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O mito da incompatibilidade entre democracia e constitucionalismo: análise do pensamento de Stephen Holmes

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01/12/2011 às 16:22

Resumo:


  • Stephen Holmes analisa o conflito entre democracia e constitucionalismo, questionando a compatibilidade entre ambos.

  • O autor argumenta que os compromissos constitucionais prévios não são antidemocráticos, mas sim essenciais para preservar e oportunizar a democracia para as futuras gerações.

  • Holmes exemplifica compromissos constitucionais como a separação dos poderes, a liberdade de expressão e a proibição de auto-escravização, reforçando a importância desses compromissos para a manutenção de um governo democrático duradouro.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

ARGUMENTOS SECUNDÁRIOS

Podemos destacar como argumentos secundários de Holmes os exemplos de compromissos constitucionais prévios que ele cita para defender a tese de que esses compromissos reforçam a democracia. São exemplos de compromissos constitucionais a cláusula da separação dos poderes; a primeira emenda à constituição norte-americana, tratando da liberdade de expressão; e a proibição de auto-escravização, conforme será melhor explicitado a seguir:

Holmes inicia a exemplificação dos compromissos abordando a função permissiva da democracia proporcionada pela separação dos poderes, que é um dos pilares do constitucionalismo e é rotineiramente descrita como uma máquina para previr invasões, evitando a concentração excessiva do poder, pois, com ela, pode um ramo do governo fiscalizar outro, inibindo o despotismo. É útil conceber a separação dos poderes como uma forma de divisão do trabalho, permitindo a especialização de funções apta a enfrentar uma diversidade de problemas sociais. A justificação inicial da separação de poderes enfatiza a sua função de reforçar o poder, a exemplo do argumento de Bodin de que um judiciário independente faria com que o rei, ao realizar dado julgamento, evitasse o ódio do povo, e o argumento de Montesquieu de que a instituição do judiciário evitaria que as partes envolvidas exercessem pressão sobre a coroa. Mas a separação de poderes não é só um reforço para o governo, mas também um sustentáculo para a democracia. Os constituintes democratas inverteram a concepção inicial do princípio e o usaram como uma estratégia pela qual os governados deveriam impor sua vontade sobre seus candidatos ao governo. Assim, em vez de enfraquecer o governo, a separação de poderes ajuda a assegurar condições para um governo popular. Em adição, a separação de poderes é descrita como uma balança de poderes equilibrados, e isso faz com que o governo como um todo seja mais facilmente suscetível a influencias exteriores, da flutuação na opinião pública, o que contribui diretamente para soberania popular.

Carl Shmitt subscrevia o mito de uma fundamental oposição entre limitações constitucionais e governo democrático, mas ele não menciona as conseqüências práticas desse misticismo. É sem sentido falar sobre governo popular separadamente de alguma forma de estrutura legal que permita ao eleitorado ter uma coerente vontade. Por essa razão, os cidadãos democráticos requerem cooperação dos antepassados fundadores do regime. Democracia não é simplesmente a regra do povo, mas sempre a regra do povo dentro de predeterminada direção, de acordo com certos procedimentos pré-organizados.

Holmes exemplifica a primeira emenda como um limite constitucional. A primária função do constitucionalismo é proteger a liberdade de discussão. O controle popular será diminuído, em vez de aumentado, com o afrouxamento dessa restrição pela qual o povo tem liberdade de expressão, associação e imprensa, incluindo o direito de legalmente dissentir das políticas do governo. Holmes cita John Stuart Mill, um teórico democrata que tinha no centro de seu constitucionalismo um sistema de encorajamento à participação da reflexão pública. Democracia é um governo de discussão pública e não simplesmente a execução da vontade da maioria. Os desacordos públicos são um instrumento essencial de um governo popular e, portanto, o legalmente garantido direito de oposição é uma norma fundamental para o governo democrático. A liberdade de opinião consiste, assim, em uma essencial precondição para formação de uma democrática opinião pública.

Os direitos não são concebidos meramente para proteção da minoria, mas também para correção e instrução da maioria, porque tais limites tendem a fazer o governo mais inteligente. Esse argumento é aceito por Mill e Madison. A idéia da possibilidade de restrições ajuda a explicar a contribuição do constitucionalismo para a democracia e a clarificar a relação entre obrigações herdadas e o consentimento expresso.

