as disciplinas normativas têm objetivos constitucionais diversos. O art. 37§4º, CFRB/88, disciplinado pela Lei 8429/92, busca coibir a prática de atos antiéticos e desonestos, aplicando-se aos acusados as sanções previstas em Lei. Frise-se que a cada conduta ímproba, a lei prevê penas específicas, que devem ser aplicadas conforme o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
Por outro lado, quando se fala em crime de responsabilidade, o que se observa é que o objetivo constitucional é muito mais amplo. Basta observar com atenção o art. 85, CFRB/88, que estabelece como crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra a existência da União, o livre exercício dos poderes, o exercício dos direitos políticos, a segurança interna do país, a probidade na administração, dentre outros.
Como se percebe, para o constituinte originário, a improbidade administrativa é apenas um dos atos que ensejam em crime de responsabilidade, em outras palavras, o crime de responsabilidade pode advir de um ato de improbidade, mas também pode advir de um outro ato que atente contra a Constituição Federal, ou seja, improbidade e responsabilidade não se confundem, apesar de um poder dar ensejo ao outro. Trata-se de institutos diversos. Aliás, a própria Lei 1079/1950, que disciplina os chamados crimes de responsabilidade exige um grau de especificidade de condutas muito menor do que aquele que encontramos nas diversas tipificações da Lei de improbidade administrativa (Lei 8429/92).
Veja-se, por exemplo, o art. 5, alínea 6, da Lei 1079/50, que tipifica como crime contra a existência da União, celebrar tratados, convenções ou ajustes que comprometam a dignidade da Nação. Essa aparente imprecisão se explica pela natureza eminentemente política do processo de responsabilização dos agentes políticos. Estas condutas são típicas de quem detém a direção superior do Estado, de quem tem o poder de guiar o destino político do país como um todo. Por isto é que, para que se caracterize este crime, basta que se verifique o mau exemplo por parte do agente político. Verificado o mau exemplo por parte do agente político, a condenação se limitará à perda do cargo e à inabilitação por oito anos para o exercício de função pública, mas sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis, conforme o art. 52, parágrafo único da CRFB/88.
O que se percebe é que os diplomas jurídicos são institutos distintos, mas que não se excluem, podendo até mesmo ser processados separadamente, em processos autônomos, com resultados absolutamente distintos, ainda que advindos do mesmo fato. Isto se dá única e exclusivamente porque a Lei 8429/92, prevê outras sanções que não são previstas para o caso de crime de responsabilidade, como por exemplo, a pena de multa e a indisponibilidade de bens, conforme os arts. 7° e 12, Lei 8429/92.
Essa duplicidade de responsabilização pelo mesmo fato não seria fenômeno desconhecido da nossa legislação. Veja-se, por exemplo, o caso dos servidores públicos que se submetem concomitantemente à responsabilização administrativa, conforme art. 124, L. 8112/90, à responsabilização penal, conforme art.312 e seguintes do CP, além da eventual responsabilização civil, caso causem danos a terceiros, após a ação regressiva por parte do Estado.
O que se quer afirmar é que, nada obsta que se dê uma aplicação simultânea dos institutos jurídicos, nomeadamente quando um diploma estabelecer um tipo de sanção de outra natureza, diferente da sanção aplicada pelo outro diploma. Assim por exemplo, o Ministro de Estado poderia muito bem responder por improbidade administrativa e por crime de responsabilidade. A sanção de perda do cargo com inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública pelo prazo de até 5 anos, seria aplicada por força do art. 2° da Lei 1079/1950, mas a multa, o ressarcimento ao erário, a suspensão dos direitos políticos e a impossibilidade de contratar com o poder público, seriam aplicadas por força dos artigo 12 da Lei 8429/92, sem contar a eventual sanção de natureza penal a ser aplicada, não se cogitando falar em bis in idem.
Isto porque, o artigo 37§4º da CFRB/88, determina que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
2.3. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA
A Constituição assegura a certas autoridades a garantia de responderem por crime comum e de responsabilidade perante foro especial. Para Teori Albino Zavascki, se a Constituição tem por importante essa prerrogativa qualquer que seja a gravidade da infração ou natureza da pena aplicável em caso de condenação penal, não há como deixar de considerá-la ínsita ao sistema punitivo da ação de improbidade, cujas conseqüências, relativamente ao acusado e ao cargo, são ontologicamente semelhantes e, eventualmente até mais gravosas. [04]
Vale recordar que o foro especial por prerrogativa de função não é estabelecido na Constituição Federal para a ação de improbidade administrativa, mas apenas para ação de natureza penal ou por crime de responsabilidade. Aliás, o legislador até tentou estender esta prerrogativa de foro também para a ação de improbidade, quando da edição da Lei 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1° e 2° ao art. 84 CPP. Ocorre que em 15/09/2005, o STF declarou a inconstitucionalidade desta lei, pois o legislador ordinário não poderia ter acrescentado a ação de improbidade administrativa, que não tem natureza penal, ao rol das competências originárias do STF, estabelecidas pela Constituição Federal.
