6.Conclusão
A doutrina que estuda o Direito Tributário precisa adaptar seus discursos e construções teóricas às bases normativas da Constituição Federal de 1988, que criou um novo e singular Estado.
O Direito Tributário do século XVIII, entendido como um conjunto de normas de exceção, ao limitar os superiores direitos individuais, liberdade e propriedade, foi rechaçado pela Constituição. O Constituinte, ao impor amplas funções e deveres sociais ao Estado, determinando uma intervenção profunda e substancial, afastou a ideologia do Estado Liberal. Na mesma linha, restringiu os direitos de propriedade e a própria empresa, que passaram a ser limitados pelo cumprimento de suas funções sociais: interesses individuais protegidos apenas na medida em que cumpram as respectivas funções sociais.
Por outro lado, a Constituição impõe, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: garantir o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º), além de determinar amplas funções estatais na área de saúde (artigo 196, entre outros), educação (artigo 205, entre outros), onde o Estado deve proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência (artigo 23), assistência social (artigo 203 e outros), construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (artigo 23), combate às causas da pobreza e os fatores de marginalização (artigo 23), entre diversas outras normas e princípios espalhadas por todo o texto constitucional [14].
A atuação socialmente relevante do Estado, que é imposta pela Constituição, só é possível com uma arrecadação de recursos ampla, efetiva e funcional, com um avançado aparato, burocrático e normativo, de arrecadação fiscal, incluindo um conjunto de normas e princípios que respaldem esta atividade, principalmente porque a própria Constituição limita a atuação econômica direta do Estado (artigo 173), exigindo, em consequência, que a arrecadação se concentre na tributação, fonte de receita derivada.
A Constituição Federal não deve ser interpretada em tiras, conforme célebre lição do Ministro Eros Roberto Graus. A Constituição deve ser analisada pelo que ela é, abstraindo-se pretensões ou preferências ideológicas do intérprete e mesmo construções doutrinárias ideologicamente contaminadas – na verdade, em maior ou menor grau, todas o são, não existindo uma ciência imparcial, mas, ao menos na interpretação dogmática, deve o intérprete despir-se, em algum momento, dos seus próprios preconceitos e das conclusões de outros intérpretes.
Dizer que a carga tributária é destinada à manutenção de privilégios (Martins, 2000, p. 46-47), além de ser alegação não comprovada, de tomar a exceção pela regra, é questão eventual. Se os recursos não mal alocados ou se há privilégios, o ordenamento jurídico oferece os meios de combater ambas as situações.
É preciso cobrar rigor alhures, não liberalismo aqui [15].
Fato é que a doutrina e a jurisprudência precisam evoluir, adaptar-se a um Estado que é Democrático, de Direito e, ainda, conforme normas expressas da Constituição Federal, Social, que tem e busca amplos objetivos sociais.
Nesta linha, o Direito Tributário não pode ser visto apenas como exceção ao gozo de direitos fundamentais (Lima, 2001, p. 111-118), entendendo-se, por isso, que o interesse a ser protegido pela norma é sempre o do contribuinte. Tal conclusão ignora o Estado fundado pela Constituição Federal de 1988, que é forçado a uma atuação social ampla e efetiva, o que passa por uma ampla arrecadação de recursos. A extensa atuação estatal imposta pela Constituição, só pode ser efetivada com uma ampla tributária consistente, restando evidente que o interesse fiscal também deve ser resguardado e protegido na interpretação da legislação tributária.
A atividade tributária é regra, porque essencial para o cumprimento dos objetivos e deveres impostos aos entes estatais pela própria Constituição.
Não se advoga, por outro lado, o abuso do interesse fiscal, mas o equilíbrio: do mesmo modo que os interesses do contribuinte são protegidos, o interesse fiscal também o é – em ambos os casos, por imposição do ordenamento jurídico.
