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O mito da incompatibilidade entre democracia e constitucionalismo: análise do pensamento de Stephen Holmes

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01/12/2011 às 16:22
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A tese que entende ser antidemocrática a vinculação das gerações seguintes a compromissos constitucionais previamente estabelecidos deve ceder espaço à moderna concepção conferida a esses compromissos constitucionais.

O presente estudo, em forma de resenha, propõe-se a analisar o seguinte texto de Stephen Holmes, Professor de Direito da Universidade de Nova York: Precommitment and the paradox of democracy. Edited by John Elster and Rune Slagstad. Constitutionalism and Democracy. Cambridge University Press, 1988.


TEMA

O texto de Stephen Holmes tem por tema a análise do conflito entre democracia, comumente entendida como o poder da maioria, e o constitucionalismo, entendido como um conjunto de limitações ao poder do governo manifestado pela maioria.

O autor procura abordar o paradoxo entre a democracia e os compromissos constitucionais prévios, ou seja, a analisar a compatibilidade entre o constitucionalismo e a democracia, uma vez que determinados compromissos previamente estabelecidos por um constituinte originário, o que comumente se conhece com o nome de cláusulas pétreas, retiram o poder de deliberação e mudança das maiorias formadas posteriormente sobre esses compromissos prévios constitucionais.


PROBLEMA

O autor, no início de seu texto, cita a obra de Laurence Tribe, na qual se faz uma formulação do dilema contramajoritário afirmando que se trata da questão de saber porque uma nação que deposita a legalidade sobre o consenso dos governados deveria escolher constituir sua vida política em termos de compromissos firmados na forma de acordo original deliberadamente estruturado para ser de difícil mudança.

Com isso, Holmes expõe o problema a ser por ele abordado e que consiste em saber: por que um sistema constitucional aprovado vários anos antes deve ter enorme poder sobre a vida dos cidadãos de hoje? Por que uma minoria de cidadãos teve o poder de prevenir emendas à Constituição? A revisão judicial das leis em face da constituição baseada numa suposta fidelidade à intenção dos autores do texto seria compatível com a soberania popular?

Em suma, o autor se propõe a analisar se os compromissos constitucionais prévios são antidemocráticos, já que retiram o poder de deliberação sobre essas matérias pelas futuras gerações, e, em caso negativo, quais motivos legitimam a adoção desses compromissos constitucionais prévios.


TESE

A tese de Holmes é a de que o constitucionalismo não é antagônico à democracia; ao contrário, o constitucionalismo preserva, protege e oportuniza a democracia para as gerações futuras, na forma de compromissos prévios.

Estes compromissos prévios podem ser definidos como leis superiores e princípios, decididos durante a fase de fundação de uma nação, que organizam as funções e os poderes do governo, bem como os direitos e as regras da cidadania.

Para explicitar tal tese, o autor inicia o texto abordando a tensão entre o constitucionalismo e a democracia, dizendo que a concepção de que a função básica da Constituição é remover certas decisões do processo democrático, da decisão da maioria, como, por exemplo, os direitos fundamentais, coloca o constitucionalismo como essencialmente antidemocrático.

Ele então pergunta como um sistema como esse pode ser justificado, dizendo que, por um lado, poderia se aduzir que os direitos fundamentais, como direitos inscritos na natureza, são sobrepostos ao consenso. Alternativamente, poder-se-ia destacar o caráter autodestrutivo da democracia constitucionalmente ilimitada, sendo a Constituição uma forma de limitar o poder do governo, tirando temporariamente o poder da maioria, que pode ser composta por cidadãos míopes, ou seja, que visem prazeres e benefícios somente em curto prazo.

Segundo Holmes, a existência de uma irreconciliável tensão entre constitucionalismo e democracia é um dos mitos do moderno pensamento político. Na verdade, constitucionalismo e democracia se dão apoio mutuamente.

