6. Princípio do Não Improviso
Antes de se adentrar o referido postulado no âmbito jurídico, faz-se necessário realizar breve consideração sociológica sobre a nação brasileira neste aspecto.
O sociólogo Sérgio Buarque de Holanda assevera em Raízes do Brasil que "[...] a colonização do Brasil foi promovida pelo espírito do português aventureiro, que exibe a mobilidade e a adaptabilidade, que nega a estabilidade e o planejamento [...]" 57
Os portugueses orientaram prioritariamente a ocupação do Brasil colônia com a instalação de vilas na costa, pois isto facilitava o transporte de mercadorias para o porto e seu envio a Portugal. Prevalecia a intenção aventureira e não de planejamento.
A atitude do colonizador português tinha mais do espírito aventureiro da exploração de riquezas em função também do fato de a coroa portuguesa ter optado pelo sistema das capitanias e ter doado terras aos donatários, e pelo surgimento de cidades não ter se dado por uma orientação racional.
Ainda hoje, e, com este ranço histórico, quando se fala com orgulho do jeitinho brasileiro, está-se referindo à improvisação, à crença de que no final, dá tudo certo, ainda corrente, como se isto fosse qualidade de nossa gente e de nossa sociedade. É como se, pairasse no inconsciente coletivo do brasileiro uma mentalidade de substituir o conhecimento consciente e elaborado, por uma atitude irrefletida, e, isso fosse uma vantagem.
Considerando o que foi exposto, retoma-se o cerne do postulado ora em análise, devendo-se registrar, de início, que o lema Planejar para Prevenir adotado atualmente, no plano internacional, para a efetivação do direito do trabalhador à segurança e saúde do trabalho, emerge na contra-mão do senso comum acima abordado.
Deve-se, ainda, antes da abordagem propriamente dita do postulado apresentado, justificar a sua denominação adotada pelo autor do presente estudo. Ora, porque se adotar a terminologia princípio do não improviso ao invés de princípio do planejamento, por exemplo?
A resposta para a questão tem inspiração no Direito Hebraico. A lei mosaica tem mais que conteúdo religioso. Ela transcende um estilo de linguagem em forma de recomendação para impor limites à ação de fazer ou não fazer como instrumento coercitivo e intimidativo. Daí a norma trazida à lume pelo Legislador do Sinai: "Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás." 58 Trata-se de um princípio ético convertido em lei, como comando obrigatório, condicionada à responsabilidade da sociedade, à obediência do Estado, à censura e à própria consciência humana, ou, para usar a expressão de Immanuel Kant, ao imperativo categórico. 59
É dessa inspiração que emana a força da denominação aplicada ao princípio apresentado. Pretende-se que a eloquência do estilo de linguagem adotado no Decálogo traduza a essência do conteúdo do princípio. É como se o princípio do não improviso encerrasse um mandamento no âmbito da tutela da segurança e saúde do trabalhador, qual seja: não improvisarás.
Como já mencionado anteriormente, quando da citação de Ana Paula de Barcelos, a eficácia negativa exige mais elaboração quando se trata de princípio jurídico, por força dos seus efeitos indeterminados. Nesta modalidade de eficácia jurídica o princípio funciona como barreira de contenção, impedindo que sejam praticados atos ou editadas normas que se oponham ao seu propósito.
O princípio do não improviso é baseado na constatação de que, no campo da atividade preventiva, em termos de segurança e saúde nos locais de trabalho, é considerada improvisada toda atividade que não é fruto de orientação racional, de conhecimento consciente e elaborado, de projeto, que não é planejada, programada, concebida para o fim a que se destina.
