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As provas obtidas com violação da intimidade e sua utilização no Processo Penal

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01/10/2001 às 00:00
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6 - PROVAS ILÍCITAS E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Antes se distinguia dois tipos de provas ilegais: as provas ilícitas, que eram as obtidas com violação de regras de direito material; e as provas ilegítimas, que eram as obtidas com violação de regras de natureza processual. Hoje, com o princípio proibitivo estabelecido no art. 5º, LVI, da CF, que engloba os dois tipos de provas ilegais, essa distinção doutrinária perdeu interesse prático.

Embora claramente baseado na regra americana do exclusionary rule, que normalmente só se aplica no campo penal e, ainda assim, somente contra a autoridade pública, esse preceito constitucional encerra regra aparentemente absoluta, no sentido de proibir a admissão de toda e qualquer prova ilícita, seja ela produzida por autoridade ou particular em processo penal ou não. Dizemos "aparentemente" porque nenhum direito pode ser entendido como absoluto, havendo sempre limites imanentes derivados da convivência com outros direitos de igual estatura ou das "justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática" (art. 29 da Declaração Universal dos Direitos do Homem). De modo que o dispositivo deve ser entendido também como relativo.

O preceito constituional pôs fim a discussão que reinava quanto à admissibilidade da prova ilícita, mas deixou de responder a duas questões muito importantes: a das provas ilícitas por derivação e a do princípio da proporcionalidade.

6.1 - PROVAS ILÍCITAS POR DERIVAÇÃO

Muitas vezes, provas obtidas ilicitamente propiciam o conhecimento de outras provas, cuja colheita se faz licitamente, colheita essa que não seria possível sem a informação obtida através da prova ilegal. E isso ocorre com relativa freqüência em casos de busca domiciliar ilegal, de prisão ilegal, de confissão extorquida, etc.

Essas situações davam (e ainda dão) margem a acesas discussões sobre a admissibilidade dessa prova derivada, com duas posições opostas: a primeira, que prega inadmissibilidade da prova derivada; a Segunda, que sustenta admissibiladade da prova derivada, já que sua obtenção é lícita.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte estabeleceu regras de exclusão (exclusionary rule) da prova ilícita, não admitindo o seu emprego no julgamento do acusado. Tais regras têm três finalidades, preponderando ora uma ora outra, que são: 1ª) evitar condutas ilegais da polícia, fim esse que só é atingido se provas, assim obtidas, não puderem ser utilizadas no julgamento; 2ª) manter o imperativo da "integridade judicial", não podendo os tribunais admitir a utilização de provas ilícitas, porque isso equivaleria a se tornar cúmplice da ilegalidade policial, o que corromperia o julgamento; 3ª) assegurar ao povo que a acusação não será beneficiada pela conduta ilegal das autoridades públicas (policiais), diminuindo o risco de seriamente minar a confiança do povo no governo(44).

Com vista a dar efetividade a essas finalidades (principalmente a 1ª e a 2ª), a Suprema Corte Americana desenvolveu a teoria dos frutos da árvore envenenada (the fruits of the poisonous tree), segundo a qual a árvore ruim (busca ilegal, p. ex.) dará maus frutos: processo e condenação injustos e, conseqüentemente, nulos. Por outras palavras: independentemente da legalidade da colheita, a prova também será ilícita se derivar de outra prova ilícita. Depois disso, em cortes mais conservadoras, a Suprema Corte estabeleceu diversas limitações a essa teoria, dentre elas estas duas: a) limitação da fonte independente, segundo a qual os fatos

descobertos a partir da prova ilícita não seriam necessariamente ilegais, se pudessem ainda ser provados por fonte independente; b) limitação da descoberta inevitável, pela qual a prova seria admissível se a acusação provasse que ela seria inevitavelmente descoberta por meios legais, etc.(45)

