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As metamorfoses do mundo do trabalho no final do século XX e a atualidade da questão social

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3. A QUESTÃO SOCIAL APÓS AS METAMORFOSES DO FINAL DO SÉCULO XX

O modo como o Estado Capitalista interage com o mercado e com a sociedade é que determina a existência de uma “questão social”, a qual, por sua vez, também influencia as transformações daquele. Assim, o presente item deste artigo será dedicado ao tema da questão social, voltando-se especificamente para os seguintes enfoques: o conceito de questão social e modo como ela tem se manifestado desde a Revolução Industrial até o final do século XX (3.1); e a percepção da questão social após as metamorfoses do final do século findo (3.2).

3.1 A questão social e sua percepção

A expressão “questão social” vem da Europa Ocidental e sua primeira utilização foi para designar o pauperismo, por volta do terceiro quartel do século XIX, quando os pobres passaram a protestar, tornando-se uma ameaça real às instituições sociais existentes. Nesse momento, a pobreza passou a ser encarada como problema, abandonando-se a idéia até então prevalente no senso comum, de que devia ser cultivada por ser útil para o enriquecimento dos Estados-nações. (NETTO, 2001).

Na definição de Teles (1996, p. 85), a questão social:

“(...) é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação”.

Por sua vez, Iamamoto e Carvalho (1983, p.77), definem questão social como sendo: 

“(...) as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão”.

Verifica-se, assim, que a questão social é fruto da sociedade capitalista, pois ela nasce exatamente quando se exterioriza a contradição fundamental do capitalismo como modo de produção social: quando os trabalhadores, levados ao extremo empobrecimento, se percebem e se reconhecem como uma classe explorada, o que vem a ser a consciência de classe que lhe possibilitou desencadear a luta contra a classe opressora.

A questão social é também categoria analítica, uma categoria que podemos utilizar na análise da sociedade. Assim, quando analisamos a sociedade a partir da categoria “questão social”, o fazemos à luz da perspectiva da situação em que se encontra a maioria da população, ou seja, aquela que só tem na venda de sua força de trabalho os meios para garantir sua sobrevivência (MACHADO, 1999, p. 2).

Ainda deve ser destacada na questão social sua característica de categoria arrancada do real, como tantas outras, de maneira que nós não a vemos, ao invés dela, nós vemos suas expressões (MACHADO, 1999, p. 3) na forma das mazelas que o modo de produção capitalista tende a produzir.

Mas ao longo dos séculos XIX e XX, não foram apenas as desigualdades que representaram a questão social no terreno da contradição entre a lógica do capital e a lógica do trabalho. A categoria questão social sempre refletiu a luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e depois passou a incorporar também a luta de toda a população excluída e subalternizada por diversos direitos econômicos, sociais, políticos e culturais. 

Além disso, a questão social varia de uma sociedade capitalista para outra em um dado momento histórico, a depender das necessidades sociais de cada população, das articulações dos atores das políticas públicas no seio de cada uma, da situação econômica de cada país etc. 

Assim, por exemplo, é evidente que a questão social em países de capitalismo tardio, como o Brasil, se exterioriza de maneira diferente em distintos períodos históricos; como também é claro que tais manifestações não são iguais às manifestações da questão social em países de capitalismo avançado e/ou em países com elevados padrões de proteção social [01].

3.2 A questão social depois das metamorfoses do final do século XX

O fato de certos autores, como Rosanvallon (1998), argumentarem - devido à profundidade das metamorfoses ocorridas no mundo capitalista no final do século XX - que estamos vivenciando uma “nova questão social” apenas aparentemente os coloca em desacordo  com  outros  autores,  como  Castel (1998),  para  quem  estamos   diante da mesma questão social de sempre, apenas apresentando novos atores e novos conflitos. Com efeito, a partir da leitura de textos de ambos os lados, constata-se uma semelhança na parte essencial das visões de todos esses autores sobre a questão social, hoje: em primeiro lugar, todos lançam seus olhares para a história enquanto movimento ou como processo de transformação; em segundo lugar, todos eles percebem que o acelerado processo de transformação da sociedade provocou alterações na questão social; e por último, todos os citados autores (re)afirmam a centralidade do trabalho no processo de inserção dos excluídos no bojo da questão social.

De fato, as grandes transformações ultimamente ocorridas no mundo do trabalho estão gerando manifestações novas da questão social, “(...) cujos traços particulares vão depender das características históricas da formação econômica e política de cada país e/ou região. Diferentes estágios capitalistas produzem distintas expressões da questão social”. (PASTORINI, 2004, p. 97). Mas a origem da própria questão social continua a residir na contradição inerente ao sistema capitalista, e suas manifestações tradicionais - pauperização, exclusão e desigualdades sociais - continuarão sempre as mesmas, a não ser que desapareça a ordem capitalista, pois a dinâmica societária específica dessa ordem, segundo Netto:

“Não só põe e repõe os corolários da exploração que a constitui medularmente: a cada novo estágio de seu desenvolvimento, ela instaura expressões sócio-humanas diferenciadas e mais complexas, correspondentes à intensificação da exploração que é sua razão de ser”. (NETTO, 2001, p. 48).