O princípio do não improviso, ora apresentado, e, com status supralegal, também foi extraído das principais convenções da OIT que tratam da saúde do trabalhador. A Convenção n. 148. da OIT, ratificada pelo Brasil, nos seu art. 15. assim determina:
Segundo as modalidades e nas circunstâncias que a autoridade competente determinar, o empregador deverá designar uma pessoa competente ou recorrer a um serviço especializado, exterior ou comum a várias empresas, para que se encarregue das questões de prevenção e limitação da contaminação do ar, o ruído e as vibrações no lugar de trabalho. 60
O art.5º, alínea "d", da Convenção n. 161. sobre Serviços de Saúde do Trabalho, ratificada pelo Brasil, preconiza que:
Sem prejuízo da responsabilidade de cada empregador a respeito da saúde e a segurança dos trabalhadores que emprega e considerando a necessidade de que os trabalhadores participem em matéria de saúde e segurança no trabalho, os serviços de saúde no trabalho deverão assegurar as funções seguintes que sejam adequadas e apropriadas aos riscos da empresa para a saúde no trabalho:
.........................................................................................................................
d) participação no desenvolvimento de programas para o melhoramento das práticas de trabalho, bem como nos testes e a avaliação de novos equipamentos, em relação com a saúde [...] (grifo nosso). 61
A Convenção n. 155. da OIT, ratificada pelo Brasil, no seu art. 5º, "a", art. 11, "a", art. 16, item 2 e art. 18. assim determina:
Artigo 5
A política à qual se faz referencia no artigo 4 da presente Convenção (política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho) deverá levar em consideração as grandes esferas de ação que se seguem, na medida em que possam afetar a segurança e a saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho:
a) projeto, teste, escolha, substituição, instalação, arranjo, utilização e manutenção dos componentes materiais do trabalho (locais de trabalho, meio ambiente de trabalho, ferramentas,maquinário e equipamento; substâncias e agentes químicos, biológicos e físicos; operações e processos);
Artigo 11
Com a finalidade de tornar efetiva a política referida no artigo 4 da presente Convenção, a autoridade ou as autoridades competentes deverão garantir a realização das seguintes tarefas:
a) a determinação, quando a natureza e o grau de risco assim o requererem, das condições que regem a concepção, a construção e o acondicionamento das empresas, sua colocação em funcionamento, as transformações mais importantes que forem necessárias e toda modificação dos seus fins iniciais, assim como a segurança do equipamento técnico utilizado no tratado e a aplicação de procedimentos definidos pelas autoridades competentes;
Artigo 16
2. Deverá ser exigido dos empregadores que, na medida que for razoável e possível, garantam que os agentes e as substâncias químicas, físicas e biológicas que estiverem sob seu controle não envolvem riscos para a saúde quando são tomadas medidas de proteção adequadas.
Artigo 18
Os empregadores deverão prever, quando for necessário, medidas para lidar com situações de urgência e com acidentes, incluindo meios adequados para a administração de primeiros socorros. (grifo nosso). 62
Infere-se dos vocábulos grifados nos artigos da convenção transcrita acima que o planejamento das atividades a serem desenvolvidas no local de trabalho, inclusive a própria concepção do local, deve ser um imperativo da atividade preventiva no plano internacional.
Finalizando este tópico, deve-se registrar que se encontra plasmado no art.17, item 1, alínea "c", da Convenção n. 167. da OIT sobre Segurança e Saúde na Construção,ratificada pelo Brasil, o princípio do não improviso, com clareza solar, ao preconizar que "as instalações, as máquinas e os equipamentos, inclusive as ferramentas manuais, sejam ou não acionadas por motor, deverão: [...] c) ser utilizados exclusivamente nos trabalhos para os quais foram concebidos [...]". 63 No Brasil, entretanto, muitos equipamentos sem manutenção adequada, velhos e obsoletos continuam em funcionamento por meio de gatilhos, gambiarras ou soluções improvisadas, que provocam o que os ergonomistas chamam de modo degradante de produção e afetam as condições de segurança. 64
7. Princípio do Direito de Recusa Obreiro
Trata-se de princípio afinado e complementar ao princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador. Como já foi abordado, o princípio da irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, neles incluídos o direito à vida e à integridade física e psíquica, constante do art. 11. do Código Civil Brasileiro, fortalece o entendimento sobre o princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador. Esses direitos são inatos, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, impenhoráveis, inexpropriáveis e ilimitados.
