O planejamento urbano como política social: origem e trajetória dos planos diretores
Como visto acima, a historiografia nacional denota um modo de ver e fazer a cidade que distribui os homens desigualmente no espaço e subordina os direitos políticos, os direitos individuais e a cidadania aos modelos de uma racionalidade econômica.
Desse modo, os municípios passam a se defrontar com uma situação explosiva que exige intervenções ágeis em áreas que extrapolam as tradicionais rotinas urbanas. Trata-se de amplos projetos de infra-estrutura, políticas sociais e programas de emprego, envolvendo inclusive estratégias locais de dinamização das atividades econômicas.
O Estado, portanto, integrado a essa lógica, institucionaliza um instrumento importante que é o planejamento com o objetivo de "[…] ordenar e embelezar as cidades segundo critérios funcionais e de estratificação social do espaço […]". Surge nesse contexto o I Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro já no final da década de 20 e início dos anos 30. Logo depois, São Paulo e Recife seguiram o mesmo exemplo (Abreu, 1987:07).
O primeiro Plano Diretor, também conhecido como Plano Agache, segundo conta Villaça (Teixeira,2006), trouxe a idéia de plano diretor para o Brasil. Na época, vicejava em nível mundial a ideologia da tecnocracia [09], razão pela qual toda a elite intelectual, os arquitetos e urbanistas, ficaram seduzidos pelo Agache:
É essa elite que vai plantar a ideologia da tecnocracia e que vais sustentar a concepção de plano diretor ao longo das décadas. Mas é algo que não tem nada a ver com problemas reais, pois trata-se de uma classe que fica elucubrando teorias e especulando sobre os problemas urbanos. Fica ensinando e ruminando em cima disso, enquanto isso os problemas urbanos e sociais vão se agravando, ali do lado, em paralelo, sem ter nada a ver com essas elucubrações. Então eu chego à conclusão de que o plano diretor é fruto da ideologia dominante e sua finalidade é esconder os problemas urbanos, ao invés de resolvê-los.
É interessante que a idéia desse tipo de planejamento tome vulto pela primeira vez no período ditatorial de Vargas e é fortalecida novamente no período pós-64, quando várias prefeituras fazem os seus PDs. O período da coalizão civil-militar reforçou ainda mais a racionalidade econômica através do uso de mecanismos de controle do uso e ocupação do solo acrescidos da centralização política e administrativa.
Já nesse segundo período o discurso predominante via as cidades como "doentes" e os PDs como necessários para determinar pequenas cirurgias com o objetivo de restaurá-las (Ribeiro,1990:10). Para isso, seria necessário ordenar o crescimento das cidades, o controle do uso e ocupação do solo, orientar investimentos públicos e privados e promover o desenvolvimento urbano, controlando influências locais.
Fica claro que nesse período não se leva em conta que as cidades são produzidas pelo confronto, pela luta e pela apropriação entre diversos agentes econômicos e sociais.
Na década de 80, o discurso predominante afirmava que as cidades precisavam de ordem, e de um poder público competente que termine com o "caos" e realize o desenvolvimento urbano. Esse modo de ver a cidade, contudo, encontrava-se impregnado de interesses capitalistas de mercantilizar a cidade e o Estado que, tradicionalmente, apoiaram esses interesses através de políticas, controles e mecanismos reguladores e discriminatórios. Um modo de ver e fazer a cidade que distribui os homens desigualmente no espaço que subordina os direitos políticos, os direitos individuais, a cidadania aos modelos de uma racionalidade econômica.
Essa dinâmica, apesar de ter sido constituída a partir de contínuas disputas entre setores dominantes (antigas oligarquias rurais, modernas elites industriais, produção imobiliárias, interesses especulativos, setores financeiros), entre estes, e os movimentos sociais e o Estado com todos esses setores, teve como lógica predominante a distribuição dos serviços e equipamentos urbanos segundo o "lugar sócio-econômico e o lugar geográfico", isto é, o lugar onde melhor são atendidos os critérios de rentabilidade ou de retorno do capital investido. Esse modelo excludente deu origem à imensa segregação existente nas cidades de nosso país.
Na Constituinte a lógica da "Ordem e do Controle" ainda era predominante, porém foi questionado pelas emendas populares e pelos parlamentares progressistas que, entre outras propostas, reivindicavam dois elementos de extrema importância: a função social da propriedade e a participação da sociedade civil na gestão.
