3. DANO MORAL
3.1 Histórico
No que tange à evolução histórica do dano moral, foi no Código de Hamurabi, sistema codificado de leis, surgido na Mesopotâmia, que encontramos pela primeira vez na história ideias claras e predominantes sobre direito e economia. Adotava como princípio geral a ideia de que o “o forte não prejudicará o mais fraco”, cuja interpretação mostra-nos a preocupação de conferir ao lesado uma reparação equivalente ao dano sofrido.
Como exemplo de indenização em favor da vítima, em valor pecuniário, temos os parágrafos 209, 211 e 212 do referido Código:
§ 209. Se um awilum ferir o filho de um outro awilum e, em consequência disso, lhe sobrevier um aborto, pagar-lhe-à dez ciclos de prata pelo aborto.
§ 211. Se pela agressão fez a filha de um Muskenun expelir o (fruto) de seu seio: pesará cinco ciclos de prata.
§ 212. Se essa mulher morrer, ele pesará meia mina de prata.
Assim, verifica-se que o Código de Hamurabi visava a reparação das lesões sofridas, sejam materiais ou morais, condenando o autor do dano a sofrer ofensas idênticas, com a aplicação da Lei de Talião, ou a indenizar a vítima com importâncias em prata.
O Código de Manu, do ponto de vista da civilização moderna, significou um grande avanço, pois colocou como prioridade o ressarcimento da vítima através de uma sanção que consistia no pagamento de um valor pecuniário.
Sobre essa codificação, Clayton REIS afirma:
[Com o Código de Manu] suprimiu-se a violência física, que estimulava nova reprimenda igualmente física, gerando daí um ciclo vicioso, por um valor pecuniário. Ora, a alusão jocosa, mas que retrata uma realidade na história do homem, onde o bolso é a parte mais sensível do corpo humano, produz efeito de obstar eficazmente o animus de delinquente37.
O Alcorão também traz inúmeros exemplos de repressão histórica às lesões na esfera extrapatrimonial, mas com fortes preceitos do Código de Hamurabi. Na Bíblia Sagrada, principalmente no Antigo Testamento, encontramos algumas passagens que tratam, claramente, da reparação de danos morais, como, por exemplo, a tutela da honra, cuja lesão era motivo para aplicação de castigo corporal e indenização pecuniária.
Na Grécia antiga, as leis outorgavam aos cidadãos e aos seus bens a proteção jurídica, de modo que fixavam a reparação dos danos a eles causados, sempre em caráter pecuniário, abandonando a vingança física como forma de satisfação ao lesado.
Os romanos, assim que superada a época da vingança privada, tinham sempre presente a noção de reparação pecuniária dos danos entre eles, de modo que toda ato lesivo ao patrimônio ou à honra deveria ser reparado.
Assim, segundo Pablo Stolze GAGLIANO e Rodolfo PAMPLONA FILHO:
Na lei da XII Tábuas (surgida sob a égide de Terentilo Arsa, o Tribuno do Povo), encontramos, inclusive, várias disposições concernentes à reparação de danos, onde obviamente se insere o ressarcimento dos danos de caráter moral, amplamente tutelados. Os cidadãos romanos, que eventualmente fossem vítimas de injúria, poderiam valer-se da ação pecuniária a que se denominava injuriarum aestimatoria. Nesta, reclamavam uma reparação de dano através de um soma em dinheiro, prudentemente arbitrada pelo Juiz, que analisaria, cautelosamente, todas as circunstâncias do caso38.
No Direito Canônico há diversas passagens que evidenciam as regras típicas de tutela da honra, nota-se, inclusive, a preocupação específica em determinar a reparação dos danos morais e materiais, consignando dispositivos de leis seculares.
Mais especificadamente, no que concerne à evolução histórco-legislativa no Brasil, durante a época Colonial, com a vigência das ordenações do Reino de Portugal, não existia qualquer regra expressa acerca da ressarcibilidade do dano moral, sendo, portanto, questionável, qualquer afirmação de sua possibilidade àquela época.