No Brasil, no julgamento do HC 69.912-RS, em que os réus foram condenados com base em interceptação telefônica, cuja autorização judicial deu-se antes da regulamentação do art. 5º, XII, o Supremo Tribunal, por 6 x 5, primeiramente repeliu a teoria da árvore dos frutos envenenados, admitindo serem válidas as provas ilícitas por derivação (DJU 26/11/1993). No entanto, posteriormente, descobriu-se que o filho do Min. Néri da Silveira, que votou favoravelmente a admissibilidade das provas, atuou no processo como membro do Ministério Público. Atendendo impugnação da defesa, foi realizada nova sessão, sem a presença do Ministro impedido, modificando-se a votação para 5 x 5, com a conseqüente concessão do habeas corpus, nos termos do art. 146, parágrafo único, do Regimento do STF. Assim, nessa segunda votação, acolhendo a teoria da árvore dos frutos envenenados, o STF anulou o processo a partir da prisão em flagrante:

"Prova ilícita: escuta telefônica mediante autorização judicial: afirmação pela maioria da exigência de lei, até agora não editada, para que, ‘nas hipóteses e na forma’ por ela estabelecidas, possa o juiz, nos termos do art. 5º, XII, da Constituição, autorizar a interceptação de comunicação telefônica para fins de investigação criminal; não obstante, indeferimento inicial do habeas corpus pela soma dos votos, no total de seis, que, ou recusaram a tese da contaminação das provas decorrentes da escuta telefônica, indevidamente autorizada, ou entenderam ser impossível, na via processual do habeas corpus, verificar a existência de provas livres da contaminação e suficientes a sustentar a condenação questionada; nulidade da primeira decisão, dada a participação decisiva, no julgamento, de Ministro impedido (MS nº 21.750, 24/11/93, Velloso); conseqüente renovação do julgamento, no qual se deferiu a ordem pela prevalência dos cinco votos vencidos no anterior, no sentido de que a ilicitude da interceptação telefônica – à falta de lei que, nos termos constitucionais, venha a discipliná-la e viabilizá-la – contaminou, no caso, as demais provas, todas oriundas, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (fruits of the poisonous tree), nas quais se fundou a condenação do paciente."(46)

A polêmica não terminou, persistindo inclusive no próprio STF, que ficou dividido nessa decisão por 5 a 5, ficando implícita, na primeira votação, que a posição do Tribunal era no sentido de repelir a teoria. No entanto, com a aposentadoria do Ministro Paulo Brossard, que era favorável à tese majoritária, assumiu o Min. Maurício Corrêa, que no julgamento do HC 72.588-PB, votou a favor da aplicação da teoria da árvore dos frutos envenenados. Desse modo, a partir daí, o STF tem nova posição majoritária, admitindo, por apertada margem (6 a 5), a inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação.

A decisão do HC 69.912-RS, firmando o entendimento de que são inadmissíveis as provas ilícitas por contaminação, foi repetida em vários julgados: HC 73.351, Rel. Min. Ilmar
Galvão, RTJ 168/543 - HC 72.588-PB, rel Min. Maurício Corrêa, Informativo do STF nº 35 - HC 74.299, Rel. Min. Marco Aurélio, RTJ 163/683 - HC 73.510, Rel. Min. Marco Aurélio, Informativo do STF nº 96.

A teoria dos frutos da árvore envenenada só se aplica às provas decorrentes, direta ou indiretamente, da prova ilegal, não se aplicando a provas sem relação com a contaminação. Desse modo, a presença de prova ilícita não impede o recebimento da denúncia, não havendo que se falar de sua inépcia ou nulidade do seu recebimento ou do processo, se houver outras provas independentes da contaminada(47). Também não implica nulidade da condenação se esta tiver se dado com base em provas independentes da ilícita(48).