Assim, é de se asseverar que não há foro especial por prerrogativa de função quando se trata de ação de improbidade administrativa. Este é um dos motivos para o entendimento de que os agentes políticos não poderiam responder por improbidade administrativa. É que, seria incoerente que um Ministro de Estado pudesse perder seu cargo ou função, por uma sentença decretada por um juiz de primeiro grau, pois, como bem salientou o Ministro Joaquim em seu voto proferido na RCL 2138/DF, a perda do cargo de Ministro de Estado é uma modalidade de punição típica do elenco dos mecanismos de controle e aferição da responsabilidade política no sistema presidencial de governo. Ou seja, nada obsta que o juiz de primeiro grau conduza a ação de improbidade contra autoridades detentoras de prerrogativa de foro, como os agentes políticos, podendo decretar todas as sanções da Lei 8429/92, salvo a sanção de perda do cargo político.
Esta conclusão, malgrado pareça de difícil visualização, ocorreria naturalmente quando o agente respondesse simultaneamente por ação de improbidade e ação de responsabilidade. E isto porque, a Constituição Federal prevê o foro especial para a ação de Responsabilidade no art. 102, I, c; e como já visto, a ação de responsabilidade prevê a sanção de perda do cargo no art. 2°, da Lei 1079/50.
Em suma, o agente responderá por ação de improbidade perante o juiz de primeiro grau, que decretará todas as sanções da Lei de improbidade, menos a sanção de perda do cargo, que deverá ser decretada pelo Tribunal, onde o agente responde pela ação de responsabilidade.
Se o agente não estiver respondendo simultaneamente por crime de responsabilidade, pelo fato de a sua conduta estar prevista na Lei 8429/92, mas não na Lei 1079/50, a solução não se altera. O Juiz de primeiro grau não poderá decretar a perda do cargo do agente que detém foro especial.
Mas neste caso, deverá se distinguir as situações: Se o juiz de primeiro grau decretar a suspensão dos direitos políticos do agente, após o transito em julgado da ação, caberá ao Tribunal onde o agente detém o foro especial, apenas declarar a perda do cargo. Este é o raciocínio que se dá por analogia ao art. 55,§3°, da Constituição Federal, que determina que a Mesa da casa respectiva declarará a perda do mandato do Deputado Federal ou do Senador quando estes tiverem suspensos seus direitos políticos. A situação aqui é a mesma. Suspensos os direitos políticos do agente político na ação de improbidade decidida pelo juiz de primeiro grau, caberá ao Tribunal respectivo apenas declarar a perda do cargo deste agente, salvo, obviamente, se este agente for Deputado ou Senador, pois ai, por ordem Constitucional, quem declarará esta perda será a Mesa da Casa respectiva.
Diferentemente ocorrerá se o juiz de primeiro grau não decretar a suspensão dos direitos políticos do agente. Neste caso, ao Tribunal não caberá apenas declarar a perda do cargo, mas sim caberá ao Tribunal decidir e decretar a perda do cargo. E isto poderá ocorrer na própria ação de Improbidade. Na hipótese ocorreria uma cisão funcional vertical de competência. O juiz a quo decreta as sanções que entender cabível, no âmbito de sua competência, porém, para julgar e decretar a eventual perda do cargo, deverá declinar a competência para o Tribunal.
Nesta última hipótese, o tribunal não se limitará a apenas declarar a perda do cargo. É o próprio Tribunal, quem decidirá acerca desta perda. Isto porque, como o agente não está com seus direitos políticos suspensos, nada obsta que continue no cargo, e assim poderá o Tribunal respectivo entender. Em outras palavras, por um critério de proporcionalidade, o Tribunal respectivo poderá entender que a conduta do agente, malgrado ímproba, não tenha sido de tal gravidade a ponto de ser decretada a perda do seu cargo.
Não obstante tudo o que foi dito, em decisão publicada em 4 de março de 2010, na RCL 2790/SC, o STJ decidiu que compete ao próprio STJ o julgamento de ação de improbidade administrativa com possível aplicação de perda do cargo contra Governador de Estado.
