Sumário: 1. A cultura romana no Brasil - 2. A codificação romana - 3. O Código (Codex) - 4. O Digesto (ou Pandectas) - 5. As institutas - 6. As novelas - 7. A Escola de Recife e o pensamento brasileiro
1. A cultura romana no Brasil
Se examinarmos nosso Código Civil, tanto o atual como o antigo, notaremos que ele tem a mesma estrutura, a mesma distribuição que os demais códigos. Consta de vários livros: Parte Geral, Direito das Obrigações, Direito dos Contratos, Direito das Coisas, Direito de Família, Direito das Sucessões. Artigos há de nosso código iguais aos de algum outro código, parecendo que eles tomaram por base algum código anterior. É o que parece, mas é o que também acontece. Todos eles partiram de código-padrão, denominado “Corpus Juris Civilis”. É o código do direito romano.
Para maior compreensão do direito brasileiro, teremos que fazer história, teremos que voltar à antiguidade, ao antigo Império Romano, que floriu por mais de doze séculos: o berço da civilização ocidental. O direito brasileiro é romano; o povo brasileiro é romano, a cultura brasileira é a cultura romana. Por isso, para compreendermos melhor o Brasil é conveniente voltarmos à antiga Roma. No que tange ao direito, a inspiração romana é ainda mais profunda.
Observemos um pau d’água de nossos bares; notaremos que ele não bebe a cachacinha dele sem derramar três gotas no chão. Não sabe ele o porquê, mas sabe que obedece à tradição, que vem da antiga Roma desde 2.500 anos. Os romanos, muito anos antes de Cristo cultivavam a vinha e produziam vinhos preciosos. Beber vinho era quase uma cerimônia, a que davam o nome de “libação”; erguiam as taças e derramavam três gotas ao chão em homenagem aos deuses: manes, lares e penates. Manes era a invocação das almas dos antepassados, por aqueles que os antecederam, lares era a invocação ao lar, à família, para que esta seja protegida e preservada; penates era a invocação da cultura e das tradições romanas.
O caboclo de nossos sertões não deve saber que o seu costume de enterrar os mortos à beira das estradas vem da Roma anterior a Cristo. Os orientais comem com pauzinhos e os brasileiros com garfo, colher e faca; assim agimos porque era o sistema que os romanos adotavam. A maioria dos brasileiros adota da religião cristã, porque o cristianismo foi a religião adotada pelos romanos nos estertores do seu império.
A noiva que corta o bolo e serve o pedaço ao seu marido e depois aos convidados, e leva o ramalhete de flores ao altar e depois o atira às convidadas não imagina que está continuando os antiqüíssimos costumes romanos, de profundo significado. Os romanos porém eram mais simples; não era bolo, mas pão. Na noite de núpcias os noivos repartiam o pão, significando que comeriam juntos doravante e tudo repartiriam para a vida em companheirismo. O que sobrasse davam aos outros numa demonstração de solidariedade. Seriam doravante companheiros em todas as horas; essa palavra deriva de “cum panis” (com o pão).
Aprendemos desde os primeiros bancos escolares que nosso idioma, a língua portuguesa, é um idioma latino, ou neolatino, vale dizer, oriundo do latim, o idioma falado e ensinado pelos romanos a várias partes do mundo, incluindo-se Portugal, que, naquela época, chamava-se Lusitânia. Com os colonizadores portugueses, o idioma de Roma implantou-se no Brasil. Quem quiser aprofundar-se no estudo de nosso idioma, deverá enfronhar-se no latim, pois nele está a origem do português. Da mesma forma, quem quiser aprofundar-se no estudo do direito brasileiro, imprescindível se torna compreender também o direito romano, que é também a origem dele.
Conforme veremos posteriormente, as invasões bárbaras não abateram a importância do Corpus Juris Civilis, uma vez que, após o impacto inicial, os bárbaros de origem germânica tiveram que elaborar seu direito e tomaram por base o direito romano. Salvado da destruição na Idade Média, o Corpus Juris Civilis está presente nas codificações européias modernas, nas dos países latino-americanos e de muito outros países.
O Corpus Juris Civilis, ou Corpo do Direito Civil, caracteriza-se pelo nítido sentido religioso, como, aliás, o Império Romano do Oriente (ou Império bizantino) apresentava forte influência religiosa. A arte, a filosofia, tudo era impregnado pela religião. O cristianismo transmitiu-se de Roma para Constantinopla, (o islamismo, que hoje predomina na região, surgiu depois), tanto que o Corpus Juris Civilis começa fazendo a invocação de Cristo. A legislação justininéia é intolerante com referência a divergências religiosas, mormente á religião israelita. Por isso, constituiu a base do direito canônico.