Com o Código Civil de 1916, a redação dos arts. 7639, 7940 e 15941 levou às primeiras teorias que defendiam a reparabilidade do dano moral. Porém, observam Pablo Stolze GAGLIANO e Rodolfo PAMPLONA FILHO:
Contudo, em função de o art. 159 não se referir expressamente às lesões de natureza extrapatrimonial, bem como a argumentação de que a regra contida no art 76 se referia a dispositivo de ordem processual, condicionando, simplesmente, o exercício do direito de ação à existência de um interesse, a doutrina e jurisprudência nacional passaram a negar, peremptoriamente, a tese da reparabilidade dos danos morais42.
Sobrevieram leis especiais que regulavam especificamente o assunto, como o Código Brasileiro de Telecomunicações, o Código Eleitoral, a Lei dos Direitos Autorais. Já posteriormente à Constituição de 1988, podemos citar o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública, que possibilitou que os danos morais fossem objetos de ação de responsabilidade civil em matéria de tutela de interesses difusos e coletivos.
Assim, predominou a tese proibitiva da ressarcibilidade dos danos morais, admitindo-se somente as hipóteses previstas em lei. Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que se pode falar da ampla ressarcibilidade do dano moral, uma vez que pertencente à matéria de “Direitos e Garantias Fundamentais”.
O novo Código Civil brasileiro reconhece expressamente o instituto do dano moral, em seu art. 18643, e a sua reparabilidade, no art. 92744.
3.2 Conceito e fundamento jurídico
O dano, de acordo com a doutrina mais tradicional, constitui, ao lado da culpa e do nexo causal, um dos pilares do dever de indenizar, sendo considerado, portanto, elemento fundamental para a configuração da responsabilidade civil e, para alguns, a própria razão de ser do dever de indenizar45. Muito embora esta noção esteja hoje relativizada, continua sendo de suma importância a definição do que é dano.
No direito brasileiro o dano não é previamente estabelecido, ou seja, as hipóteses de sua ocorrência não estão tipificadas. A responsabilidade civil, portanto, é uma cláusula geral46.
O conceito de dano moral é bastante controvertido, não só na doutrina e jurisprudência brasileira, mas também na estrangeira, e tem sido alvo de inúmeros debates nas últimas décadas. Não mais se discute sua reparabilidade, vez que a própria Constituição Federal determinou que danos morais são indenizáveis, conforme afere-se da leitura dos incisos V e X do art. 5º, que dispõe:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
No entanto, é mister delinear os contornos deste tipo de dano, bem como definir seu conteúdo. É recorrente a sua conceituação em contraposição à definição de dano material. Partindo-se da ideia tradicional de dano material como evento que tem como consequência a redução do patrimônio da vítima, teremos, em sentido oposto, que dano moral é a lesão a interesses não patrimoniais.
José de Aguiar DIAS assevera que “quando ao dano não correspondem as características do dano patrimonial, dizemos que estamos na presença de dano moral”47.
Também este o entendimento de Orlando GOMES, para quem:
a expressão “dano moral” deve ser reservada exclusivamente para designar o agravo que não produz qualquer efeito patrimonial. Se há consequências de ordem patrimonial, ainda que mediante repercussão, o dano deixa de ser extrapatrimonial48.
No mesmo sentido, afirma Inocêncio Galvão TELLES que:
Há a ofensa de bens de caráter imaterial - desprovidos de conteúdo econômico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro. São bens como a integridade física, a saúde, a correção estética, a liberdade, a reputação. A ofensa objectiva desses bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza fisica ou de natureza moral49.
Alguns autores acrescentam à definição de dano moral a ocorrência de sofrimento, tristeza, dor, sentimento de desconforto, ou seja, associam-no ao efeito moral resultante da lesão a um bem jurídico tutelado. René SAVATIER afirma que “dano moral constitui todo sofrimento humano que não resulta de uma perda pecuniária”50.
Nesta esteira, temos, ainda, o posicionamento de Antônio CHAVES, para quem:
dano moral é a dor resultante da violação de um bem juridicamente tutelado sem repercussão patrimonial. Seja a dor física – dor-sensação como a denomina Carpenter - , nascida de uma lesão material; seja a dor moral – dor-sentimento – de causa material51.
