Pode-se afirmar que o "Direito Administrativo disciplinar do inimigo" inspira-se claramente no chamado "Direito Penal do inimigo". Para esta visão de Direito Penal, são considerados inimigos todos os criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes organizados e autores de infrações penais perigosas. Dessa forma, o inimigo é aquele indivíduo que se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias de que vai continuar fiel à norma. [01], [02], [03], [04], [05], [06] e [07]
GOMES (2011) aponta que o "Direito Penal do inimigo" apresenta as seguintes características: (a) o inimigo não pode ser punido com pena, sim, com medida de segurança; (b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade; (c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro); (d) não é um Direito Penal retrospectivo, sim, prospectivo; (e) o inimigo não é um sujeito de Direito, sim, objeto de coação; (f) o cidadão, mesmo depois de delinqüir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade); (g) o Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma; o Direito Penal do inimigo combate preponderantemente perigos; (h) o Direito Penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela Penal), para alcançar os atos preparatórios; (i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a antecipação da proteção Penal; (j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade. [08]
Já o "Direito Administrativo disciplinar do inimigo" consiste na adaptação das diversas características do "Direito Penal do inimigo" para o Direito administrativo disciplinar. No entanto, os inimigos deixam de ser os criminosos comuns e passam a ser os servidores públicos submetidos a um determinado estatuto jurídico. O servidor público, dentro deste contexto e visão de mundo, passa a ser visto como um indivíduo que não se admite ingressar no estado de cidadania, que não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. Dessa maneira, o servidor público é considerado um inimigo da Administração, um ser presumidamente desidioso ou tendente à prevaricação/corrupção e, por conseguinte, não mais um sujeito processual, logo, não pode contar com direitos processuais básicos, como a garantia plena do contraditório e da ampla defesa. [09]
Para melhor compreensão do chamado "Direito Administrativo disciplinar do inimigo", torna-se oportuna a leitura dos ensinamentos de BOTELHO (2009), que assim dispõe, in verbis: [10]
"Acontece que geralmente, e isto não é uma regra, membros da corregedoria chegam às pequenas cidades, com atitudes terroristas, arrogantes, cobertos com o manto sagrado da pureza, achando que todo mundo possui desvio de conduta, implantando um verdadeiro Direito administrativo do inimigo, com negação de defesa e criação de idéias de um Direito administrativo de terceira velocidade, já querendo condenar a qualquer custo, sem um juízo de valor mais aprofundado. Quando as denúncias partem do poder político, aí é que tudo fica diferente. Querem uma resposta imediata, uma remoção, uma suspensão, alguém tem que ser responsabilizado, agredindo com pena de morte os mais comezinhos Direitos. Ocorre, assim, dupla atrofia: primeiro porque deve-se evitar julgamento antecipado de uma possível contaminação sistêmica, e segundo porque deve-se preservar a dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da CF/88.
Falam-se hoje até em criação de corregedoria judicial para apurar os atos da Polícia, como se já não existisse nenhum órgão incumbido no controle externo das atividades policiais e como se fosse a única Instituição a cometer atrocidades sociais. Acho melhor criar uma corregedoria especial para investigar os abusos da Corregedoria.
Com este pensamento não se apóia nunca nem tampouco se coaduna com desvios de conduta de agentes públicos, que devem ser exemplarmente punidos pelas faltas disciplinares cometidas, se possível, com demissão a bem do serviço público, se for o caso, mas os fatos devem se apurados através de um procedimento ético e civilizado, dentro da moderna tendência da jurisdicionalização do poder disciplinar, como decorrência do devido processo legal, de origem no due process of law do Direito anglo-norte-americano, que exige a imposição de condutas formais e imperativas para garantia dos acusados contra os arbítrios da Administração. Lúcido é o pensamento do Professor José Afonso da Silva, segundo o qual, a Administração deve adequar-se para poder dar às suas decisões caráter de razoabilidade, de logicidade, de congruência, faltando o qual as decisões se manifestam viciadas de excesso de poder, saindo, por assim dizer do campo da discricionariedade para ingressar no limiar da arbitrariedade".