2. A codificação romana
O Corpus Juris Civilis é o código do direito romano, surgido não em Roma mas em Constantinopla, por iniciativa do imperador Justiniano, do Império Romano do Oriente. Parece esquisito mas a história do Império Romano nos esclarece. Roma elaborou extraordinária civilização e disciplinada cultura. A criação maior do gênio romano foi porém o direito, e eles o criaram com elevado grau de perfeição. Fala-se que o direito é a criança que nasceu adulta. Era o maior orgulho dos romanos e foi o legado maior deles aos povos que eles conquistaram.
Doze séculos durou esse império fulgurante, mas o fim começou a aproximar-se. Sentindo a insegurança de seu império, o imperador Teodósio dividiu-o em dois. Tinha ele dois filhos, Honório e Arcádio, destinando o Império Romano do Ocidente a Honório e o Império Romano do Oriente a Arcádio, o primeiro com sede em Roma e o segundo com sede em Constantinopla. Aparentemente, Honório ficou com a sede tradicional, mas havia a ameaça dos bárbaros, que já estavam tomando conta da Europa. No ano de 476, os hérulos, povo bárbaro do norte da Europa, tomam Roma e depõem o imperador Rômulo Augústulo, colocando seu rei Odoacro, como imperador de Roma. Foi o fim do grandioso império que se estendeu por todo o mundo ocidental daquela época.
Todavia, o Império Romano do Oriente, com sede em Constantinopla, prosperou. Quando os bárbaros foram invadindo a Itália, muitos romanos fugiram para Constantinopla, levando consigo pergaminhos contendo leis, pareceres, obras de doutrina, jurisprudência e outros documentos jurídicos, salvando então o direito romano. Assim, a queda de Roma representou apenas o fim do Império Romano do Ocidente, mas não de todo o império.
Surge então no Império Romano do Oriente o notável imperador Justiniano, que assumiu o trono no ano de 537 de nossa era. Entre as muitas realizações desse soberano, figura a que o tornou famoso: a recodificação do direito romano, que se encontrava dispersa, apesar de ter havido alguns códigos, como o Gregoriano, o Hermogeniano e o Teodosiano. Dessa tarefa resultou o mais famoso e tradicional código do mundo, conhecido como Corpus Juris Civilis, também chamado código justinianeu. É constituído de quatro partes, cada uma um código em si: Código, Digesto ou Pandectas, Institutas, Novelas.
3. O código (codex)
O “Codex” ou Código foi a primeira parte do Corpus Juris Civilis a surgir, no ano de 529, três anos após a ascensão de Justiniano, por ter sido mais fácil e pela tradição, pois o direito romano já houvera elaborado três códigos anteriores, embora rudimentares: o Gregoriano, o Hermogeniano e o Teodosiano, este último em 438, quase um século antes. Em 528, Justiniano constituiu comissão de dez juristas, presidida por Triboniano, o mais famoso jurista do Império Romano do Oriente, assessorado por Teófilo, ambos mestres da Universidade de Constantinopla. Havia mais oito juristas de alto conceito.
Note-se que o Império Romano do Oriente tinha quatro universidades no século VI, enquanto que as primeiras universidades européias, como as de Bolonha, Paris, Salamanca, Praga, Oxford, Coimbra e outras, surgiram apenas séculos depois.
O objetivo dessa comissão era o de compilar as “leges”, isto é, as “constituições imperiais”, como eram chamadas as leis promulgadas pelos imperadores romanos. Essa compilação recebeu o nome de “codex”= código, dando origem ao nome da sistematização de leis no mundo inteiro. Foi dividida em 12 livros, contendo parte da legislação romana e foi reformulado por nova edição em 534.
O Livro I faz invocação a Jesus Cristo e consagra as fontes do direito. Cuida do direito de asilo e das funções dos diversos agentes imperiais.
O Livro II trata principalmente do Direito Processual.
Os livros III a VIII tratam do Direito Penal.
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Os livros X a XII cuidam do Direito Administrativo e do Direito Tributário.
Pelo conteúdo do “Codex”, nota-se que o Código Civil brasileiro e dos demais países adotaram seu nome, mas não o conteúdo e as divisões, que seguem as do Pandectas.
