Capa da publicação Portador de deficiência: a igualdade no mercado de trabalho e o dever do Município
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O dever constitucional do Município em garantir, ao trabalhador portador de deficiência, as prestações materiais necessárias para exercício do direito de igual oportunidade no mercado de trabalho

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11/12/2011 às 13:22
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4. Do descumprimento, pelo Município, do dever constitucional contido no art. 23, II, parte final, da CF/88.

Frente à omissão total ou parcial do Poder Executivo Municipal, em relação ao cumprimento dever constitucional de prestar as garantias necessárias para viabilizar a igualdade de oportunidade ao trabalhador portador de deficiência, o adimplemento pode ser exigido judicialmente?

Para a resposta à questão acima, num primeiro momento, há de ser feita a análise do ponto de vista deôntico. Esta decorre do já exposto e assegura a possibilidade de exigência de adimplemento do dever constitucional em questão – ressalvadas as considerações de cunho financeiro e da relação entre os poderes estatais, que serão levadas a efeito mais abaixo.

Em um segundo momento, há a análise de natureza ideológica, que não se constitui no objeto do presente trabalho, mas em relação à qual podem ser tecidas algumas considerações sem que se perca a direção do texto. Neste sentido, considera-se a classificação ontológica [17], [18] das Constituições formulada por Karl Loewenstein, que as diferencia em: normativas, nominais e semânticas.

A primeira espécie de Constituição é aquela que juridicamente válida [19] e efetivamente integrada na sociedade, o que a torna socialmente eficaz e tem força para submeter o exercício do poder às suas normas. A segunda espécie de Constituição é um texto prescritivo, mas desconforme à realidade do poder, não obstante, possui a força necessária para que tal desconformidade possa ser sanada no decorrer da construção da história. A terceira, a Constituição semântica, é aquela cujas normas prescritivas são submetidas às relações fáticas de poder, tal o nível de desconformidade existente entre o dever-ser nela prescrito e o ser, a realidade fática.

A CF/88 parece não se encaixar totalmente em qualquer delas, encontrando-se numa transição entre a espécie nominal e a espécie normativa. A tendência é de que seja classificada como normativa, uma vez que se percebe um movimento dos estudiosos e dos aplicadores do direito constitucional em dar maior efetividade aos textos constitucionais, especialmente aos direitos fundamentais.

Naturalmente, o problema da força normativa da Constituição também passa pelo problema do sentimento constitucional do povo brasileiro em relação ao respeito à imperatividade e obrigatoriedade da mesma. Segundo Loewenstein, em sua obra Teoria da Constituição,., há uma "alarmante indiferencia de la masa de los destinatários del poder frente a la constitución, actitud psicológica que puede conducir, finalmente, a uma atrofia de la conciencia constitucional" [20]. Conforme o citado autor, "Existen naturalmente grados de apego y de indiferencia de um pueblo a su constitución. Es evidente que una constitución necesita tiempo para fijarse en la conciencia de una nación. Cuanto más tiempo haya estado en vigor tanto más habrá aprendido la comunidad a vivir sus ventajas y desventajas" [21].

O povo brasileiro, aos poucos, tem descoberto a sua Constituição e os textos garantidores nela prescrito. Lentamente, os destinatários dos direitos fundamentais vão tomando consciência destes, bem como da vinculabilidade e eficácia que lhes são inerentes. Este evoluir, em direção a uma consciência constitucional mais sólida, vai conferindo legitimidade ao texto constitucional e, ao mesmo tempo, obrigando os detentores do Poder Constituído, dentre eles, os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, a reler os textos constitucionais com vistas a dar maior efetividade jurídica e social aos mesmos.

Aliando-se a linha ascendente de consciência constitucional aos direitos fundamentais postos em linguagem prescritiva no Texto Constitucional de 1988, é possível vislumbrar, para o futuro, maior força normativa [22] do texto constitucional de 1988. Ou seja, há uma crescente possibilidade de as pessoas legitimadas para tanto exigir dos municípios brasileiros – e dos demais membros do Estado Federal – as garantias necessárias, às pessoas portadoras de deficiência, para o exercício dos direitos fundamentais, dentre eles o de ter igualdade de oportunidade para o acesso ao trabalho.


5. Da reserva do possível orçamentário

Não obstante, o exposto no item anterior, a imposição constitucional ao Poder Executivo municipal decorrente dos arts. 7º XXXI e 5º, §1°, combinados com o art. 23, II, parte final, da CF/88 pode sofrer algumas limitações, também de natureza constitucional.

É cediço que de todo direito caráter prestacional material decorre um custo financeiro - daí a existência das competências tributárias e das normas que regulam a atividade orçamentária. Muitos autores consideram utópico atribuir um dever ao Estado sem levar em consideração o correspondente custo a ele relativo. Por isso, a doutrina e a jurisprudência [23] têm admitido certo limite de natureza financeira ao direito fundamental às prestações materiais: a existência ou a falta de recursos financeiros.

Este limite fático é tratado pela teoria da reserva do possível e apresenta-se como um obstáculo para o desenvolvimento e a efetivação judicial dos direitos a prestações materiais. A tarefa de destinar recursos financeiros para uma ou outra prestação estatal é atribuída ordinariamente ao Poder Executivo de cada ente federativo. Todavia, segundo o Supremo Tribunal Federal, quando tal dever estiver prescrito no próprio texto constitucional e o poder ordinariamente competente não tiver tomado as providências necessárias para implementar as prestações havidas por obrigatórias, extraordinariamente, o Poder Judiciário poderá obrigar o Poder Executivo a agir conforme o Texto Maior. E este é exatamente o caso da garantia prescrita no art. 23, II, combinada com o direito constante do art. 7º, XXXI, da CF/88.