Após uma breve introdução teórica sobre o assunto, passa-se a análise da Lei nº 4.878/65 (Regime Jurídico dos Policiais Federais) à luz do Direito administrativo disciplinar do inimigo. [11]
Em primeiro lugar, um dos grandes problemas da referida Lei refere-se às transgressões disciplinares demasiadamente amplas e abertas, que conferem alto grau de discricionariedade para a instauração, ou não, de procedimentos administrativos disciplinares. Entre os exemplos contidos na referida Lei, pode-se citar o art. 43, XXIX, que estabelece como infração disciplinar punida com a pena de suspensão: "XXIX - trabalhar mal, intencionaImente ou por negligência". [12]
Ora, a infração disciplinar "trabalhar mal, intencionalmente ou por negligência" abre margem a todo o tipo de interpretação e deixa o servidor policial praticamente a mercê do entendimento da autoridade instauradora e julgadora. Sem sombra de dúvida, essa transgressão disciplinar extremamente aberta dificulta sobremaneira a defesa do acusado e permite a punição de praticamente qualquer ato praticado pelo servidor, sob a alegação de que, na visão da autoridade julgadora, o servidor policial não tenha trabalhado a contento. Além disso, esse tipo administrativo aberto pune até mesmo a conduta culposa do servidor que, por negligência, tenha deixado de cumprir um simples ato sob sua responsabilidade, pois essa infração disciplinar não exige habitualidade. [13]
Outro exemplo flagrante de tipo administrativo aberto encontra-se previsto no art. 43, XX, da Lei nº 4.878/65, que assim dispõe: "XX - deixar de cumprir ou de fazer cumprir, na esfera de suas atribuições, as leis e os regulamentos". Trata-se de uma infração disciplinar punida também com a pena de suspensão, que traz um impacto profundo para o acusado, pois caso ele seja condenado, ocorrerá à interrupção da contagem do tempo necessário para a progressão na carreira policial federal. [14]
Cumpre destacar que a outra característica do chamado Direito Administrativo disciplinar do inimigo relaciona-se à ausência de proporcionalidade nas sanções disciplinares impostas ao servidor e na ausência de intervenção mínima na esfera disciplinar. Nesse prisma, verifica-se que a Lei nº 4.878/65 apresenta diversas sanções manifestamente desproporcionais. Como já foi dito acima, basta que o servidor policial federal seja suspenso por 01 dia sob o argumento genérico de que tenha "trabalhado mal" ou "descumprido normas e regulamentos", para que o servidor condenado venha a ter um prejuízo enorme na progressão de sua carreira, que pode chegar até 05 anos. Dessa forma, o efeito secundário da condenação pela transgressão disciplinar de "trabalhar mal", qual seja, a interrupção da contagem do prazo para progressão na carreira policial, gera um prejuízo infinitamente maior ao servidor policial do que o desconto da remuneração referente ao dia ou dias de suspensão. [15]
Também não se pode deixar de se mencionar que a Lei nº 8.112/90, embora em uma escala menor, também não é isenta de falhas no que se refere às disposições que podem se enquadrar na idéia de Direito Administrativo disciplinar do inimigo. Sobre o assunto, pode-se afirmar que a Lei nº 8.112/90 tem sido objeto de severas críticas, pois há sérios problemas em se adaptar o processo disciplinar atual dos servidores federais à luz dos princípios constitucionais estabelecidos pela CF/88, principalmente, o juiz natural, o contraditório e a ampla defesa. [16]e[17]
Entre as falhas encontradas na Lei nº 8.112/90, pode-se mencionar, em síntese: a) falta de observância do princípio do juiz natural, pois os membros do conselho processante são indicados após a consumação do fato irregular, em vez de preexistirem ao quadro fático apurado (com a exceção dos órgãos que possuem comissão permanente de disciplina); b) a independência da comissão disciplinar nem sempre é encontrada na prática; c) não aplicação do sistema de preclusão processual aos processos disciplinares; d) ampla discricionariedade na instauração de sindicâncias e processos disciplinares; e) as infrações disciplinares existentes, não raras às vezes, consistem em tipos genéricos (demasiadamente abertos, como por exemplo, deixar de "exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo" ou, ainda, deixar de "observar as normas legais e regulamentares"), o que também facilita a punição de servidores públicos federais por qualquer motivo e pode abrir margem a perseguições e arbitrariedades. [18]
Por todo o exposto, sem a menor pretensão de se esgotar o presente tema, entende-se, salvo melhor juízo, que o processo administrativo disciplinar atual deveria garantir a observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, não existindo mais lugar na novel ordem constitucional para procedimentos administrativos disciplinares inquisitoriais e arbitrários. Dessa maneira, torna-se urgente a mudança e a atualização da legislação administrativa disciplinar, de modo a se eliminar todos os tipos administrativos demasiadamente abertos e as sanções disciplinares manifestamente desproporcionais às condutas praticadas pelos servidores. Por fim, deve haver outras mudanças na legislação disciplinar de ordem procedimental para se garantir a observância plena dos princípios do juiz natural, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa nos processos administrativo-disciplinares. [19]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
- BOTELHO, Jeferson. O Direito administrativo do inimigo e os Deuses da Corregedoria. Disponível em: <http://www.jefersonbotelho.com.br/2009/04/12/o-Direito-administrativo-do-inimigo-e-os-deuses-da-corregedoria/>. Acesso em: 12 dez. 2011.
- BRASIL. Presidência da República. Lei nº 4.878, de 03 de dezembro de 1965. Dispõe sobre o regime jurídico peculiar dos funcionários policiais civis da União e do Distrito Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4878.htm>. Acesso em: 12 dez. 2011.
- BRASIL Presidência da República. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o Regime Jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>. Acesso em: 10 dez. 2011.
- CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Três Velocidades, Um inimigo, Nenhum Direito: um esboço crítico dos modelos de "Direito" Penal propostos por Silva & Andash; Sánchez e Jakobs. Disponível em: <http://www.Direitounisal.com.br/Direito/Bem-Vindo.html>. Acesso em: 12 dez. 2011.
- CABRAL, Bruno Fontenele; CANGUSSU, Débora Dadiani Dantas. A Revolta da Chibata e a evolução do processo administrativo disciplinar no Brasil no século XX. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2977, 26 ago. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/19845>. Acesso em: 12 dez. 2011.
- GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo (Ou Inimigos do Direito Penal). Disponível em: <http://www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_47.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2011.
- GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Parte Geral - Volume I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
- JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do inimigo. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1653, 10 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10836>. Acesso em: 11 dez. 2011.
- ROSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.
-
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
NOTAS:
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