O equilíbrio só pode ser atingido, no campo hermenêutico, em especial na atuação do julgador, quando se realiza uma interpretação jurídica que respeita, sem distorcer, as normas jurídicas e que pondera, sem excessos retóricos, os dois interesses envolvidos; quando se analisa o ordenamento pelo que é, não pelo que deveria ou poderia ser; e, enfim, quando se tem como regra a exposição de uma fundamentação válida, consistente e intelectualmente honesta, o que passa pelo rigor analítico, não pela dialética erística (em Schopenhauer, não Aristóteles), que convence ou é verossímil por si, independentemente dos argumentos de autoridade jurisprudenciais e doutrinários citados.
No campo da dogmática jurídica, a Constituição, norma hierarquicamente superior, determina que todas as normas gerais sobre matéria tributária, incluindo especialmente a prescrição, sejam tratadas por lei complementar. O Código Tributário Nacional, desde a Constituição anterior, tem status de lei complementar, dispondo sobre as normas gerais em matéria tributária, inclusive sobre a prescrição.
As normas do CTN determinam o marco inicial para contagem do prazo, a constituição do crédito tributário; a consequência da prescrição, a extinção do crédito; e os marcos interruptivos deste prazo. O Código Tributário Nacional, além disso, trata a questão prescricional em bloco e de maneira uniforme, autorizando apenas a prescrição ordinária, não a intercorrente.
Para alterar as normas do CTN, ou para acrescentar outras em matéria de prescrição tributária, necessária a edição de lei complementar. Aceitar que outra espécie de norma trate da matéria, é fazer letra morta do princípio da reserva legal complementar. O princípio da reserva legal complementar é ainda mais rígido que o princípio da legalidade, não se admitindo que qualquer outra espécie de norma, salvo lei complementar (e, óbvio, outra norma da própria Constituição), regule a matéria específica.
Se a Constituição Federal exige exclusivamente norma legal complementar para tratar de prescrição tributária, evidentemente resta afastada a possibilidade de tratamento da matéria por outra norma, seja legal ordinária, jurisprudencial, doutrinária ou consuetudinária.
Ao menos enquanto a premissa constitucional for mantida, exigência de lei complementar para tratar do instituto, é juridicamente inválida, porque inconstitucional, qualquer outra espécie normativa que regule a matéria - não se pode, ao menos dentro de um raciocínio não contraditório, dizer "A" sem admitir "B". O processo lógico que justifica esta conclusão, excluídas considerações políticas ou utilitárias, tem um poder de persuasão irresistível.
Trata-se da única conclusão que mantém a coerência do sistema, sendo inquestionável, ao menos no nosso Estado de Direito, que a Constituição encontra-se no topo da pirâmide normativa, possuindo superioridade formal e material, além de conceder validade às demais normas jurídicas.
Na mesma linha, não se pode admitir que uma determinada espécie normativa seja adequada para criar, dentro do sistema de normas da sua hierarquia, um determinado instituto (prescrição intercorrente), mas não possa delimitá-lo (definir o seu marco inicial). Quem pode o mais, pode o menos. Se a Lei nº Lei nº 11.051, de 29 de dezembro de 2004, não é espécie normativa adequada para fixar o marco inicial do prazo de prescrição intercorrente (e realmente não o é), também não seria adequada para criar o instituto (e também não o é): aqui, do mesmo modo, não se pode dizer "A" sem aceitar "B".
Se o marco inicial para contagem da prescrição intercorrente fixado na lei ordinária é inconstitucional, por inadequação normativa, as demais normas que tratam de prescrição intercorrente da mesma lei também o são, incluindo a norma que inseriu o instituto no ordenamento legal.
Não se pode aceitar esta inversão retórica, que permite a criação da prescrição intercorrente por determinadas espécies de normas, que não são leis complementares, mas impede que estas normas regulem o marco inicial do instituto. Não se pode interpretar a reserva legal complementar de forma seletiva, escolhendo os campos de sua aplicação: a regra constitucional, dentro do seu campo de aplicação, não admite ressalvas.