6.2 - PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Este princípio nasceu no direito americano, onde é conhecido como princípio da razoabilidade, mas atingiu seu ápice no direito alemão, onde é usada a denominação aqui empregada. Além da denominação diversa, o direito americano e alemão dão a esse princípio fundamento distinto: neste ele funda-se no estado democrático de direito; naquele, no devido processo legal, no que foi seguido pelo STF no julgamento da ADIN 958-3/RJ. Fora essas duas distinções, o princípio possui tanto no direito americano quanto no alemão a mesma formulação.

Esse princípio é mais facilmente sentido do que conceituado. Pelo princípio da proporcionalidade, na interpretação de determinada lei ou da constituição, devem ser sopesados os interesses e direitos em jogo, preferindo-se o interesse ou direito mais importante, de modo a dar-se a solução concreta mais justa(49).

Com base neste princípio, a doutrina e a jurisprudência procuram mitigar o aparente caráter absoluto do art. 5º, LVI, da CF, admitindo, em alguns casos excepcionais, a utilização no processo da prova ilícita.

A utilização de prova ilícita em favor da defesa é aceita unanimemente, de modo que se torna dispensável listar os autores que a admitem. Neste caso, quando o réu obtém a prova de modo ilícito, entende-se que há o confronto do princípio da proibição da prova ilícita com o princípio da ampla defesa do réu, devendo prevalecer este. Além disso, há autores que entendem haver no caso legítima defesa, excluindo a ilicitude, de modo que a prova obtida pela réu é lícita(50).

No tocante à utilização da prova ilícita pela acusação, quase toda a doutrina manifesta-se contrariamente, podendo-se citar a título de exemplo: Ada Pellegrini Grinover(51), Luiz Flávio Gomes(52) e Antonio Magalhães Gomes Filho(53). Raros são os autores que admitem o emprego da prova ilícita a favor da acusação; parecem admiti-la: Adalberto José Q. T. de Carmargo Aranha(54) e Antônio Scarance Fernandes(55).

Criticando a corrente que só admite prova ilícita em favor da defesa, argúi José Carlos Barbosa Moreira o seguinte:

"Se a defesa – à diferença da acusação – fica isenta do veto à utilização de provas ilegalmente obtidas, não será essa disparidade de tratamento incompatível com o princípio, também de nível constitucional, da igualdade das partes? Quiçá se responda que, bem vistas as coisas, é sempre mais cômoda a posição da acusação, porque os órgãos de repressão penal dispõem de maiores e melhores recursos que o réu. Em tal perspectiva, ao favorecer a atuação da defesa no campo probatório, não obstante posta em xeque a igualdade formal, se estará tratando de restabelecer entre as partes a igualdade substancial. O raciocínio é hábil e, em condições normais, dificilmente se contestará a premissa da superioridade de armas da acusação. Pode suceder, no entanto, que ela deixe de refletir a realidade em situações de expansão e fortalecimento da criminalidade organizada, como tantas que enfrentam as sociedades contemporâneas. É fora de dúvida que atualmente, no Brasil, certos traficantes de drogas estão muito mais bem armados que a polícia e, provavelmente, não lhes será mais difícil que a ela, nem lhes suscitará maiores escrúpulos, munir-se de provas por meios ilegais. Exemplo óbvio é da coação de testemunhas nas zonas controladas pelo narcotráfico: nem passa pela cabeça de ninguém a hipótese de que algum morador da área declare à polícia, ou em juízo, algo diferente do que lhe houver ordenado o ‘poderoso chefão’ local."(56)

O Superior Tribunal de Justiça tem admitido o emprego da prova ilícita pro societate. No julgamento do HC 3.982-RJ (RSTJ 82/321), admitiu como válida, para embasar a acusação, prova ilicitamente obtida (no caso, interceptação telefônica autorizada antes da Lei 9.296/96). Essa mesma decisão foi reafirmada no HC 4.138-RJ (Repertório IOB de Jurisprudência – 1ª quinzena de julho de 1996 – n º 13/96, p. 217) e no HC 6.129-RJ (RSTJ 90/364).