Os autores da constituição assumiram que as gerações futuras gostariam de viver sob um governo em que a maioria das obrigações surgissem do expresso consenso e, para tornar isso possível, a constituição disciplinou um procedimento para garantir as precondições para um racional consenso, dissenso, debate público, resolução de conflitos sem violência, etc. Os autores conscientemente agiram em nome das gerações futuras e não tiveram a permissão destas. Esse traço paternalista não pode ser eliminado das ações dos fundadores do sistema constitucional. Os limites constitucionais que eles impuseram somente permanecem vinculando enquanto os cidadãos continuam impondo esses limites sobre eles mesmos.

Em seguida, Holmes aborda o autopaternalismo, afirmando que todos os membros de uma comunidade podem compartilhar um objetivo, mas isso só seria possível se eles aquiescessem com arranjos legais que vinculassem as suas vontades e aí estaria a importância de uma constituição democraticamente ratificada. Isso pareceria um caso de autopaternalismo, uma vez que o povo renunciaria sua capacidade de escolha em algumas questões para realizar sua vontade em outras questões. Tal é a função democrática das restrições constitucionais. Holmes cita Thomas Schelling para quem uma constituição é basicamente uma estratégia da comunidade para se autogovernar, mas, na opinião de Holmes, esse conceito de autocomando é muito negativo para capturar a função capacitadora dos compromissos prévios constitucionais. Uma constituição não representa somente uma tentativa dos antepassados para prevenir o comportamento autodestrutivo, mas é também um conjunto de incentivos para encorajar futuros cidadãos a pensarem por eles mesmos. O Autopaternalismo é muito útil para esclarecer a função democrática das restrições constitucionais.

Holmes argumenta, por fim, que as modernas constituições proíbem a auto-escravização, pois um contrato desse tipo seria uma renúncia ao direito de firmar subseqüentes contratos, o que seria uma contradição prática, segundo Mill. Essa é uma norma fundamental do constitucionalismo: alguém não pode voluntariamente concordar em desistir do seu direito de voluntariamente concordar com algo. Essa é a solução para o paradoxo da democracia constitucional: a proibição da venda de si mesmo para a escravidão implica aceitar compromissos prévios, os quais são moralmente permitidos sempre que reforçam a proibição contra a auto-escravização. Os autores da constituição propuseram e as subseqüentes gerações têm aceitado os compromissos constitucionais prévios porque eles são úteis para prevenir todo tipo de autodestruição coletiva. A maioria deve limitar seus próprios poderes para garantir que a vontade da maioria futura permaneça sendo aperfeiçoável. Paine e Jefferson acreditam que a democracia era um sistema orientado para mudança e inovação e, para tanto, seriam necessárias futuras chances de reconsideração e de autocorreção. Madison e Mill aceitavam esse princípio, mas estavam convencidos de que as mudanças benéficas requeriam uma estrutura cuidadosa de condições sob as quais as reformas políticas seriam avaliadas e discutidas. Enquanto proibiam os compromissos prévios que obstruíam a aprendizagem do povo, Locke, Kant e outros endossavam regras constitucionais duráveis, pois reconheciam que tais regras poderiam fomentar a aprendizagem. Os mortos não devem governar os vivos, mas podem facilitar o governo dos vivos por eles mesmos.


ANÁLISE CRÍTICA

O texto de Holmes se constitui em uma defesa bastante interessante dos compromissos constitucionais prévios, embasada em uma teoria com argumentos simultaneamente abstratos e históricos.

Holmes afirmou que esses compromissos prévios constitucionais permitem a democracia para a posteridade e por esse motivo estão legitimados. Ele explicitou a evidência de uma sociedade una, em que gerações se sobrepõem, de forma que uma herda a "dívida política" de outra, o que seria semelhante a uma divisão de trabalho entre as gerações. Com isso, perde força a tese de que uma geração não poderia vincular a outra.

Também fez interessante abordagem da possibilidade de autovinculação, salientando que a adoção de restrições constitucionais não deve ser vista tão só como uma limitação, mas também como uma promoção do próprio governo. No caso da autovinculação a pré-compromissos constitucionais, isso possibilitaria um reforço à democracia das gerações posteriores, que estariam, dessa forma, poupadas de travarem essa discussão a todo momento. Essas limitações constitucionais seriam, portanto, instrumento de uma essencial estabilização política.

Os nominados pré-compromissos levam Holmes a concluir que o constitucionalismo não é incompatível com a democracia, mas sim uma necessidade pragmática para a preservação da própria democracia, citando exemplos bem contundentes desses compromissos, tais como a separação dos poderes, a liberdade de expressão e proibição de auto-escravização, sem os quais não se conceberia, atualmente, um regime democrático.