4. O Digesto (ou Pandectas)
Em seguida, os juristas romanos orientais empreenderam tarefa mais ampla, completa e profunda, surgindo no ano de 533 depois de Cristo, portanto, quatro anos após o Código, nova compilação de escritos, baseada na doutrina. Recebeu essa compilação o nome de Digesto, nome oriundo do verbo latino “digerere” (dispor ordenadamente) e também o de Pandectas, nome este de origem grega, com o significado de “conter tudo”.
Era obra muito vasta, constituída de 50 livros, com muito mais do que os códigos modernos, que se dividiram de acordo com a especialidade. Tinha nove partes, algumas escritas em latim e algumas em grego. São as nove partes:
Parte Geral
Direitos Reais
Obrigações
Direitos Pessoais
Direito das Sucessões
Direito Processual
Obrigações Especiais
Direito Penal
Direito Público.
Era portanto um só código, abarcando todo o direito. O Digesto, ou Pandectas, é obra original, pois antes não havia obras congêneres. Foi como se fosse um tratado de direito, embora seguindo a ordem semelhante à do Código. Foi elaborado por nova comissão, mas também presidida por Triboniano. Surgiu com o nome de “Digesta Justinianum Augusti”
5. Institutas
Foi elaborada por três professores de direito: Triboniano, Teófilo, Crátino. Faz parte do Corpus Juris Civilis, porque se destinava a ensinar o que constava no Código e no Digesto. Baseou-se em obra produzida séculos atrás, as Institutas de Gaio (Século II a.c.). Por ser obra destinada a estudantes de direito elaborada por professores, com fins pedagógicos, as Institutas (ou Instituitiones) eram obra simples, de linguagem clara e objetiva, o que facilitou muito a sua divulgação e adoção. Foram a princípio adotadas nas universidades de Constantinopla, Beirute, Cesaréia e Alexandria.
Essa obra, surgida no mesmo ano do Pandectas, em 533, apresenta as interpreta-ções dos grandes juristas romanos, principalmente Gaio, autor da obra que lhe serviu de inspiração. Era obra mais didática, com nítida natureza pedagógica.
6. Novelas
O quarto livro que compõe o Corpus Juris Civilis, denominado Novelas (Novellae, Autênticas ou Plácida) traz a legislação de Justiniano, não do Império Romano do Ocidente. São as leis bizantinas, emanadas de Justiniano e pertencentes ao Império Romano do Oriente. O nome bizantino deriva de Bizâncio, o primitivo nome de Constantinopla. Como Justiniano assumiu o trono em 537, a maioria das leis são posteriores ao Corpus Juris Civilis, ano de 534, data da segunda edição do Codex; essas leis terminaram em 565, com a morte de Justiniano.
Fazem parte, porém, do direito romano, como componente do Corpus Juris Civilis, uma vez que Justiniano sempre postulou pela fidelidade ao direito da antiga Roma. Como são leis posteriores, modernizaram as leis romanas. A maioria das novelas foram escritas em grego, uma vez que este era o idioma preferido pela cultura bizantina.
Salvou-se assim o direito romano com o Código, o Pandectas ou Digesto, as Institutas, e as Novelas, que constituem o Código Justinianeu. Salvou-se o pensamento e as criações dos jurisconsultos romanos conceituados, como Gaio, Ulpiano, Papiniano, Modestino, Paulo, e tantos outros. Mais do que salvo, o direito romano, por intermédio do Corpus Juris Civilis, prolongou-se pelo mundo atual, incluindo-se o Brasil. O Código Justinianeu inspirou fortemente as Ordenações do Reino, principalmente as Filipinas, que vigoraram no Brasil até 1916, mas se projetou também no nosso revogado Código de 19l6 e no atual, de 2002, quer por meio das Ordenações Filipinas quer pelo Código Alemão no nosso de 19l6, quer pelo Código Italiano no de 2002.
7. A Escola de Recife e o pensamento brasileiro
Acontecimento de magna importância cultural, surgida na academia de Recife, foi a chamada Escola de Recife. Denomina-se “escola” o agrupamento de intelectuais com as mesmas tendências, havendo escolas no direito, na filosofia, nas artes, e em outras formas de pensamento. Quando se fala em “Escola de Recife”, não se refere á Academia de Recife, à Faculdade de Direito, mas ao movimento cultural surgido realmente na Faculdade de Direito de Recife. Era numeroso grupo de intelectuais cultivando o germanismo, realçando o direito alemão e a filosofia alemã. Marcante foi sua influência no pensamento brasileiro. Tobias Barreto, professor da Academia, foi o principal componente, mas, no direito, Clóvis Bevilaqua e mais tarde a maiúscula figura de Pontes de Miranda se realçaram. É fruto dessa escola o maior crítico literário do Brasil, Sílvio Romero.