Holmes cita John Ely, o qual também sustenta que as restrições constitucionais, longe de serem antidemocráticas, podem ser reforços à democracia. As cortes são constitucionalmente habilitadas a serem órgãos de defesa da democracia. Os representantes eleitos devem determinar quais valores substantivos devem guiar as políticas públicas, mas em questões de fundamental importância, as cortes exercem um papel de maior responsabilidade, exercendo o controle de constitucionalidade das leis, em reforço ao poder dos eleitores exercido através da limitação da autoridade dos eleitos.

Apesar do avanço da tese de Ely, segundo Holmes, ela é abstrata e não fornece quase nenhum pano de fundo histórico, deixando intocado o mito da fundamental tensão entre constitucionalismo e democracia, tendo em vista que, surpreendentemente, para um grande número de pensadores sérios, a democracia constitucional continua a ser um paradoxo.

Com isso, Holmes entende que a discussão do assunto pode ser promovida por uma maior abstração teórica e por uma maior moldura histórica e, dessa forma, ele aduz, por um lado, que a relação entre constitucionalismo e democracia pode ser clarificada por uma análise da forma em que as restrições em geral podem produzir ou melhorar a liberdade. De outro lado, ele aduz que a disputa entre constitucionalismo e democracia remonta ao século dezoito ou mesmo antes, motivo por que ele inicia uma incursão na história das idéias.


ARGUMENTOS PRINCIPAIS

Essas considerações de Holmes deixam transparecer seus argumentos principais em defesa dos compromissos constitucionais prévios. Dentre os argumentos principais desenvolvidos por Holmes, podem ser destacados os que giram em torno de dois pontos: a) possibilidade de uma geração vincular seus sucessores; b) possibilidade de autovinculação de um indivíduo ou nação.

Em relação ao primeiro ponto, Holmes usa o argumento metafórico da sucessão de dívidas, entendendo que, se alguém herdar de outrem a propriedade, deve também herdar as dívidas, que, no caso, por analogia, seriam os compromissos constitucionais previamente assumidos. Ele concebe a constituição de uma maneira positiva, que possibilita e organiza a vida democrática das gerações futuras e lhe dá certa direção. Os compromissos prévios, assim, não seriam tentativas autocráticas de vincular o futuro, mas sim seriam justificados porque emancipariam as futuras gerações. Os autores da constituição esforçaram-se em criar não apenas um governo popular, mas um governo popular duradouro, vinculando minimamente as presentes gerações para prevenir que essas vinculassem seus sucessores maximamente, em prejuízo da democracia. Contudo, em verdade, as constituições modernas são vistas como um sistema de regras fundamentais que o povo concede a si próprio e disso surge a questão indagando se é possível a autovinculação de um indivíduo ou nação.

Quanto a essa possibilidade de autovinculação, Holmes cita o argumento de que, analogamente à autovinculação de Deus, as restrições não são limitações que diminuem a autoridade do soberano, mas sim expressões da sua real liberdade e poder, pois a autolimitação é não só permissível, mas obrigatória quando mantém e aumenta o poder soberano. Ele aduz, ainda, que a atual e as sucessivas gerações não se tratam de duas partes distintas, sendo que uma geração pode vincular as posteriores pois o povo é uno, constituído tanto por vivos quanto por mortos. Ademais, as constituições modernas são vistas como uma construção que o povo dá a ele mesmo.

Esses argumentos acima sumariados serão melhor explanados na exposição do texto que segue:

Iniciando uma incursão pela história das idéias, o autor fala da proibição contra vinculação do futuro. Ele cita David Humes, que foi quem destacou, já no século dezoito, uma contradição na teoria republicana, que invocava a ficção do contrato social, o que supunha o consenso dos pais para vincular os filhos, mesmo nas mais remotas gerações. Ocorre que tal vinculação não era aceita pelos republicanos, os quais insistiam que uma geração nunca poderia comprometer seus sucessores fixando um esquema constitucional. Na Declaração de Independência, Thomas Jefferson defendeu o mesmo princípio, ou seja, que é direito do povo alterar e abolir uma forma de governo que se tornou destrutiva para a vida, liberdade e busca da felicidade, não podendo uma instituição ou direito ser inalterável. Da mesma forma era o pensamento de Locke, para quem os pais não poderiam vincular seus filhos.