Nessa análise, fica claro que ao longo da sua existência os Planos Diretores (PDs) ou Plano Diretores Urbanos (PDUs) não conseguiram reduzir os grandes problemas urbanos das cidades onde foram elaborados, mas contribuíram para aumentar a segregação e a formação de contingentes populacionais fora da legalidade instituída em todas as cidades brasileiras.
Com isso, como se pôde explicar a volta, agora obrigatória, pela nova Constituição Brasileira, do Plano Diretor nas cidades acima de 20.000,00 habitantes?
O texto constitucional tentou conciliar os interesses dos setores populares subordinado-os ao plano Diretor. De certa forma, os movimentos populares estavam cobertos de razão quando diziam que o PD não foi uma conquista popular. Porém, por outro lado, o Plano Diretor é hoje um instrumento constitucional revestido com outra roupagem, com novas características, a partir desses dois elementos conquistados pelos setores populares.
Esse resultado colocou um desafio para a sociedade civil, no sentido de tornar público e se apropriar dessa nova configuração do PD e transforma-lo num instrumento que possa desafiar o pensamento predominante.
Coube aos setores progressistas da sociedade civil reverter conjunturas específicas nas localidades que contratam firmas específicas (consultorias) para realizar planos diretores com enfoque tradicional e sem a menor preocupação com a realidade local.
Reverter significa iniciar um processo de generalização das lutas específicas dos movimentos, compor alianças, discutir e questionar os técnicos de dentro e de fora das prefeituras, lutar por aberturas de instâncias públicas, onde possa ocorrer o diálogo e/ou enfrentamentos contínuos com o poder executivo, legislativo e com outros setores empresariais para que ocorra um pacto territorial entre todos esses setores.
Como um dos objetivos da política urbana é garantir que a propriedade atenda a sua função social, o PDU, como instrumento básico dessa política, tem atribuição constitucional para disciplinar essa matéria, isto é, cabe às normas do Plano Diretor estabelecer os limites, as faculdades, as obrigações e as atividades que devem ser cumpridas pelos particulares referentes ao direito de propriedade urbana.
Ora, é fácil perceber que a ordenação da cidade através de normas urbanísticas é assunto predominantemente local e tal idéia reforça-se ainda mais diante da explicitação da natureza do PDU, verdadeiro instrumento de planejamento estratégico do próprio Município que, aplicado por sua legislação correlata – Lei de uso, ocupação e parcelamento do solo [10], Código de Obras [11] e Código de Posturas [12] - deve conter diretrizes das mais diversas, desde as relacionadas às condições de acesso dos cidadãos aos seus direitos sociais e fundamentais, como emprego, habitação e serviços, passando pela proteção ao meio ambiente e patrimônio natural e cultural, até aquelas que digam respeito ao perfil econômico do Município, entre outras.
Estabelece normas sobre o uso e ocupação do território da cidade, regula os instrumento de atuação do Poder Público (instrumentos de política urbana) e as atividades urbanísticas que devem ser respeitadas pela coletividade. Os critérios e as exigências estabelecidas para o exercício do direito de propriedade devem ser obedecidos pelos particulares, sob pena de ficarem sujeitos às sanções aplicáveis pelo Poder Público pelo descumprimento do PDU.
O Plano Diretor é requisito obrigatório para que o Município possa aplicar de forma sucessiva o parcelamento ou edificação compulsória, o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo, a desapropriação para fins de reforma urbana nos termos do § 4º do art. 182 da CR [13].
Tem também a atribuição de definir as áreas urbanas consideradas subutilizadas ou não utilizadas, para a aplicação, nestas áreas, dos instrumentos de política urbana.
Por interferir intensamente na cidade e na vida dos cidadãos, o PDU deve ser um pacto entre todos os moradores. As normas precisam ser cuidadosamente planejadas e discutidas com toda a comunidade: governo, iniciativa privada, a sociedade organizada (associações de bairro, movimentos sociais, entidades de classe) e moradores em geral.
O Plano Diretor é apenas um instrumento que, se articulado a outros e renovado o seu conteúdo poderá auxiliar o processo pela reforma urbana e também ser um meio para setores populares e progressistas iniciem um processo de análise global da cidade e participarem efetivamente da sua gestão, produzindo no processo de negociação novas políticas públicas que respondam aos interesses dos cidadãos que reivindicam justiça social e democratização da cidade (Ribeiro, 1990:11).