Este entendimento é bastante usual nas cortes brasileiras e tem sido consagrado jurisprudencialmente. No entanto, nota-se que o dano moral é confundido com sua consequência, ao equipara-los. Por isto o alerta de Carlos Roberto GONÇALVES:
O dano moral não é propriamente a dor, a angústia, o desgosto, a aflição espiritual, a humilhação, o complexo que sofre a vítima do evento danoso, pois esses estados de espírito constituem o conteúdo, ou melhor, a consequência do dano. A dor que experimentam os pais pela morte violenta do filho, o padecimento ou complexo de quem suporta um dano estético, a humilhação de quem foi publicamente injuriado são estados de espírito contingentes e variáveis em cada caso, pois cada pessoa sente a seu modo52.
Também esta observação faz Eduardo ZANNONI, alegando que “o direito não repara qualquer padecimento, dor ou aflição, mas aqueles que forem decorrentes da privação de um bem jurídico sobre o qual a vítima teria interesse reconhecido juridicamente”53.
Alguns doutrinadores, como Paulo Luiz NETO LOBO54, refutando o elemento subjetivo para a caracterização do dano moral, procuraram conceituá-lo como dano moral objetivo, o qual se configuraria quando houvesse lesão a um direito de personalidade. Esta opção, entretanto, não nos parece correta, pois leva à tipificação das hipóteses de dano moral, restringindo-o a circunstâncias numerus clausus, vez que este só existiria quando houvesse violação de um direito expresso.
Pietro PERLINGIERI considera esta solução equivocada, vez que, segundo ele, “não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas”55.
Caio Mário da Silva PEREIRA ressalta que:
A enumeração é meramente exemplificativa, sendo lícito à jurisprudência e à lei ordinária editar outros casos. Com efeito, aludindo a determinados direitos, a Constituição estabeleceu o mínimo. Não se trata, obviamente, de “numerus clausus”, ou enumeração taxativa56.
Para Maria Celina Bodin de MORAES, “sob esta perspectiva constitucionalizada, conceitua-se o dano moral como a lesão à dignidade da pessoa humana”. A autora faz a ressalva de que: “quando, contudo, estes princípios, entrarem em colisão entre si, será preciso ponderar, através do exame dos interesses em conflito, tais princípios em relação a seu fundamento, isto é, a própria dignidade humana”57.
4. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL
4.1 Breves apontamentos
As obrigações nascem para serem cumpridas. Em geral, o cumprimento se dá nas exatas condições pactuadas pelas partes, por iniciativa do devedor e de forma espontânea, vindo, assim, a satisfazer integralmente o interesse do credor. Entretanto, inúmeras vezes esse adimplemento voluntário não ocorre, configurando o estado patológico da inexecução das obrigações.
Na seara negocial, as modalidades de descumprimento contratual são diversas e com linhas distintivas tênues. Como assevera Paulo NALIN, “depende do observador uma séria apreciação do caso concreto para enquadrar a situação em uma ou outra categoria. A sutileza entre as modalidades e seus limites, levou Westermann a afirmar que certas categorias possuem ‘zonas gris’”58.
Por derradeiro, cumpre-nos esclarecer o presente trabalho utiliza-se da terminologia “inadimplemento” como espécie do gênero “descumprimento”, não adotando os ensinamentos de Carlos Roberto GONÇALVES59 e Sérgio CARVALIERI FILHO60, que defendem que o inadimplemento pode ser absoluto ou relativo, sendo este último, a situação de mora.
A seguir, discorrer-se-á acerca de cinco modalidades: inadimplemento absoluto, mora, violação positiva do contrato, cumprimento imperfeito e quebra antecipada do contrato.
4.2 Modalidades
4.2.1 Inadimplemento absoluto
Configura-se o inadimplemento absoluto, também conhecido como inexecução definitiva, quando se torna impossível a prestação ou quando o devedor de prestação insubstituível nega-se a realizá-la, bem como na circunstância do credor não tem mais interesse em recebê-la.