Sabe-se que o contrato de emprego, com a subordinação que lhe é inerente, concentra no empregador um conjunto expressivo de prerrogativas voltadas ao direcionamento da prestação concreta de serviços, franqueando-lhe ainda prerrogativas concubstanciadoras do chamado poder diretivo ou poder de comando.
Essa situação jurídica oriunda do contrato não cria, contudo, um estado de sujeição do trabalhador ao empregador.
Nesse contexto, por certo, é valida e juridicamente protegida a recusa obreira a ordens ilícitas perpetradas pelo empregador na relação de emprego. O princípio do direito de recusa obreiro configura, assim, mais uma evidência do caráter dialético, e não exclusivamente unilateral desta relação.
A prática da recusa ao cumprimento de ordens ilícitas, neste caso, corresponde a ato praticado em legítima defesa da vida, conforme o art.188 do Código Civil Brasileiro, ao preconizar que "Não constituem atos ilícitos: I-os praticados em legítima defesa [...]".
Esta norma-princípio encontra-se plasmada no art.13 da Convenção n. 155. da OIT, ratificada pelo Brasil, com a seguinte redação:
De conformidade com a prática e as condições nacionais, deverá ser protegido, de conseqüências injustificadas, todo trabalhador que julgar necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que ela envolve um perigo iminente e grave para sua vida ou sua saúde. 65
Todavia, o princípio do direito de recusa obreiro encontra-se, na prática, mitigado, em ordens jurídicas como a brasileira, uma vez que o risco do rompimento do contrato pelo empregador inibe eventual posição defensiva do empregado em face de determinações abusivas recebidas. 66
Antes de se passar às conclusões deste estudo, vale resgistrar que, não obstante o item 10.14.1 da Norma Regulamentadora n.10 do Ministério do Trabalho e Emprego tratar do direito de recusa do trabalhador que interage com instalações e serviços elétricos interromper suas tarefas sempre que constatar evidências de riscos graves e iminentes para a sua segurança e saúde ou de outras pessoas, a norma-princípio do direito de recusa obreiro emana de norma supralegal plasmada em convenção internacional da OIT, e, portanto, não se aplica exclusivamente aos trabalhadores do setor elétrico, mas aos trabalhadores de todos os outros setores produtivos que eventualmente venham se encontrar na condição de risco grave e iminente. 67
Assim sendo, é nas normas constitucionais e normas de direito internacional, ratificadas pelo Brasil, que se deve buscar efetivamente, em uma linguagem kelseniana, o fundamento de validade das normas nacionais de segurança e saúde do trabalhador.
De tudo que foi exposto, chega-se às seguintes conclusões:
a) a integridade física e psíquica do trabalhador é um direito fundamental, respaldado na Constituição Federal, art. 6º e art. 7º, XXII, em normas internacionais, Convenções da OIT, na CLT, Capítulo V, Título II, e, em inúmeras instruções normativas, Normas Regulamentadoras e portarias expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego;
b) os princípios apresentados neste estudo devem atuar como mandamentos de otimização do sistema, devendo consagrar-se, definitivamente, na doutrina, e, contribuir para que os operadores jurídicos compreendam o verdadeiro sentido do trabalho digno e saudável, sem riscos de lesões, doenças ou mortes de trabalhadores;
c) as normas legais de segurança e saúde do trabalhador precisam incorporar o avanço ocorrido no Direito Internacional do Trabalho, assimilar as inovações e os princípios da Constituição Federal de 1988 e disciplinar suficientemente a internalização das diretrizes estabelecidas nas Convenções da OIT ratificadas pelo Brasil.
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