Afinal, a construção de cidades melhores é paralela e dependente da árdua e interminada tarefa de construção do cidadão brasileiro.
REFERÊNCIAS
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ARRIGHI, G.A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997.
DOIMO, A. M. A vez e voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós/70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; ANPOCS, 1995.
____________. Movimento social urbano, igreja e participação popular. Petrópolis; Vozes, 1984.
FERRARO, A. R.; RIBEIRO, M. Movimentos sociais: revolução e reação. Pelotas: EDUCAT, 1999.
FERNANDES, E. Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998
GOHN, M. G. O protagonismo da sociedade civil: movimentos sociais, ONGS e redes solidárias. São Paulo: Cortez, 2005.
___________. Teoria dos movimentos sociais. Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997
NEDER, R. T. As ONGs na reconstrução da sociedade civil no Brasil. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOCIEDADE E A REFORMA DO ESTADO. São Paulo, 2002. p. 1-8
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TEIXEIRA, D. M. Entrevista com Flávio Villaça. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/entrevista/villaca/villaca.asp>. Acesso em: 20 maio 2006.
NOTAS
- Dentre eles Valladares (1988), FERNANDES, E. Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998; SAULE JUNIOR, N. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 1997.
- estimado, em 1998, em mais de 10 milhões de unidades segundo levantamentos realizados pelo Instituto Polis. Segundo relatório do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) do ano de 1997, as tentativas de dimensionar o acréscimo necessário ao atual estoque de domicílios com vistas a superar o déficit de habitações têm resultado em números que vão desde 4 milhões até 20 milhões de unidades, conforme a amplitude do critério adotado.
- O Peleguismo é um fenômeno inerente à estrutura sindical corporativa, uma vez que a existência das entidades sindicais depende fundamentalmente da ação estatal. Os pelegos eram agentes do Ministério do Trabalho disfarçados nos sindicatos, ou sindicalistas traidores.
- Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional, instituição do governo dos Estados Unidos responsável, em tese, pela implementação de programas de assistência econômica e humanitária em todo o mundo. Na visão do movimento estudantil da época, os acordos MEC/USAID eram imposições do imperialismo norte-americano para a educação brasileira, que dentre outras coisas visavam restringir a autonomia das universidades.
- O Estado Democrático de Direito reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, ou seja, fundamenta-se no princípio da soberania popular, que impõe a participação efetiva do povo na coisa pública, e se submete ao império da lei, à divisão de poderes, e à garantia dos direitos individuais (SILVA, De P. Vocabulário jurídico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994).
- Nos referimos às Comunidades Eclesiais de base da Igreja católica, aos Sindicatos, aos setores da esquerda e da academia que estabeleceram, desde os anos 70, algum tipo de relação de reciprocidade (DOIMO, 1995).
- A Assembléia Constituinte autônoma seria eleita, exclusivamente, para fazer a Constituição, dissolvendo-se em seguida à promulgação desta. Já a Constituinte congressual seria aquela que resultaria de uma Câmara e de um Senado que se instalariam, inicialmente para fazer a Constituição (como Assembléia Constituinte) e, terminado esse encargo, continuariam como Câmara e Senado, cumprindo os cidadãos eleitos o mandato de deputado ou senador, em seguida ao mandato constituinte (BONAVIDES, P. Direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998).
- Art. 24 – Compete à União, aos estados e ao Distrito federal legislar concorrentemente sobre: I direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico (n.n.) (BRASIL, 2004).
- Sobre o problema urbano como ideologia e instituição (LEFEBVRE, H. La revolucion urbana. 4. ed. Madrid: Aliança Editorial, 1983).
- BRASIL. Senado Federal. Lei n.° 6.766, 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e da outras providências. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso: abr. 2006.
- VITÓRIA (ES). Código de edificações. Lei n. 4. 821/98. Institui o Código de Edificações do Município de Vitória e dá outras providências. Disponível em: <http://www.vitoria.es.gov.br>. Acesso em: maio 2005
- VITÓRIA (ES). Código de posturas. Lei nº 6.080/2003. Institui o código de posturas e de atividades urbanas do município de Vitória. Disponível em: <http://www.vitoria.es.gov.br>. Acesso em: maio 2006.
- Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (BRASIL, 2004).