O título do trabalho, como se percebe ao final, não faz jus ao seu objeto, porque diz menos do que deveria, mas aquilo que diz está correto. A norma exposta no título é inconstitucional, mas a mesma conclusão deve ser estendida às outras normas do artigo 40 da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, pelo menos aquelas que regulam, materialmente, a prescrição intercorrente em matéria tributária. O raciocínio utilizado para declarar a inconstitucionalidade parcial deve ser estendido às demais normas do artigo 40, que autorizam e regulam a prescrição intercorrente.
A alternativa à declaração de inconstitucionalidade, ainda que tecnicamente equivocada, é admitir que, se uma norma jurisprudencial pode delimitar o marco inicial da prescrição intercorrente, uma norma legal, que seguiu corrente jurisprudencial, também o pode – embora, tecnicamente, reitere-se, na moldura normativa constitucional, nenhuma das duas espécies de norma seria adequada para tratar da matéria.
A reserva de lei complementar é tratada com rigor analítico pela jurisprudência, principalmente do Supremo Tribunal Federal, que não faz concessões à aplicação desta exigência constitucional. O STF afastou, em várias oportunidades, normas que impediam, interrompiam ou alteravam de qualquer forma a contagem do prazo prescricional, quando não criadas por lei complementar. Seguindo o mesmo entendimento, seria o caso de afastar as normas que autorizaram a nova espécie de prescrição, já que não respeitaram a exigência constitucional de lei complementar.
No Direito, contudo, o conceito clássico de verdade, correspondência da declaração ou proposição aos fatos, talvez não seja o mais adequado, perdendo espaço para noções como aparência de verossimilhança e maior ou menor poder de convencimento ou persuasão. Por esta razão, não se pretende, com este trabalho, apresentar uma visão definitiva da constitucionalidade das normas que regulam a prescrição intercorrente nas execuções fiscais tributárias.
A conclusão que surgiu deste trabalho foi construída com base em um raciocínio lógico que se evidencia, mas o Direito, campo da argumentação linguística, não se submete totalmente à lógica, e mesmo uma conclusão embasada em procedimento lógico rigoroso pode ser afastada, prevalecendo razões de ordem política, ideológica ou teleológica, desde que defendidas por construções argumentativas com razoável lógica interna e poder de convencimento – as teses majoritárias atuais, no entanto, não preenchem nenhum destes requisitos.
Mesmo que se afaste a conclusão que surgiu ao final deste estudo, é forçoso que se tenha em consideração o processo lógico e analítico que a antecedeu, sendo necessário que a argumentação em sentido diverso, a antítese, explicite sua estrutura, o modo como foi construída, resolvendo, ainda, os problemas de coerência interna da construção argumentativa dominante.
A discussão do assunto na jurisprudência, ao menos até o momento, está marcada pela falta de aprofundamento teórico e análise superficial. Não se pode, dogmática e coerentemente, analisar a constitucionalidade da alegada interrupção, que nem interrupção é, da prescrição intercorrente legal sem analisar as demais normas, nenhuma delas legal complementar, que tratam do instituto.
Não se discute a utilidade e a operacionalidade da prescrição intercorrente, sua importância para o Judiciário e mesmo para as partes, principalmente para o executado, o que a explica, mas não justifica, pois nenhum destes atenuantes tem o condão de afastar a sua inconstitucionalidade e os efetivos prejuízos advindos de sua regulação difusa e indefinida.
A prescrição intercorrente é uma útil e oportuna técnica de controle processual, não interessando ao Judiciário nem à sociedade manter processos em cartório por tempo indeterminado. A utilidade e a importância desta técnica são óbvias, mas se trata de fim que deve ser alcançado com os meios menos gravosos e normativamente adequados. Nada obstante a utilidade do instituto, a Constituição Federal se sobrepõe ao argumento teleológico.