A questão social, portanto, se manifesta exatamente naqueles fatores que causam a pauperização  - e de conseguinte, da exclusão social, da miséria etc. Então, quais seriam as causas da pauperização, hoje? Ou, em outras palavras, quais seriam as novas configurações e expressões da questão social hoje? Segundo Yazbek (2001, pp. 33-34), são elas: 1) as transformações das relações de trabalho; e 2) a perda dos padrões de proteção social dos trabalhadores e dos setores mais vulneralizados da sociedade que vêem seus apoios, suas conquistas e seus direitos ameaçados.

No que diz respeito às transformações das relações de trabalho, são diversas as manifestações da “nova” questão social, sendo o desemprego a mais visível, mas longe de ser a única. A precarização se mostra ainda mais importante, eis que a tendência é de que se amplie, na mesma proporção em que o emprego estável tende a se limitar a um núcleo de trabalhadores de difícil substituição em função de suas qualificações, experiência ou responsabilidades. E o núcleo de trabalhadores estáveis só será estável enquanto substitutos são qualificados e contratados com salários mais baixos. Além dos trabalhadores precários, também há os temporários. Todos esses trabalhadores dificilmente se organizam em sindicatos e entre eles se constrói pouca ou nenhuma solidariedade. Isto leva Schons a sustentar que: 

“A precarização do trabalho – por se tratar de uma questão intrínseca ao sistema, comandado por novas exigências tecnológico-econômicas da evolução do capitalismo moderno – é a mesma questão social suscitada pelo pauperismo da primeira metade do século XIX, que hoje tem nesta precarização apenas novas manifestações”. (SCHONS, 2007, p. 28).

A citada autora aponta ainda a fragilização dos trabalhadores estáveis e daqueles que se filiam aos sindicatos como uma manifestação da questão social que se tornou especialmente aguda com o desemprego resultante da reestruturação do trabalho. Isto puxa outro problema, que é o enfraquecimento do sindicato e de sua importante função histórica de ser, juntamente com os partidos socialistas e os movimentos sociais, um agente de transformação da sociedade (SCHONS, 2007, pp. 28-29). 

Portanto, pelo aspecto das transformações nas relações de trabalho, o cerne da questão social hoje estaria situado nessa problemática, ou seja, a desestabilização dos estáveis - onde se encontram os desfiliados dos sindicatos - e a precarização do trabalho, que representa o desmonte do trabalho protegido (SCHONS, 2007, p. 29).

Resta referir à segunda faceta das novas configurações e expressões da questão social nos dias de hoje, mencionada mais atrás, ou seja, a crescente perda dos padrões de proteção social dos trabalhadores e dos setores mais vulnerabilizados da sociedade. Esta questão se exterioriza pela notória fragilização da proteção social e pelo questionamento da intervenção do Estado.

O questionamento da intervenção do Estado traz à tona algo mais amplo que está em jogo, ou seja: o capitalismo passa por uma nova crise e está se reciclando para enfrentá-la. Para tanto, está buscando romper um consenso que por um bom tempo acomodou a contradição da igualdade preconizada na revolução burguesa, mediante a prestação da assistência e de alguns serviços essenciais como direitos (SCHONS, 2007, p. 30).

Portanto, a questão social hoje se manifesta também na ruptura do compromisso do Estado de bem-estar social, manifestação essa que hoje é indissociável da questão do emprego, pois “repensar o Estado Providência implica prioritariamente abordar uma nova forma de gestão social do desemprego”. (ROSANVALLON, 1998, p.129).


4. PERSPECTIVAS PARA ESTE SÉCULO

O cenário em torno do trabalho e da questão social neste século XXI ainda está em construção, mas algumas tendências já são apontadas por vários autores.

Primeiramente, é importante recordar que o problema da pobreza só se tornou questão social na medida em que os próprios pobres tomaram consciência de sua situação de exploração e o denunciaram, tornaram-no público e exigiram atendimento. Isto ocorreu na fase capitalista da revolução industrial graças à manifestação do elemento político, ou seja, a organização da classe operária, pois enquanto o pobre permaneceu quieto em seu lugar, não se falou em questão social. Em poucas palavras: questão social é o embate político que o pauperismo desencadeia (SCHONS, 2007, p. 35).