Agostinho ALVIM ensina que se dá inadimplemento absoluto quando a obrigação não foi cumprida, nem poderá sê-lo, como no caso de perecimento do objeto, por culpa do devedor. Mais precisamente: quando não mais subsiste para o credor a possibilidade de receber61.
Por sua vez, Judith Martins-COSTA, ao conceituar o instituto, defende que a noção normativa de inadimplemento é a de “situação objetiva de não-realização da prestação devida e de insatisfação do credor, independentemente da causa da qual a falta procede”62.
Marcos CATALAN, em seu livro “Descumprimento contratual”, assim assevera:
No contexto do presente estudo melhor seria afirmar que haverá inadimplemento quando da recusa ou impossibilidade imputável ao devedor de desempenhar a obrigação nascida da relação negocial, em razão da impossibilidade física ou jurídica do objeto, desde que superveniente à conclusão do negócio jurídico, ou, ainda, quando houver a perda de interesse do credo na prestação. Quanto ao primeiro aspecto, tem-se que poderá nascer tanto do perecimento como da deterioração do objeto, como também da ausência de vontade do devedor em cumprir o ajustado63.
Convém pontuar que tal modalidade de descumprimento contratual comporta duas espécies: total ou parcial. Será total quando a obrigação deixar de ser cumprida em sua totalidade, como é o caso do vendedor que se certifica de entregar o quadro X ao comprador, porém o bem perece por culpa daquele.
Dar-se-á o inadimplemento absoluto parcial quando a obrigação compreender mais objetos, sendo que alguns são entregues e outros não. A título exemplificativo, imagine-se uma confeiteira que se comprometeu a entregar cinco tipos de doces para um casamento, porém, só entrega quatro. A obrigação foi parcialmente cumprida, porém a parte restante configura inadimplemento absoluto, pois não têm os noivos interesses em receber os doces em data diversa que a do casamento.
Insta esclarecer, ademais, a distinção entre o inadimplemento absoluto e a mora, modalidade de descumprimento contratual adiante abordada. Acerca do tema, assevera Agostinho ALVIM:
A ideia é esta: a distinção está na possibilidade ou impossibilidade. (...) Alguns civilistas, partindo do princípio de que a mora se verifica na hipótese de, a despeito do atraso, ser ainda possível o cumprimento da obrigação, vêem nisso um terceiro elemento da mora. Mas, rigorosamente falando, não há aí elemento novo, autônomo. Todavia, a apreciação da possibilidade ou impossibilidade de ser ainda cumprida a obrigação é decisiva, segundo ensinamento comum, para a distinção entre mora e inadimplemento absoluto, já que umas são as consequências do inadimplemento absoluto, outras as da mora64.
Adiante, continua o autor:
Acompanhando a doutrina dominante, nós entendemos que o critério para a distinção reside, efetivamente, na possibilidade ou impossibilidade, mas essa possibilidade ou impossibilidade, com maior precisão, não há de se referir ao devedor e sim ao credor: possibilidade ou não de se receber a prestação65.
Portanto, verifica-se que, diferentemente da mora, no inadimplemento absoluto ocorre uma impossibilidade material para a realização da obrigação ou a falta de interesse do credor em receber a prestação.
Como ressalta Paulo NALIN, a manifestação da ausência de interesse do credor não fica somente a seu encargo. A rejeição, decorrente a imprestabilidade da realização futura da prestação, afere-se, antes de qualquer coisa, quando se trata de obrigação com data fixa, não em termos relativos, pois entende-se que a primeira deve ser realizada impreterivelmente no dia acordado, ao passo que os termos relativos tornam o atraso contornável.
Em sua obra, o referido autor dá-nos o seguinte exemplo:
Em uma obrigação de transporte “A”, contratante dos serviços da empresa “B”, que não tem sua mercadoria entregue em tempo hábil no porto de Santos, perde a possibilidade de acomodá-la e embarcá-la para a exportação. Neste caso, apesar do interesse do credor perdurar, não mais existe a possibilidade da execução da obrigação, face já ter zarpado o nau. “A”, diante de ser exportador pontual, fica em situação delicada com o importador “C”, em virtude do descumprimento pela não remessa das mercadorias. Do descumprimento surgem prejuízos outros para o exportador, como a perda de mercado para a concorrência e o abalo do prestígio comercial quanto a sua pontualidade66.