Se a construção hermenêutica que autoriza a prescrição intercorrente nas execuções comuns é questionável, nas execuções fiscais tributárias, onde impera a reserva legal complementar, esta construção é inválida. Dentro do sistema romanista, onde a lei é fonte de direito principal, não pode o Judiciário substituir o legislador, muito menos regular matéria atribuída pela Constituição, de forma privativa, à norma legal complementar.
Por outro lado, de lege ferenda, a prescrição intercorrente em matéria tributária deveria ser inserida no ordenamento jurídico, obviamente, por meio da norma jurídica adequada, lei complementar, respeitando-se a Constituição: lei que deve regular, de forma precisa, o instituto, fixando os parâmetros para sua decretação e um momento definido previamente a partir do qual tem início a sua fluência, que deve ser pontuado nos autos pelo juiz.
A figura da prescrição intercorrente pela ausência de bens penhoráveis, da mesma forma, por legislação complementar, deveria ser criada.
A criação destas normas deve ser discutida na seara própria, no campo das deliberações inerentes ao processo legislativo constitucional, que é aberto a debates não necessariamente dogmáticos. Além de não se tratar, o Judiciário, do Poder estatal ao qual foi concedida a função legislativa, e exatamente por isso, a formação de normas jurisprudenciais é democraticamente fechada: há espaços para o debate dogmático, dentro do qual a norma é criada, mas não existe a análise política nem a participação dos envolvidos nas discussões sobre a operacionalidade das normas [16]. As normas jurisprudenciais, baseadas em abstrações teóricas ou racionalidades próprias, carecem de uma estrutura de discussão democrática.
Então, além da inadequação jurídica, inexiste participação democrática na sua formação, já que a atuação das partes é restrita ao discurso jurídico, não englobando as questões que envolvem o cumprimento das normas, suas consequências concretas e problemas ou dificuldades de operacionalização.
As normas jurisprudenciais, portanto, sob todos os aspectos, são inadequadas para tratar matérias reservadas pela Constituição à regulação por lei complementar.
A aplicação da prescrição intercorrente nas execuções fiscais tem um objetivo claro: diminuir o número de processos em tramitação nos cartórios judiciais. Por esta razão, ao final, não devem prevalecer as teses que defendem a inconstitucionalidade desta espécie de prescrição. Há questões fáticas e operacionais que dificilmente serão ignoradas. Por outro lado, algumas definições mais concretas sobre o instituto, impondo à sua aplicação um mínimo de previsibilidade, podem e devem ser feitas com urgência.
A tomada efetiva de uma posição combativa da Fazenda Pública nesta questão é eventual, e, na verdade, pouco provável, porque a depuração do crédito público, apesar de ser feita por ente, o Judiciário, que não tem esta atribuição, e de utilizar um método inadequado e inseguro, é, apesar de tudo, uma efetiva forma de depuração do crédito, realizada, além disso, por um terceiro, o que afasta a responsabilidade institucional (ainda que, eventualmente, possa dar ensejo a responsabilizações pessoais).
A situação é inusitada, porque o maior prejudicado pela prescrição, o credor, aceita a situação sem uma tomada de posição combativa (ao menos não se tem notícia de atuação efetiva e institucional das Fazendas Públicas buscando a declaração de inconstitucionalidade das normas que tratam da prescrição intercorrente).
Além disso, como dito, o crédito público, sendo de todos, parece não ser de ninguém.
Mesmo consolidada esta situação, ainda que o Judiciário seja, embora não devesse, o responsável principal pela tarefa de depuração do crédito público, não pode continuar a exercê-la da forma que vem fazendo: é preciso fixar parâmetros, alguns sugeridos no decorrer deste trabalho, que garantam um mínimo de segurança jurídica, de previsibilidade, para que esta atribuição seja exercida, se assim o for, com uma proteção, também mínima que seja, ao interesse público.