Dessa exposição, vê-se que no fim do século dezoito predominava entre os teóricos a tese contra os compromissos originalmente assumidos por um povo e que não poderiam ser mudados pelas gerações futuras. A fim de esclarecer essa tese, Holmes se concentra na posição desenvolvida por Jefferson e Tomas Paine.

Paine defende que o consenso deve ser o dos vivos e por isso ele faz uma séria crítica à idéia de um sistema constitucional herdado. Segundo Paine, tal direito de vincular as gerações futuras não existe e não somente é imoral, mas impossível. A tentativa de vincular as futuras gerações é uma aberta violação da justiça natural. Paine tem uma concepção de que a democracia seria uma guerra contra o passado, em que a nobreza e todos os privilégios do antigo regime, que era baseado na tradição, reinavam, o que não faz mais sentido atualmente. Ele não aceita a tese de que a tradição poderia poupar as presentes gerações de fazer árduas escolhas, porque o passado estaria cheio de contradições. A democracia, assim, seria um sistema inventivo incansável orientado constantemente em direção a mudanças e reformas, de forma que a presente geração tem um direito ilimitado e ilimitável de instituir um novo modelo de instituições sobre o qual viverá, pois o consenso que legitima qualquer forma de governo somente pode ser o consentimento dos vivos. Tal argumento, portanto, pressupõe uma inconciliável tensão entre constitucionalismo e democracia.

Em seguida, Holmes analisa o pensamento de Thomas Jefferson e a auto-suficiência das gerações. Jefferson explicitamente nega à legislatura o poder de anular liberdades pessoais consagradas na declaração de direitos. Com isso ele aprova as limitações constitucionais do poder. Entretanto, ele foi um constitucionalista inconstante, lançando posteriormente uma intransigente crítica sobre a idéia de compromissos constitucionais prévios (constitutional precommitment) e passando a entender que uma geração não poderia vincular outra. A idéia de perpetuidade seria moralmente repugnante e associada à perpetuação da servidão e dos monopólios, o que deveria ser evitado, juntamente com outros detritos do antigo regime. Dessa forma, Jefferson passou a entender que uma maioria política não poderia contrair débitos que refletissem nas gerações futuras, pois estas teriam o direito de estabelecer a forma de governo e o direito que desejassem.

Após, Holmes enfatiza que o legado do passado e os monopólios hereditários incomodavam Paine e Jefferson, mas tão importante quanto isso era a veneração da ciência. Com o desenvolvimento do conhecimento e o progresso da ciência, as instituições também deveriam mudar para se adaptar às novas circunstâncias e isso derrubava crenças e tornava os compromissos prévios um absurdo epistemológico. Com isso, se um povo acha que sua constituição está ruim ele deve mudá-la. Tal entendimento é compartilhado por Locke, Kant e Stuart Mill, os quais entendem que os compromissos prévios são ilegítimos pois desconsideram a capacidade de conhecimento, aprendizado e evolução das subseqüentes gerações. Entretanto, Holmes aduz que os argumentos desses autores implicam, com algum esforço, em um poderoso argumento em prol dos compromissos prévios, conforme ele exporá.

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Holmes também explicita o pano de fundo da tese de Paine e Jefferson de que nenhuma geração tem o direito de vincular as posteriores. Em outro contexto, entretanto, esses teóricos advogam alguma forma de compromissos prévios constitucionais, embora não duvidem da soberania da maioria. Para abordar os fundamentos desse argumento dos citados teóricos no século XVIII, Holmes faz uma abordagem do que os teóricos dos séculos XVI e XVII escreveram sobre a situação das obrigações herdadas.

Inicialmente, Holmes cita Richard Hooker, que explicou o poder de vinculação das decisões ancestrais. As presentes gerações estão vinculadas pelas decisões de seus antepassados porque os mortos e os vivos constituem um povo ligado pelas mesmas continuidades que unem um único indivíduo por uma era. A defesa de Hooker dos compromissos prévios constitucionais foi essencialmente analógica: assim como qualquer indivíduo, uma nação está vinculada pelos seus votos originários.