Deve ser realçada na formação da Escola de Recife a seriedade do ensino do idioma alemão, graças à ação dos padres beneditinos do Convento de Olinda, em que começou a funcionar a Faculdade de Direito. Era como o preâmbulo da Academia e muitos dos grandes acadêmicos de Recife tinham passado pelo Colégio de São Bento.
Importante fator cultural passa quase desapercebido na análise da Escola de Recife. Floresceu ela na época em que se desenvolvia na Alemanha os estudos aprofundados do direito romano, revelando-se o Corpus Juris Civilis, principalmente o Pandectas. Surgiu naquele momento uma plêiade de cultores do direito romano, chamados de “pandectistas”, constituído de grandes juristas. O direito alemão realçou-se sobremaneira, ombreando-se com o italiano e o francês em perfeição e profundidade. Os pandectistas transformaram o direito alemão no sucessor do direito romano, consubstanciado no Corpus Juris Civilis, o código compilado no Império Romano do Oriente.
Essa cultura alemã romanizada penetrou no Brasil pela Escola de Recife, e o esplendor dessa seria mais tarde encontrada no Código Civil Brasileiro de 1916, mas permanece também no Código de 2002. Entre os vários juristas alemães cultivados, figura Rudolf Von Ihering, pandectista dos mais profundos, autor de “A Luta pelo Direito”, obra eleita como a bíblia do movimento germanista de Recife e ainda hoje constitui obra de consulta dos estudantes de direito de todo o Brasil. Vultos insignes dessa tendência revelaram-se Clóvis Bevilaqua e mais tarde Pontes de Miranda.
Não foi tão chocante o encontro de várias culturas no desenrolar jurídico do Brasil. As ordenações do Reino eram reflexos do Corpus Juris Civilis e o novo Código Civil Brasileiro é modelado pelo Código Civil Italiano, que segue com bastante fidelidade os fundamentos romanos. Além do mais, o novo código conservou muito do antigo, mantendo a influência dos pandectistas alemães.
Do embate das variadas culturas, contudo, havia de surgir outra nova entre nós. Nasceu verdadeiramente a cultura brasileira. Com Clóvis Bevilaqua, Teixeira de Freitas, Tobias Barreto e outros juristas, surgiu o autêntico direito brasileiro. Capistrano de Abreu, extraordinário historiador, descobriu os índios e a cultura indianista, revelando-os ao Brasil e despertando o interesse nacional para os temas nacionais. Com Alberto Torres, um dos maiores sociólogos nacionais, surgiram as primeiras análises da sociedade brasileira, estudadas profundamente a partir de suas obras.
A literatura autenticamente brasileira surgiu com dois grandes romancistas, oriundos da Escola de Recife. José de Alencar, acadêmico de Recife, mas formado em São Paulo, ex-ministro da Justiça, com a influência de Capistrano de Abreu, empreendeu a reação nacionalista. Romancista dos maiores de nossa literatura e jurista de alto renome, apesar de sua cultura formada à base européia, principalmente do germanismo, descobriu também o índio, nossos sertões e nossa gente, nossa natureza e costumes, como cenário de sua imaginação, ao iniciar o seu romance o Guarani, imortalizado depois por nosso genial maestro Carlos Gomes:
“Verdes mares bravios de minha terra natal,
onde canta a jandaia na fronde da carnaúba.”
Invocar a terra natal, o seu Brasil, o seu Ceará, os mares verdes, o pássaro essencialmente brasileiro e a carnaúba, só encontrada no Brasil, foi o choque que rompeu as margens da literatura brasileira. A partir das obras de José de Alencar, muitos nomes indígenas entraram na nomenclatura patronímica brasileira, como Iracema, Iara, Paraguassu, Moema, Jussara, Peri, Ubirajara, Moacir, Ubiratan, Tibiriçá, e tantos outros. Mais tarde, Graça Aranha, apresentou importante obra, Canaã, em que retrata a aculturação alemã em Santa Catarina, criando novo ciclo na literatura brasileira com essa obra estimulada pelo germanismo da Escola de Recife e a tendência nacionalista brasileira.