2.2 A origem da greve no Brasil
O Direito de Greve, sem dúvida, figura como uma das principais garantias fundamentais para os trabalhadores previstas em importantes Constituições pelo mundo. Em especial, no Brasil, esta garantia somente fora estabelecida efetivamente na Constituição de 1988, dentro do rol dos Direitos Sociais ao lado de outros relevantes princípios constitucionais.
Todavia, faz-se importante destacar que no Brasil a greve teve faces distintas, ora com total liberdade, ora um ato ilícito, mas em outros momentos tolerada ou por vezes ignorada, até conquistar sua posição de princípio garantidor. Na evolução das cartas políticas do país pode-se destacar: as Constituições de 1824, 1891 e 1934 omitiram-se completamente, a de 1937 o declarou como recurso anti-social e as constituições de 1946, 1967 e 1969 reconheceram-no com amplas restrições.
Das situações mais obscuras destaca-se a Constituição Federal de 1937 que dizia em seu artigo 139, parágrafo único, “a greve e o lockout[6] são declarados recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional” e também, segundo Arouca (2008, p.46), durante a própria ditadura com o Decreto-Lei nº 1.632 de 1978 que proibiu a greve especialmente nas atividades essenciais, dispondo no seu artigo 3º que
[…] “sem prejuízo das sanções penais cabíveis, o empregado que participar de greve em serviço público ou atividade essencial incorrerá em falta grave, sujeitando-se às seguintes penalidades, aplicáveis individual ou coletivamente, dentro do prazo de 30 (trinta) dias do reconhecimento do fato, independente de inquérito” [...]
Expôs o decreto supracitado em seus incisos diversas penalidades como a rescisão do contrato de trabalho por justa causa e a responsabilização dos dirigentes sindicais, dentre outras.
Embora diante desta linha histórica conturbada o direito de greve no Brasil possuiu alguns momentos que serviram como marcos iniciais para a consolidação do mesmo, como bem versa Brandão (2002, p.2):
Vimos nascer os movimentos operários desde 1888, quando fundou-se a Imperial Sociedade de Artistas, Mecânicos e Liberais, no Recife. Daí, criou-se o Partido Operário em 1892 que já reivindicava sufrágio livre e universal, salário mínimo, jornada de 8 horas e a proibição do trabalho para menores de 12 anos. Pregava ainda a insurreição operária, desejando que estes se apropriassem dos meios de produções como forma de igualdade e justiça sociais, batendo diretamente contra as oligarquias e o coronelismo imperante.
Nos moldes das grandes Revoluções industriais, as greves no Brasil ganharam força representativa nas regiões mais industrializadas, cujo contingente trabalhista era maior e expressivo. Especialmente no final dos anos 70 e em toda a década de 80 as greves aumentaram substancialmente no país, espalhando-se pelo mesmo e provocando a adesão das mais diversas categorias, pontuando-se que já nesta época os sindicatos estavam bem estruturados e se mantinham à frente de todos os crescentes movimentos instaurados em quase todo território nacional.
Em 1978 as greves estiveram fortemente concentradas no setor industrial, ou melhor, na área metalúrgica do ABC, mas rapidamente, no ano seguinte, se espalharam para outros municípios, estados, e outras categorias do setor privado. Em 1979 destacaram-se, além dos metalúrgicos, os trabalhadores da construção civil, médicos e professores. Esses anos representaram o nascimento e a generalização das greves para algumas categorias que continuam sendo as principais até hoje (BOITO JR; NORONHA, 1991, p.121).
Não há como negar que o direito de greve no Brasil desenvolveu-se bastante associado ao sindicalismo que favoreceu em diversos momentos o surgimento de grandes paralisações trabalhistas como forma de defesa de classes protegidas por sindicatos, como exemplifica Gonçalves (2009, p.1):
Talvez um dos pontos mais significativos da fase inicial de todo o sindicalismo brasileiro tenha sido a famosa greve de 1917 que paralisou a Cidade de São Paulo e envolveu 45 mil pessoas. O governo convocou tropas do interior e 7 mil milicianos ocuparam a cidade. O ministro da Marinha enviou dois navios de guerra para o porto de Santos. A repressão foi total sobre os trabalhadores. Num dos choques com a polícia, foi assassinado o operário sapateiro Antônio Martinez. Mais de 10 mil pessoas acompanharam o enterro.