Ele cita também Grotius, para quem uma associação, bem como um indivíduo, tem o direito de se vincular por seus próprios atos ou pelos atos da maioria dos membros. Segundo Holmes, nunca houve nenhuma controvérsia sobre o acordo pelo qual um indivíduo se vincula pessoalmente a outro. Entretanto, perplexidades surgem em dois casos: 1) em que um indivíduo tenta vincular outro; 2) quando não havia duas partes envolvidas no contrato, mas somente uma, isto é, quando um indivíduo tenta fazer uma promessa que vincula a si mesmo. Como Holmes já discutiu o primeiro caso, ele passa a tratar do segundo.

Em geral, as modernas constituições que emergiram nos EUA e na França no fim do século XVIII não foram concebidas como tréguas negociadas entre classes ou facções e, de fato, derrubaram a idéia de que a constituição seria uma proclamação unilateral de um monarca absoluto que declara a sua própria soberania. Ao invés de serem apresentadas como trocas de promessas entre partes separadas, as modernas constituições são normalmente descritas como um sistema que o povo dá a ele mesmo. E na relação entre um indivíduo e ele mesmo, entretanto, o poder de vincular implica o poder de libertar. Dessa perspectiva, uma constituição que é vinculante e democrática não parece só paradoxal, mas incoerente.

Holmes desenvolve essa idéia, abordando a tese de que nenhum homem pode ser obrigado por si mesmo. Segundo essa tese, uma promessa vinculatória requer duas partes e não pode ser realizada por uma parte sozinha. Essa posição foi adotada por teóricos tais como Bodin, Hobbes, Pufendorf e Rousseau. Bodin e Hobbes aduzem que ninguém pode vincular a si mesmo porque isso seria em vão, uma vez que esta pessoa poderia se libertar ao seu próprio prazer, sendo, portanto, na verdade, livre. Essa tese é usada por esses dois teóricos para justificar a tese de que o rei não poderia ser obrigado por sua própria constituição. Pufendorf estende esse argumento para incluir a democracia, dizendo que nada poderia prevenir uma democracia de revogar o seu direito fundamental a qualquer momento. Esse argumento foi reformulado por Rousseau, que rejeitou os compromissos prévios por estar preocupado com a transformação moral e psicológica do homem. Não se tratava tanto do argumento de que uma nação soberana não teria o poder de vincular a si própria, mas sim o fato de que o procedimento de elaboração de uma constituição transformaria o homem em uma criatura inteligente e moral e, portanto, periódicas escolhas de direitos fundamentais teriam uma função humanamente redentora.

Vários teóricos anteriores a Paine e Jefferson, dessa forma, preocuparam-se com o problema da possibilidade ou não de uma geração vincular a próxima.

Segundo Holmes, em geral, a promessa de um indivíduo ou geração não pode obrigar outra, mas essa regra tem exceção: um ato de uma geração pode vincular outra somente quando algum homem adquiriu esse direito. Em outras palavras, se alguém herdar o patrimônio de outrem, também deve herdar seus débitos. Dessa forma, diz Holmes, os teóricos do direito natural século XVII argumentavam que os reis estavam obrigados pelas promessas e contratos de seus predecessores porque eles voluntariamente aceitaram o reinado a que essas promessas estavam vinculadas. Uma fina versão desse argumento foi utilizada na obra de Locke, embora Paine e Jefferson tenham invocado, de forma contrária, o argumento de Locke de que os pais não poderiam vincular seus filhos. Ocorre que Locke adotava uma concepção de consenso tácito, entendendo que sempre que alguém aceitasse a herança do contrato original, implicitamente consentia com as condições políticas que fizeram com que o gozo da propriedade fosse possível. Dessa forma, as premissas lockeanas não compeliam a visão intransigente de Paine e Jefferson.