Quanto ao município possuir ou não os recursos necessários e suficientes para a prestação das garantias devidas ao trabalhador portador de deficiências - pressupondo este controle jurisdicional admitido pelo STF – não se admitirá a demissão pura e simples do dever constitucional, sob a alegação de falta de recursos. Para que este argumento tenha lastro e não caracterize a tentativa de legitimar a omissão estatal frente à vontade do constituinte, há de ser comprovado pelo município, em juízo, a real inexistência de recursos, bem como os motivos para a não alocação dos recursos orçamentários não vinculados à rubrica prescrita no texto constitucional como caráter de fundamentalidade.

Note-se que o assunto tratado neste tópico soma-se ao tratado no tópico anterior, para apontar um novo posicionamento da Corte Suprema Brasileira, em direção a conferir maior efetividade aos direitos fundamentais prestacionais, bem como a possibilidade de controle jurisdicional da ineficácia dos direitos fundamentais quando o dever de implementá-los decorrer diretamente do Texto Maior.


6. Da separação dos poderes

Outro ponto polêmico relativo à eficácia dos direitos fundamentais prestacionais, que se alia aos dois últimos tópicos tratados neste trabalho, é a possibilidade ou não de interferência do Poder Judiciário na função de outro poder, o Poder Executivo.

O princípio da separação de poderes está baseado nas lições de John Locke e de Montesquieu. A essência das lições deste último está em que o poder deve controlar o poder. Ele não fala que os poderes do Estado devam ser absolutamente separados, entre si, mas que para ser alcançado um Estado Moderado (contrário ao Estado Despótico) faz-se necessário um equilíbrio entre os poderes estatais [24]. Destas idéias nasceu a teoria americana dos freios e contrapesos.

A doutrina da separação dos poderes foi elaborada segundo a ótica liberalista. Após o período do estado liberal, a história revelou a forma do Estado intervencionista. As Constituições passaram a prescrever novos direitos, os chamados direitos de segunda e terceira gerações, prescrevendo ao Estado um novo conjunto de atribuições frente aos seus cidadãos. Por conseqüência, aliada à maior atuação administrativa e legislativa do Estado, estas novas Constituições (chamadas por Canotilho de "Constituições Dirigentes’) também criaram novo campo para o controle dos atos legislativos [25] e administrativos [26]; controle este feito, em regra, pelo Poder Judiciário. Quanto mais dirigente a Constituição (Canotilho), maior o campo para ação/omissão estatal e, portanto, maior o campo para o controle da validade do comportamento estatal frente ao texto constitucional.

Por adequadas, citam-se as lições de Andréas Joachim Krell: "A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais." [27]

No mesmo sentido o entendimento do Ministro Celso de Melo em decisão monocrática proferida no ADFP n. 45/04, (no contexto ele refere-se ao cabimento da via judicial eleita para fins de controle de políticas públicas) in verbis:

"(...) não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.

Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional:

"DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPOR-TAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.  - O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.

- Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.

.......................................................

- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental." (RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)"

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Em função do exposto neste item, bem como no anterior, é necessário concluir com o Supremo Tribunal Federal que, quando o dever de fazer ou não fazer estiver prescrito no próprio texto constitucional e o poder ordinariamente competente tiver agido, ou, não tiver tomado as providencias necessárias para implementar as prestações havidas por obrigatórias, o Poder Judiciário poderá controlar o agir ou a omissão e obrigar o Poder Executivo a agir conforme o Texto Maior, sem que isso configure-se como interferência indevida de um Poder em outro.


7. Conclusões

1. A CF/88 prescreve como direito fundamental da pessoa portadora de deficiência a liberdade ao trabalho e a igualdade de oportunidade formal ao trabalho (art. 1º, III, IV, art. 5º, caput, art. 6º e art. 7º, XXI).

2. Os direitos supra têm como garantia a superação das dificuldades impostas faticamente pela deficiência que tal pessoa trabalhadora possui.

3. O art. 23, II, parte final, impõe ao Município, de modo autônomo em relação aos demais entes políticos federativos, o dever constitucional de prestar as providências necessárias para o fim de garantir os direitos fundamentais referidos no item 1.

4. O dever constitucional em questão decorre da relação condicional que os direitos fundamentais e as providências materiais possuem entre si.

5. A dimensão do dever de prestar tem relação direta com a natureza da deficiência de cada pessoa, condicionado somente pela inexistência comprovada de recursos financeiros e a impossibilidade constitucional de redimensionamento de verbas orçamentárias em função de vinculação de recursos, pelo Texto Maior, a outras prestações estatais.


8. Referências Bibliográficas

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Sobre a autora
Dâmares Ferreira

Advogada. Professora universitária. Mestre em Direito e doutoranda em Direito Constitucional pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Dâmares. O dever constitucional do Município em garantir, ao trabalhador portador de deficiência, as prestações materiais necessárias para exercício do direito de igual oportunidade no mercado de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3084, 11 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20577. Acesso em: 25 nov. 2024.

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