Para Süssekind (2001, p.447), “a história da greve, hoje reconhecida como direito do trabalhador, confunde-se com a do sindicalismo. Mesmo porque ela sempre foi utilizada como um dos processos de atuação dos sindicatos”, referindo-se a defesa dos interesses dos trabalhadores por aqueles representados. Contudo, no curso da história muito antes do aparecimento dos sindicatos, eclodiram algumas greves de trabalhadores, sem que o procedimento fosse, como hoje, admitido pela ordem jurídica.
2.2.1 O Sindicalismo brasileiro
Não há como expor sobre o sindicalismo sem preencher um estudo completo, devido à vasta contribuição histórica do mesmo para efetivação dos direitos trabalhistas no Brasil, sendo, inclusive, peça importante para a concretização do direito de greve no país. Contudo não ficaria completo elucidar sobre o instituto em foco na referida pátria sem dedicar, de forma sucinta, uma pequena parte deste estudo para o sindicalismo, partindo brevemente de sua história até sua efetivação como principal representação dos trabalhadores na busca e defesa de seus direitos, como veremos a seguir.
No Brasil a extinção das Corporações de Ofício foi tardia, talvez pela posição de subordinação que o país enfrentou desde sua colonização até os momentos de império. Segundo Steike (2000, p.1) a Constituição Imperial de 1824 aboliu as corporações em seu artigo 179º e proclamou a liberdade de trabalho e o direito a livre associação permitindo o surgimento da organização de sindicatos.
Embora, no Império, o desenvolvimento industrial no Brasil ainda não fosse tão expressivo a ponto de criar um ambiente propício para o sindicalismo, pode-se pontuar a existência de algumas entidades como a Liga Operária (1870) e a União Operária (1880) que tinham como principal finalidade reunir e defender os trabalhadores que as compunham (STEIKE, 2000, p.1).
Segundo Süssekind (2001, p.343) a primeira lei que tratou da sindicalização foi a Lei nº 979 de 1903 que teve por objetivo a organização dos que dedicavam-se à atividade rural. Somente em 1907 pelo Decreto n. 1637, facultou-se a todas as classes de trabalhadores a formação de sindicatos, inclusive para profissionais liberais, estimulando o surgimento de vários daqueles. Este decreto assegurou o direito de sindicalização com texto que hoje seria compatível com as principais normas da Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre liberdade sindical, de acordo com Süssekind (2001, p.344). Contudo em 1920 diversas associações com caráter sindical surgiram com nítidas influências socialistas e comunistas, a exemplo da Confederação Geral dos Trabalhadores que acabaram sendo extintas pela forte repreensão do governo que era contrário àqueles pensamentos, temendo que estas últimas delineassem as atividades sindicais à época.
Embora com a faculdade de formação de sindicatos, durante bastante tempo, diversas foram as dificuldades enfrentadas pelos líderes sindicais, visto que estavam enfraquecidos pelo desinteresse do governo e dos empresários, possuindo uma inexpressiva pressão. Todavia, segundo Steike (2000, p.2), a partir de 1930, mesmo diante de um quadro desfavorável, iniciou-se o desenvolvimento de uma legislação trabalhista que avançara em 19 de março de 1931 com a promulgação do Decreto n. 19.770, que seria considerada a primeira lei sindical brasileira, logo após a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio no governo de Getúlio Vargas.
O decreto supracitado dispunha sobre a organização sindical, adotando pela primeira vez a unicidade sindical compulsória, o reconhecimento obrigatório dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho com a apresentação de seus respectivos estatutos e outros provimentos. O interesse era fortalecer e instituir sindicatos. Entretanto, a Constituição de 1934, adotando diretrizes filosóficas antagônicas, adotou o princípio da pluralidade sindical em seu artigo 120, mas em contra partida dificultava a pluralidade de representação, pois exigia pelo menos um terço dos que exerciam a mesma profissão na correspondente localidade, o que seria complicado para a realidade social da época, com base no que ensina Süssekind (2001, p.345).