Com o brilhante exemplo dado, vislumbra-se que além do descumprimento contratual e sua consequente demanda por perdas e danos67, tem o credor, ainda, a possibilidade de pleitear o dano extrapatrimonial sofrido.
Por derradeiro, ressalta-se que, para eximir-se de qualquer reparação e compensação de danos, cumpre ao devedor demonstrar que sua conduta foi justificada, quebrando assim o nexo de causalidade entre a ação e os danos sofridos.
Não demonstrado o fator externo que levaria a quebra do nexo causal, cabe ao devedor indenizar os prejuízos que seu inadimplemento venha a causar. Na seara negocial não há como se sustentar a necessidade de conduta culposa por parte do devedor que tenha descumprido a obrigação que assumiu por meio de sua vontade volitiva, podendo afirmar-se que impera nessa seara a teoria do risco, cabendo ao faltante a demonstração de que o incumprimento se deu por fatores alheios a sua esfera de atuação de vontade68.
4.2.2 Mora
A análise do instituto da mora é de suma importância para a averiguação da incidência da responsabilidade civil. O estudioso alemão Harm Peter WESTERMANN assim discorre acerca do instituto:
A mora supera em importância prática a impossibilidade. Distingue-se entre a mora do devedor, considerando o retardamento de uma prestação em si ainda possível, e a mora do credor ou de aceitação, consistindo na não-aceitação da prestação do devedor regularmente oferecida69.
Portanto, vislumbra que a mora pode ser definida como um atraso culposo no cumprimento na obrigação, derivado de qualquer uma das partes, quando esta ainda é útil para o credor70.
Inicialmente, cumpre-nos questionar se a noção de mora está umbilicalmente ligada ao atraso ou retardamento da prestação, conclusão esta que se extrai dos conceitos anteriormente expostos.
Se assim o fosse, como explicar o texto do art. 39471 do Código Civil brasileiro que amplia a noção da mesma para além do fator tempo, afirmando-a também presente quando da violação dos requisitos: lugar e modo de pagamento?72
Verifica-se, portanto, que no ordenamento pátrio há um alargamento da noção de mora, na medida em que nosso Código Civil dilata o conceito para além do elemento tempo, incluindo a desobediência aos fatores lugar e modo.
Judith Martins-COSTA, ao lecionar o tema, brilhantemente aponta:
Os mais arcanos significados etimológicos indicam ser a mora um “esquecimento” que gera a memória do que devia ser prestado (ou recebido), e este não foi. Nas mais diversas legislações, este “não o foi” diz respeito ao retardo da prestação: o que devia ser prestado (ou recebido) não o foi no tempo devido. Esta equiparação entre mora e retardo, essa sua limitação ao tempo da prestação, tem colocado aos diversos sistemas jurídicos o problema de saber se constitui, ou não, mora o fato de a prestação ter sido prestada tempestivamente, no tempo devido, mas em local diverso, ou em modo diverso do devido. (...) Este problema não se justifica entre nós, pois a noção de mora do art. 394 (...) é ampla e flexível, abraçando todos esses casos, e correspondendo ao modo de ser integral da prestação [e] parece-nos relevante a opção brasileira, ao menos para enfatizar que não é apenas o retardo que seta no núcleo conceitual da mora73.
Ademais, destaca-se que tal escolha do legislador brasileiro é inovadora, pois diversos ordenamentos jurídicos apresentam o conceito de mora atado unicamente ao elemento temporal, como se vislumbra no Código Civil espanhol74, no Código Civil português75 e no Código Civil argentino76, respeitando o conceito criado ao longo de séculos.
Superada a extensão do fenômeno moratório, cumpre-nos dissertar, ainda que brevemente, acerca das suas espécies: a mora do credor e a mora do devedor.