O desemprego e a precarização do trabalho que estamos a assistir hoje “não é acidente de alguns, mas é condição forçada de uma expressiva parcela da sociedade que no atual contexto do modo de produção se aprofundou” (SCHONS, 2007, p. 36), ou seja, estamos diante de novas manifestações da mesma questão social resultante da contradição das relações de capital e trabalho. Sendo assim, porque não há reação suficiente para o enfrentamento? A resposta, segundo ainda a citada autora, está na falta do elemento político que outrora possibilitou a organização dos trabalhadores para exigir outro entendimento: na fase atual ele é “um elemento ainda em construção, mas que já se manifesta numa capilaridade de organizações que ainda precisam ser politizadas” (SCHONS, 2007, p. 36).

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Partindo da citada constatação, a referida autora citada sugere uma mudança de postura àqueles que no cotidiano da profissão operam com intervenções junto à população empobrecida. Sustentando que agir somente sobre as manifestações da pobreza é uma forma reduzida de compreender a questão social e que isto somente contribui para torná-la discreta, Schons considera que:

“Políticas de integração, atendimentos imediatos necessariamente deveriam impelir-nos a fazer a travessia para a tomada de consciência, passando esta também pela construção de mediações que deveriam levar os ‘condenados à pobreza’ a constituírem-se em sujeitos de um novo projeto”. (SCHONS, 2007, p. 36).

Faz-se necessária, portanto, a politização das ações junto à população empobrecida, a fim de oferecer a esta condições de fortalecimento dos elementos da resistência, mormente no quadro atual em que faz parte da estratégia capitalista a realocação do tema da pobreza, retirando-o do Estado para o chamado “Terceiro Setor”, e a transformação dos gestores das políticas sociais públicas “(...) em meros administradores de programas sociais, quando não em administradores da penúria”. (SCHONS, 2007, p. 37).

Crescem de importância, ainda, projetos que sinalizem para um futuro que referencie cidadania e direitos, tendo sempre em vista o novo sujeito capaz de inscrever na agenda política a atual degradação social. (SCHONS, 2007, p. 37).

Por último, é essencial que os novos sujeitos da resistência sejam constituídos no âmbito mundial, uma vez que o próprio capital se mundializou, criando a pobreza em todas as partes do mundo (SCHONS, 2007, p. 37).

 No que concerne ao sindicalismo, sua crise advém, por um lado, da burocratização de suas estruturas, e por outro lado do abandono da ideologia, representada por uma utopia social suficiente para mobilizar lideranças de base e desenvolver a consciência de classe. Essa crise levou o sindicalismo a uma postura defensiva, da qual resultou a busca do desempenho corporativo e também à sua identificação com o ideário da empresa, ou seja, à busca da mera adaptação à ordem do capital. (ANTUNES, 2006, p. 470-474).

Por conseguinte, o maior desafio do sindicalismo para este século é romper com o viés burocrático-corporativo, romper com a barreira que separa trabalhadores estáveis daqueles que estão em trabalho precarizado (tempo parcial, terceirizados, subempregados da economia informal etc.), como também dos desempregados, para conduzi-los à sindicalização, buscando também meios de sustentação financeira da atuação sindical que dispense a exigência de contribuição daqueles que cujas circunstâncias não possibilitem contribuir. Somente assim será possível reverter as altas taxas de dessindicalização presentes nas principais sociedades capitalistas. 

É inútil, no contexto atual do mundo do trabalho, um sindicalismo voltado exclusivamente para a defesa dos interesses dos trabalhadores estáveis, deixando ao desamparo exatamente os trabalhadores que mais necessitam da tutela sindical. Os empregados estáveis hoje são os empregados precarizados de amanhã e os desempregados de depois de amanhã, mas, qualquer que seja o estado de trabalho em que se encontrem eles fazem parte da mesma classe, ou seja, a “classe-que-vive-do-trabalho”, na feliz expressão cunhada por Antunes (2001, p. 101). 

Outra expectativa em relação aos sindicatos no século em curso é o abandono do sindicalismo de empresa (de âmbito exclusivamente fabril, também chamado de sindicalismo de envolvimento) em direção a um sindicalismo horizontalizado, melhor preparado para incorporar todo o conjunto da classe-que-vive-do-trabalho. 

Quanto aos partidos políticos de esquerda, o que se verificou a partir dos anos 1970, foi o redirecionamento de sua atuação, deixando de se articular a partir da classe, para deslocar-se em direção ao setor e até mesmo à empresa, assumindo uma direção política limitada às necessidades da reprodução orgânica do sistema sociometabólico do capital (ANTUNES, 2006, p. 469). Espera-se que o almejado fortalecimento da consciência de classe se reflita nos partidos, ressuscitando uma política preocupada com a redefinição de um novo pacto social, envolvendo e tendo como base a solidariedade, o trabalho e a cidadania.

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Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. As metamorfoses do mundo do trabalho no final do século XX e a atualidade da questão social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3147, 12 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21058. Acesso em: 18 abr. 2024.

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