Tal entendimento se deu porque em 13 de março de 2008, na QO 3211-0, o Supremo Tribunal Federal declarou que compete ao Supremo, julgar a ação de improbidade contra seus próprio membros. Considerou, para tanto, que a prerrogativa de foro, em casos tais, decorre diretamente do sistema de competências estabelecido na Constituição, que assegura a seus
Ministros foro por prerrogativa de função, tanto em crimes comuns, na própria Corte, quanto em crimes de responsabilidade, no Senado Federal.
Por isso, segundo a corte Suprema, seria absurdo ou o máximo do contra-senso conceber que ordem jurídica permita que Ministro possa ser julgado por outro órgão em ação diversa, mas entre cujas sanções está também a perda do cargo. Isto seria a desestruturação de todo o sistema que fundamenta a distribuição da competência.
Esses mesmos fundamentos de natureza sistemática levaram o STJ a concluir que norma infraconstitucional não pode atribuir a juiz de primeiro grau o julgamento de ação de improbidade administrativa, com possível aplicação da pena de perda do cargo, contra Governador do Estado, que, a exemplo dos Ministros do STF, também tem assegurado foro por prerrogativa de função, tanto em crimes comuns (perante o STJ), quanto em crimes de responsabilidade (perante a respectiva Assembléia Legislativa).
Por este motivo, tendo em vista a inafastável simetria com o que ocorre em relação aos crimes comuns (CF, art.105, I, a), para a Corte Superior, há, em casos tais, competência implícita complementar do Superior Tribunal de Justiça.
2.4. A QUESTÃO DOS PREFEITOS E VEREADORES
O STJ no RESP 456649/MG entendeu que determinadas autoridades públicas não são assemelhados aos servidores em geral, por força do cargo por elas exercido, e, conseqüentemente, não se inserem na redução conceitual de agente público do art. 2º da Lei 8.429⁄92, posto encartados na lei que prevê os crimes de responsabilidade.
O agente político, nas palavras do STJ, por exercer parcela de soberania do Estado, atua com a independência inextensível aos servidores em geral, que estão sujeitos às limitações hierárquicas e ao regime comum de responsabilidade. A responsabilidade do agente político obedece a padrões diversos e é perquirida por outros meios. A imputação de improbidade a esses agentes implica em categorizar a conduta como "crime de responsabilidade", de natureza especial.
Por isto, decidiu o STJ que, como o Decreto-Lei n.º 201⁄67, disciplina os crimes de responsabilidade dos agentes políticos (prefeitos e vereadores), punindo-os com rigor maior do que o da lei de improbidade, conclusivamente, os fatos tipificadores dos atos de improbidade administrativa não podem ser imputados aos agentes políticos, salvo através da propositura da correspectiva ação por crime de responsabilidade.
O STJ, no aludido RESP. 456649/MG, concluiu que os agentes políticos, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade, não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da lei de improbidade. O fundamento seria a prerrogativa pro populo e não privilégio especificamente.
Isto porque, para a corte, os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência. São as autoridades públicas supremas do Governo e da Administração, na área de sua atuação.
Impende observar, portanto, que a situação dos que governam e decidem é bem diversa da situação dos que simplesmente administram e executam encargos técnicos e profissionais, sem responsabilidade de decisão e opções políticas, por este motivo, segundo o STJ, os agentes políticos precisam de ampla liberdade funcional e maior resguardo para o desempenho de suas funções.
Em outras palavras, no entender da corte, as prerrogativas que se concedem aos agentes políticos não são privilégios pessoais; são garantias necessárias ao pleno exercício de suas altas e complexas funções governamentais e decisórias. Sem essas prerrogativas funcionais os agentes políticos ficariam tolhidos na sua liberdade de opção e decisão ante o temor de responsabilização pelos padrões comuns da culpa civil e do erro técnico a que ficam sujeitos os funcionários profissionalizados.
Em suma, o STJ definiu que a Constituição Federal inadmite o concurso de regimes de responsabilidade dos prefeitos e vereadores pela Lei de Improbidade e pela norma definidora dos Crimes de Responsabilidade, posto inaceitável bis in idem. Assim, os vereadores e os prefeitos, por responderem por crime de responsabilidade em diploma próprio, não se submeteriam à Lei 8.429/92, devendo também, para estes agentes, se respeitar o foro especial por prerrogativa de função, não podendo estes agentes políticos perderem seus cargos por decisão de um magistrado de primeiro grau.
Não obstante a decisão do Tribunal Superior tenha estabelecido o mesmo critério de julgamento para prefeitos e vereadores, é preciso distinguir as situações destes agentes políticos, justamente porque o Decreto-Lei 201/67 lhes confere tratamentos distintos.