A partir da promulgação da Constituição de 1937, com cunho totalmente totalitário, fora adotado novamente o rígido principio da unicidade sindical, além de subordinar os sindicatos ao Ministério do Trabalho. Ainda de acordo com o autor supracitado, diversos decretos em seguida foram impostos, como o de nº 1.402 de 1939 reforçando a unicidade e determinando a atuação do Estado em todas as fases da vida sindical e o Decreto-lei nº 2.377 de 1940 que instituiu o imposto sindical em favor das entidades competentes da organização sindical e do Ministério do Trabalho.
Sobre a interferência estatal, o controle e forma como funcionavam os sindicatos à época leciona AROUCA (2008, p.44):
A responsabilidade administrativa do sindicato consistia antes de mais nada em seguir o figurino determinado pelo chefe da Delegacia de Policia Social, o temível DOPS, pelo comandante do batalhão, pelo delegado do trabalho, pelos burocratas instalados nas repartições do Ministério do Trabalho e, é claro, pelo titular da pasta.
Eis as condições para seu funcionamento: proibição de qualquer propaganda de doutrinas incompatíveis com as instituições e interesses da Nação, bem como de candidaturas a cargos eletivos estranhos ao sindicato – em outras palavras, cerco contra os comunistas, socialistas e até simplesmente nacionalistas -, e mais, de participação de pessoas estranhas na sua administração; não bastasse tanto, estatuto padronizado, eleição regida conforme figurino oficial, traduzido em portarias, controle de gestão financeira, enquadramento prévio, custeio através de contribuição compulsória administrativa segundos instruções ministeriais, etc.
Perante a Constituição de 1937 fora promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1º de maio de 1943, contudo em relação ao sindicalismo só fez reproduzir a legislação vigente.
A situação das Constituições seguintes não favoreceu de sobremaneira o sindicalismo, a exemplo da Constituição de 18 de setembro de 1946 que deixou para a lei ordinária as questões atinentes à organização sindical e a disciplinação do direito de greve que por ela fora reconhecido e a Constituição de 24 de janeiro de 1967 refletiu as concepções da revolução de 1964, mas logo na primeira emenda constitucional proibiu a greve no serviço público e nas atividades essenciais.
É cediço que durante o período da ditadura militar a atividade sindical fora bastante repreendida, ganhando força os movimentos estudantis que também logo foram pressionados pelos Atos Institucionais e diversos embates entre as Forças Armadas e as guerrilhas. Em 1968 duas grandes greves, de Contagem e Osasco foram reprimidas ferrenhamente. Todavia, nos anos seguintes o que fora visto fora uma forte reestruturação do movimento sindical, especialmente durante a abertura política que acelerou nos anos finais da década de 70.
Outrossim, com o país passando à época por um processo de redemocratização, houve um progressivo afrouxamento do controle governamental sobre a vida interna dos sindicatos, gerando em consequência um aumento representativo do número de sindicatos oficiais e o retorno das grandes greves, especialmente lideradas pelos metalúrgicos do ABC, influenciando outras categorias.
Em 1978 os metalúrgicos da região do ABC abriram um ciclo de greves sem precedentes na história dos conflitos brasileiros. Sua principal característica durante a década foi a incorporação crescente de categorias ou segmentos de trabalhadores que jamais haviam experimentado o confronto direto. Em 1978 foram deflagradas 118 greves, e dez anos depois elas passaram a somar 2188. O número anual de grevistas aumentou sessenta vezes e, entre esses mesmos anos, o número de jornadas não trabalhadas (o indicador síntese de greves) pulou de 1,8 milhão para 132 milhões (BOITO JR; NORONHA, 1991, p.95).
Conjuntamente com a reestruturação dos sindicatos levantou-se a bandeira da autonomia sindical, como expõe Santos (1993, p.129):
[...] sem sombra de dúvida, a questão da autonomia sindical constituiu a principal bandeira levantada pelo movimento sindical no decorrer da década passada. Para uma crescente efetivação de uma práxis considerada adequada aos interesses maiores dos trabalhadores, a autonomia aparece como um objetivo estratégico e determinante. Não é por outro motivo que o desatrelamento dos sindicatos da tutela estatal se afirma, rapidamente, como o objetivo comum e confesso de todas as correntes presentes no mundo sindical. Embora naquela época a afirmação autonomista fosse ainda pouco descolada dos moldes corporativistas, por todo o país os sindicalistas manifestam, quase em uníssono, sua insatisfação com a atual legislação trabalhista, particularmente no que toca às leis de organização sindical e de greve.