Em um sentido, a proibição contra uma geração vincular a próxima é mais fácil superar que a alegada impossibilidade de um indivíduo ou nação vincularem-se a promessas próprias. Uma contribuição impressionante para resolver esse problema foi dada pela teologia, segundo a qual Deus teria a capacidade de se autovincular e isso seria uma expressão de seu poder e liberdade. Caso contrário haveria uma limitação inaceitável em seu poder e liberdade. Esse argumento teológico foi utilizado por Bodin, que tinha uma posição básica de que nenhum soberano poderia se vincular a promessas por ele mesmo feitas. Essa posição é muito mais flexível do que pode parecer, pois na obra de Bodin há uma lista de restrições que cada soberano deveria impor a si mesmo. Analogamente à autovinculação de Deus, essas restrições não são limitações que diminuem a autoridade do rei, mas sim expressões da sua real liberdade e poder, pois a autolimitação é não só permissível, mas obrigatória quando mantém e aumenta o poder soberano.

Dessa forma, para assegurar obediência às suas próprias leis, deve o soberano limitar sua autoridade, com o que Bodin supera seu entendimento contrário à autovinculação, argumentando que os compromissos prévios seriam um veículo de liberdade, uma estratégia pela qual o soberano poderia mais efetivamente afirmar sua vontade.

Em seguida, Holmes expõe a defesa dos compromissos prévios realizada por James Madison. As duas proibições (contra uma geração vincular as próximas e contra a vontade de vincular a si mesma) foram desafiadas com considerável sucesso. Enquanto que uma promessa de um homem não poderia vincular diretamente outros, indiretamente isso poderia ser feito por meio da propriedade herdada juntamente com as obrigações. Uma vontade, em abstrato, não poderia vincular a si mesma; mas a autovinculação é, na prática, um instrumento indispensável de agência humana. Madison nega que uma constituição é uma obstrução ou peso dos mortos, pois as restrições poderiam promover a liberdade, remediando falhas passadas. Isso não meramente limitaria o poder, mas também criaria e atribuiria poderes ao governo interessado no bem-estar geral. A concepção de Madison estava baseada na idéia de uma divisão intergeracional do trabalho, de forma que uma constituição herdada poderia ser uma autorização para a democracia, bem como um mecanismo de estabilização democrática. Os compromissos prévios, assim, não seriam tentativas autocráticas de vincular o futuro, mas sim seriam justificados porque emancipariam as futuras gerações.

Madison desejava limitar a ameaça a esses compromissos prévios constitucionais que representava a possibilidade de plebiscitos constitucionais periódicos e estava preocupado com as condições psicológicas que prevaleceriam entre a caducidade de uma constituição e a ratificação de outra, um período de instabilidade em que diminuiria a importância do consenso popular e aumentaria o papel do acaso e da demagogia. Para ele, freqüentes assembléias constituintes não transpareceriam os desejos da maioria. Madison não desejava isolar as regras básicas de críticas e reformas, ou seja, ele não advogava a inalterabilidade da constituição, mas tão somente um procedimento de emenda mais dificultoso e mais demorado, que exigisse não uma simples maioria, mas sim uma seqüência de extraordinárias maiorias ao longo de um período de tempo, a fim de desencorajar tentativas de revisão da constituição a cada momento de impasse político, e que as propostas alterações fossem objeto de reflexão mais cautelosa e negociada, proporcionando alterações qualitativamente melhores.

Objetando o argumento de Jefferson de que uma geração não teria o direito de vincular seus sucessores a pagar débitos contraídos anteriormente, Madison se fundamentou nos teóricos do direito natural do século XVII, dizendo que as obrigações financeiras deveria descender de uma geração para outra porque alguns propósitos nacionais só poderiam ser alcançados sobre a base de uma intemporal divisão do trabalho. Se os benefícios são distribuídos através das gerações, da mesma forma os encargos deveriam ser alocados.

Em seguida, Madison considera o direito de propriedade, o qual não é um direito de natural, mas positivo, ou seja, convencional e revogável. Mesmo nesse caso, assembléias periódicas para revogar ou reafirmar esse direito teriam efeitos deletérios, gerando violentas lutas entre aqueles que tivessem interesses opostos e geraria também incerteza.

Jefferson estava insatisfeito com a formal oportunidade de revogar ou emendar a constituição porque ele rejeitava a idéia de consenso tácito para legitimar decisões. Já Madison entendia que o consenso poderia ser inferido de uma omissão da expressa revogação, ou seja, que o consenso tácito seria essencial para fundação da sociedade civil. O majoritarianismo, tão essencial ao esquema de Jefferson, depende da suposição de que os indivíduos, por nascerem na sociedade, tacitamente assentiriam com a regra de que a maioria decide tudo.