Com efeito, o Decreto- Lei 201/67 apenas define crimes de responsabilidade dos prefeitos. Não define crimes de responsabilidade dos vereadores. Veja-se o art.1º e o art. 4°, que estabelecem:
Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores": (...)
Art. 4º São infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato": (...)
Quando legislador definiu os crimes de responsabilidade, estabeleceu que apenas os prefeitos poderiam praticá-los. Já no art. 4° o legislador previu determinadas infrações político-administrativas, mas, da mesma forma, apenas as definiu para os prefeitos.
No âmbito do Decreto- Lei 201/67, há ampla diferenciação acerca das condutas dos prefeitos e dos vereadores, e, se analisarmos mais detidamente a Lei, não será difícil concluir que o vereador não responde por crime de responsabilidade.
Veja-se o art. 7° e o art. 8°, do aludido Decreto:
Art. 7º A Câmara poderá cassar o mandato de Vereador, quando:
I - Utilizar-se do mandato para a prática de atos de corrupção ou de improbidade administrativa;
II - Fixar residência fora do Município;
III - Proceder de modo incompatível com a dignidade, da Câmara ou faltar com o decoro na sua conduta pública"
Art. 8º Extingue-se o mandato do Vereador e assim será declarado pelo Presidente da Câmara, quando:
I - Ocorrer falecimento, renúncia por escrito, cassação dos direitos políticos ou condenação por crime funcional ou eleitoral;
II - Deixar de tomar posse, sem motivo justo aceito pela Câmara, dentro do prazo estabelecido em lei;
III - deixar de comparecer, em cada sessão legislativa anual, à terça parte das sessões ordinárias da Câmara Municipal, salvo por motivo de doença comprovada, licença ou missão autorizada pela edilidade; ou, ainda, deixar de comparecer a cinco sessões extraordinárias convocadas pelo prefeito, por escrito e mediante recibo de recebimento, para apreciação de matéria urgente, assegurada ampla defesa, em ambos os casos.
IV - Incidir nos impedimentos para o exercício do mandato, estabelecidos em lei e não se desincompatibilizar até a posse, e, nos casos supervenientes, no prazo fixado em lei ou pela Câmara.
Como se vê, os Vereadores podem ter o seu mandato cassado quando praticarem determinadas condutas e dentre estas condutas, se encontra a prática de ato de improbidade administrativa (art. 7°, I), mas não se encontra o crime de responsabilidade.
A questão é de uma clareza meridiana: Como o Decreto –Lei 201/67 não define quais são as condutas ímprobas, deve-se lançar mão da Lei 8.429/92. Assim, o vereador sofrerá a incidência da Lei 8.429/92, mas caberá à Câmara dos Deputados cassar o seu mandato.
Esta conclusão, com efeito, não impede que o magistrado de primeiro grau aplique as demais sanções previstas na Lei 8.429/92, e isto sem que se possa falar em bis in idem, pois, como já visto, o Decreto–Lei 201/67 não prevê os crimes de responsabilidade do vereador.
E mais. Se dentre as sanções aplicadas pelo magistrado estiver a suspensão dos direitos políticos, caberá ao Presidente da Câmara apenas declarar a extinção do mandato do Vereador. Ou seja, nesta hipótese não haverá processo de cassação do mandato. Ocorrido e comprovado o ato ou fato extintivo, o Presidente da Câmara, na primeira sessão, comunicará ao Plenário e fará constar da ata a declaração da extinção do mandato e convocará imediatamente o respectivo suplente, como se infere do art. 8°§ 1°, Decreto –Lei 201/67.
Em relação ao Prefeito, a questão se diferencia pelo fato de o legislador ter previsto expressamente quais as condutas ensejadoras de crime de responsabilidade. Neste caso, a controvérsia remonta àquela mesma prevista para os agentes políticos submetidos ao regime da Lei 1.079/1950, vale dizer, discute-se se crime de responsabilidade e improbidade administrativa são os mesmos institutos ou não. Como já visto, deve-se tê-los como institutos diversos, o que não obstaria a sua aplicabilidade conjunta, simultânea.
De qualquer maneira, uma questão é fora de dúvida, não obstante tenha passado desapercebido pelo STJ: Seja na Lei 8.429/92, ou seja no Decreto- Lei 201/67, não há foro especial por prerrogativa de função para o prefeito. Com efeito, o art. 2° do aludido decreto estabelece que o processo dos crimes definidos no art. 1° é o comum do juízo singular, estabelecido pelo Código de Processo Penal. Ou seja, não há foro especial por prerrogativa de função para os Prefeitos, que devem ser julgados pelo juízo singular.