Após 1981, a inclinação à autonomia cresceu e se expressou não apenas em palavras, mas no surgimento de organizações fora da estrutura sindical oficial, entre os quais a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), como ensina Santos (1993, p.129).
O desenvolvimento do sindicalismo atingiu seu ápice de liberdade em relação a estrutura estatal com a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, visto que por muito tempo o Estado interferiu na atuação dos sindicatos e os submetia ao controle das Delegacias do Trabalho da União. Com a Carta Democrática em vigência ficou assegurado a autonomia das respectivas associações, contudo manteve o imposição da unicidade sindical, o que constitui uma afronta à liberdade sindical para Süssekind (2001, p.347).
A Assembléia Constituinte brasileira de 1988, apesar de ter cantado em prosa e verso que asseguraria a liberdade sindical, na verdade a violou, seja ao impor o monopólio de representação sindical e impedir a estruturação do sindicato conforme a vontade do grupo de trabalhadores ou de empresários, seja ao obrigar os não-associados a contribuir para a associação representativa de sua categoria (SÜSSEKIND, 2001, p.348).
Conhecer a evolução do sindicalismo, por ser um ponto crucial no desenvolvimento do direito de greve no Brasil, é de suma importância para a compreensão do objeto desta pesquisa. Ademais a Constituição de 1988 delegou em seu artigo 8º, III, a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais das categorias de trabalhadores aos seus respectivos sindicatos e consequentemente o tornou sujeito de responsabilidade.
Neste ponto, a título complementar, vale expor a crítica feita pelo AROUCA (2008, p.45) sobre a autonomia sindical conquistada em 1988 e o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2002 a 2010) que já foi um importante líder sindical, com ampla relevância na atuação dos sindicatos combativos e na instauração dos movimentos grevistas dos metalúrgicos da região do ABC, seguem suas palavras:
A autonomia conquistada em 1988 aparentemente afastou a tutela administrativa do Estado, que reaparece nas ações do Governo Luiz Inácio Lula da Silva, através do registro indiscriminado de sindicatos de carimbo, fundados artificialmente mediante dissociação de agrupamentos já organizados, ou desmembramento territorial, negando o princípio básico do Estado Democrático de Direito, a cidadania – cidadania, no caso, da coletividade e não de meia dúzia de oportunistas que, animados pela receita fácil advinda da contribuição sindical, assumem, sem liderança nem apoio popular, o comando de um sindicato com as bençãos do Ministério do Trabalho, o qual lhe concede o registro diante do propósito assumido de dividir os sindicatos. Nesta linha, querendo recuperar o controle perdido, o Ministério do Trabalho impôs o recadastramento, só aparentemente facultativo, mas que é exigido para o depósito de convenções coletivas, e, usurpando competência do Poder Legislativo, cuidou, a fim de inviabilizar a chamada contribuição confederativa, de regulamentar textos, de lei, velhos, com mais de sessenta anos (Art. 513, aliena e, da CLT) e de grandeza constitucional (inciso IV do Art. 8º), como se deu com a edição da Portaria de nº 160, do Ministro Ricardo Berzoini, derrubada pelo Supremo Tribunal Federal por vício de inconstitucionalidade [..] No entanto, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando dirigente sindical, dizia que o Título V (da Organização Sindical, grifo nosso) da CLT era o AI-5 dos trabalhadores.
Embora não seja foco deste estudo, observa-se que as controvérsias sobre o direito de greve só crescem com o envolvimento do sindicalismo e dos governantes da vez, visto que é típico de quem assume o poder tentar reprimir sucintamente os direitos reivindicativos ou limitá-los, embora hodiernamente esta intenção encontre barreiras nos ditames e garantias da Constituição Federal.
Observa-se através da evolução histórica deste direito e do próprio sindicalismo ciclos de altas e baixas de acordo com os interesses políticos, ressaltando-se que estes interessados em novamente tentar retirar ou limitar a atuação sindical e do direito de greve, esbarram na proteção constitucional, como também do Princípio da Proibição de retrocesso social, citado na introdução deste trabalho.