Poder-se-ia questionar a atribuição de intérprete último dessas restrições constitucionais conferida ao Poder Judiciário e que a atribuição de revisão judicial seria antidemocrática, pois seria contramajotária, isto é, alguns poucos juízes poderiam decidir por uma interpretação que, talvez, fosse de encontro aos anseios da maioria absoluta do Poder Legislativo, o qual exerce a representação popular, de forma que seria mais salutar para o processo político democrático que tais questões fundamentais fossem objeto de permanente e saudável discussão do povo.

Entretanto, como bem expôs Holmes, tal atitude geraria instabilidade e insegurança jurídica, sendo nefasta para a própria democracia e mesmo para os direitos humanos, que poderiam ser comprometidos por uma eventual maioria que ele atribui a qualidade de míope, pois enxergaria apenas benefícios a curto prazo. Tal postura de Holmes privilegia esses compromissos constitucionais, fortalecendo, por exemplo, uma visão protetora dos direitos fundamentais dispostos na constituição, estatuídos na forma de cláusulas pétreas imutáveis até mesmo por supermaiorias, tais como a de 3/5 exigida para a aprovação de uma emenda constitucional no Brasil.

Do rol de cláusulas pétreas estabelecido na constituição brasileira, por exemplo, constam a forma federativa de Estado, a separação dos poderes, os direitos e garantias fundamentais, e o voto direto, secreto, universal e periódico. Esse é um bom exemplo para se constatar o quanto esses compromissos constitucionais são importantes para garantia de um governo de regime democrático.

Ademais, poder-se-ia apoiar a tese de Holmes com a teoria da interpretação construtivista desenvolvida por Ronald Dworkin em “O Império do direito”, de forma que a interpretação desses compromissos não seria um obstáculo para o desenvolvimento de interpretações diversas a serem realizadas pelas gerações futuras, possibilitando o seu desenvolvimento, com a garantia daquele núcleo básico de compromissos que proporcionam a manutenção de um governo democrático duradouro.

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O ponto chave para se compreender o texto é a concepção de democracia adotada por Holmes, o que faz com que ele considere um mito a tese de uma inconciliável relação entre constitucionalismo e democracia.

Segundo o autor, democracia não consiste tão somente em uma regra de governo da maioria, mas sim um governo para o povo e para o bem comum, expressões genéricas, mas que hoje, sem dúvida, não se enquadram na preocupação daqueles autores citados por Holmes que criticavam os compromissos constitucionais prévios, pois neles viam uma forma de manutenção do status quo e dos privilégios do antigo regime, impedindo o progresso do conhecimento humano e o estabelecimento de um real regime democrático, em que as gerações atuais fossem capazes de decidir o seu próprio destino.

Tal preocupação é pertinente, pois seria muito pernicioso para um regime democrático o “engessamento” das gerações futuras com compromissos que lhes fossem totalmente estranhos. Veja-se que os compromissos constitucionais previamente assumidos continuam a ser observados pelas gerações posteriores, que consentem tacitamente com a sua importância para a manutenção de um regime democrático. Essa constatação é perceptível e não impede, por exemplo, a instauração de uma nova constituinte em que o poder constituinte seja ilimitado juridicamente e desvinculado daqueles compromissos. Se tal não acontece é porque aqueles compromissos continuam sendo vistos como importantes para a presente e para as futuras gerações.

Os compromissos constitucionais prévios, com isso, não impedem que as gerações futuras fixem os seus próprios compromissos de governo, mas isso não pode prejudicar aqueles compromissos estabelecidos pelos fundadores da constituição, ao menos que seja instaurada uma nova constituinte.

A tese que entende ser antidemocrática a vinculação das gerações seguintes a compromissos constitucionais previamente estabelecidos deve ceder espaço, portanto, à moderna concepção conferida a esses compromissos constitucionais, pela qual estes, ao invés de manutenção de privilégios odiosos, buscam conferir à posteridade a possibilidade de viver em um regime democrático, garantindo, por exemplo, direitos fundamentais para caracterização de tal forma de regime político, evitando, com isso, que a cada governo transitório, tais compromissos fossem reafirmados e, talvez, abolidos de uma forma que não refletisse o real anseio da maioria, pois o processo político, é certo, possibilita tais deturpações.

Holmes conseguiu explicitar bem os argumentos em defesa desses compromissos prévios constitucionais, desmistificando o paradoxo com que muitos teóricos caracterizam a relação entre constitucionalismo e democracia.

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Sobre o autor
Luiz Octavio Rabelo Neto

Mestre em Direitos Humanos pela UFPA, Especialista em Direito Processual Civil e Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RABELO NETO, Luiz Octavio. O mito da incompatibilidade entre democracia e constitucionalismo: análise do pensamento de Stephen Holmes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3074, 1 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20532. Acesso em: 23 dez. 2024.

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