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Se a própria Constituição tratou com extrema severidade os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e crimes hediondos (art. 5º, XLII), para combatê-los e, em vista do direito violado no caso concreto (p. ex., a prova obtida com violação da intimidade), parece-nos admissível, com base no princípio da proporcionalidade, a utilização de prova ilícita pro societate, principalmente se tais crimes forem executados por organizações criminosas. Nesses casos, afasta-se a proibição do art. 5º, LVI, da CF em nome da manutenção da segurança da coletividade, que também é direito fundamental (art. 5º, caput), direito esse que o Estado tem o dever constitucional de assegurar (art. 144, caput).

Naturalmente, nem toda prova ilícita pro societate é admissível no combate a crime hediondo ou equiparado cometido por organização criminosa, já que o princípio da proporcionalidade impõe que sempre se leve em conta, caso a caso, os direitos e interesses em confronto.

Uma confissão obtida com tortura ou prova dela derivada, por exemplo, jamais seria admissível no processo, porque neste caso não haveria um interesse mais relevante que propiciasse a aplicação do princípio da proporcionalidade, já que a CF fez e equiparou a tortura ao crime hediondo (art. 5º, XLII).


7 - CONCLUSÕES

No decorrer deste trabalho, nem sempre foi possível estabelecer conclusões seguras, dado o pouco tempo de vida do atual Texto Constitucional e as vacilações da doutrina e da jurisprudência. No entanto, mesmo assim, é possível extrair algumas conclusões parciais a respeito do tema:

A inviolabilidade do sigilo existe em face de terceiros e não dos titulares do direito à intimidade, de modo que não é ilícita a gravação de conversa telefônica por uma das partes, sem o conhecimento da outra, quando há justa causa. Mas não constitui "justa causa", para tornar lícita tal gravação, a mera comunicação ao Judiciário de crime de ação pública (STF, RTJ 162/03).

Diferentemente, é lícita a gravação da conversa por parte de um dos interlocutores, quando ele estiver sendo vítima de crime, porque neste caso há excludente de ilicitude, de modo que tal prova pode ser aceita nos tribunais para punir o autor da infração (STF, RTJ 167/206, 168/1022).

Não estão protegidos pelo direito à intimidade os acontecimentos públicos (STF, RTJ 165/934) ou não revestidos de caráter secreto (STF, RTJ 128/745). Também estão fora dessa proteção os fatos nos quais não há quebra de confiança (STF, RTJ 148/213), sendo, pois, lícita a prova obtida nesses casos.

Embora a atividade probatória seja mais livre no processo penal, não é ela insuscetível de limites, já que o processo tem sempre feitio ético e existe, principalmente, como instrumento de garantia do réu. Por outro lado, os direitos fundamentais não são direitos absolutos, de modo que, em alguns casos, podem ser restringidos com a finalidade de assegurar a preservação da ordem pública (STF, RT 709/418).

No direito brasileiro, são inadmissíveis não só as provas ilícitas, mas também aquelas cuja colheita só foi possível, direta ou indiretamente, a partir de provas ilícitas (STF, RTJ 155/508).

É aplicável o princípio da proporcionalidade. De modo que regra proibitiva do art. 5º, LVI, da CF não pode ser tida como absoluta, devendo ceder quando em confronto com o direito à ampla defesa, levando, assim, a admissão da prova ilícita em favor do réu. Essa mesma regra também cede em favor da acusação, quando em causa está o combate aos crimes mais graves, principalmente se estes são perpetrados por organizações criminosas (STJ, RSTJ 82/321).

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Sobre o autor
Paulo Ivan da Silva Santos

procurador do Estado do Piauí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Paulo Ivan Silva. As provas obtidas com violação da intimidade e sua utilização no Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2110. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Texto publicado na Revista da Justiça Federal do Piauí nº 1, vol. 1, jul/dez 2000

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