Jefferson associava a idéia de governo com uma irreal imagem de gerações presentes descontínuas, mas isso era uma fantasia, tendo em vista que as gerações eram sobrepostas e cada nova geração convivia com a velha, de forma que não seria necessário, segundo Madison, o consentimento da nova geração em relação ao sistema constitucional anterior.

Em seguida, Holmes analisa a relação entre os fundadores do regime constitucional e os cidadãos, dizendo que ao contrário do anseio de Rousseau por uma experiência transformativa moral e psicológica do homem, a fórmula de Paine e Jefferson teria muito mais a ser dito em seu favor, pois os ancestrais deveriam ser mantidos sob controle. Entretanto, como sugere Madison, a idéia de governo livre não está isenta de problemas, pois as decisões do presente em breve pertencerão ao passado. Jon Elster formulou esse paradoxo dizendo que cada geração quer ser livre para vincular seus sucessores, mas não quer ser vinculada por seus predecessores. Jefferson e Paine estavam intoxicados com a ideologia do ilimitado progresso e não conceberam a constituição de uma maneira positiva, como um indispensável instrumento de governo que organizasse a vida democrática futura. Aceitando uma constituição pré-estabelecida, um povo amarra suas próprias mãos, mas isso também o libera de consideráveis encargos.

Uma assembléia constituinte pode ser considerada privilegiada em relação às gerações sucessoras porque estabelece restrições. Entretanto, esses compromissos com o passado não retiram dos descendentes o amplo espaço de inovações e reformas. Ou seja, deve-se conciliar a lealdade com o passado com sensibilidade para o presente. O processo de construção de uma constituição não se esgota quando a assembléia constituinte é dissolvida; na verdade, ele nunca termina, sendo o poder dos autores das gerações posteriores provavelmente maior do que o daqueles dos autores originários, pois os sucessores não são prisioneiros de um determinado momento e da urgente necessidade de colocar fim no caos de uma nação sem soberania.

Segundo Holmes, a dificuldade de vincular uma futura geração não é sempre motivo para celebração, tal como pensavam Paine e Jefferson. Nossa capacidade de comprometer nossos sucessores de uma maneira semi-autocrática pode causar a destruição da democracia. Há um paradoxo e não uma contradição entre os compromissos constitucionais prévios e a democracia. A formula de Paine e Jefferson somente é convincente em curto prazo de relações entre duas gerações. Os autores da constituição, como dito, esforçaram-se em criar não apenas um governo popular, mas um governo popular duradouro, vinculando minimamente as presentes gerações para prevenir que essas vinculassem seus sucessores maximamente. Assim, os compromissos prévios de Madison são, em princípio, igualmente democráticos e majoritários. Para conceder poder às futuras maiorias, uma constituição deve limitar o poder de qualquer maioria dada, evitando que umas gerações roubem de suas próprias sucessoras significativas escolhas.

Uma constituição não apenas impede maiorias, mas também atribui poderes, regulando a forma pela qual esses poderes são empregados. Em geral, as regras constitucionais são possibilitadoras e não incapacitantes e, portanto, é insatisfatório identificar o constitucionalismo exclusivamente como limitação de poder ou, talvez, seja necessário repensar nosso conceito de limitações, que não necessariamente enfraquecem, mas também podem fortalecer. A constituição não só limita o poder, mas também cria e organiza o poder, bem como lhe dá uma certa direção. E o mais importante de tudo é que os limites ao governo podem servir à autonomia governamental, ajudando a criar ou construir uma unidade nacional.

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Sobre o autor
Luiz Octavio Rabelo Neto

Mestre em Direitos Humanos pela UFPA, Especialista em Direito Processual Civil e Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RABELO NETO, Luiz Octavio. O mito da incompatibilidade entre democracia e constitucionalismo: análise do pensamento de Stephen Holmes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3074, 1 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20532. Acesso em: 26 abr. 2024.

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