A mora do credor consiste na recusa, sem juto motivo, do recebimento do que lhe é devido. Marcos CATALAN, citando Enneccerus e Lehmann, define a mora creditória com sendo um atraso no cumprimento da obrigação fundado na ofensa à necessária colaboração, imposta ao credor enquanto dever lateral de conduta que tem como finte máxima, e que lhe dá suporte, o princípio da boa-fé objetiva77.
De grande valia o destaque da desnecessidade do elemento culpa na mora creditoris ou accipiendi. Tal circunstância se justifica em razão da relação jurídica obrigacional complexa, na qual o devedor tem o direito de adimplir a obrigação com o intuito de libertar-se, independentemente da aceitação, ou não, do credor.
Ademais, sustenta-se que o elemento culpa é descartado na mora do credor, por conta da impossibilidade de justificativa lógica de aumento da responsabilidade do devedor quanto à guarda e conservação da coisa e ainda quanto aos ônus financeiros nascidos da mora accipiendi; ou seria possível entender que nenhum dos pólos da relação jurídica deva suportar os riscos do negócio?78
Parece-nos evidente que a resposta de tal indagação é negativa, posto que, em nosso ordenamento jurídico, a mora creditória visa à isenção da responsabilidade do devedor pela perda ou deterioração do objeto, desde que não aja com dolo.
Outro argumento a fundamentar a desnecessidade da culpa no conceito da mora do credor advém do dever acessório de cooperação, imposto a ambas as partes pelo princípio da boa-fé objetiva. Acerca do tema, discorre Paulo NALIN:
(...) em que pese uma adequada dispensa do elemento subjetivo da responsabilidade civil, ele se abre perante o credor que não cooperar, há de se tratar que a matéria sob a ótica contratual, particularizada a violação obrigacional da cooperação, não somente pela mora, cuja tratativa já vem posta pelo próprio Código Civil nacional, como ainda, pelo inadimplemento e pela violação positiva do contrato79.
Assim, verifica-se que é imposto ao credor o dever de colaborar com o devedor, na busca do adimplemento, sendo que quando não houve razão legítima para a recusa do recebimento, deve-se reconhecer a mora do credor.
Por fim, instar destacar que, ao contrário do Código Civil português, que prevê expressamente a dispensa no elemento culpa em seu art. 813º, o ordenamento jurídico brasileiro não apresenta regra específica, cabendo à doutrina a defesa de que a mora do credor deverá sempre ser auferida no plano objetivo, dispensado o fator subjetivo.
Nas palavras de Marcos CATALAN, tal postura transparece seja em razão do direito que possui o devedor de quitar suas obrigações, seja por conta da incongruência em se admitir o agravamento da situação do devedor ou ainda por conta do dever de cooperação que se impõe ao credor em razão do feixe de deveres que acompanham o objeto do negócio jurídico e que emanam da relação jurídica obrigacional enquanto organismo complexo80.
A mora do devedor, por sua vez, consiste no retardo, atribuído a fato imputável ao devedor, no cumprimento da obrigação. Segundo PONTES DE MIRANDA, possui dois pressupostos: a) que a obrigação exista e seja eficaz; e b) que as circunstâncias legais imponham ao devedor o dever de adimplir81. Paulo NALIN, por sua vez, aponta, dentre os pressupostos da mora, três fundamentais: a) inexecução no vencimento; b) possibilidade de execução futura (purgação); e c) imputabilidade de execução do tema82.
Ao analisar o tema, Marcos CATALAN afirma que a primeira questão que insta esclarecer é pertinente ao início da mora, pois o estado moratório traz inúmeras consequências ao devedor, como a incidência de juros, o fenômeno da perpetuatio obligationis e a possibilidade do credor seu direito potestativo de resolução, como dispõe o art. 475 do Código Civil83.
Na seara negocial, o legislador brasileiro trata do tema no art. 397 do Código Civil84, versando o caput do artigo sobre as obrigações líquidas e certas vencíveis a termo, e seu parágrafo único, acerca das obrigações ilíquidas e prestações sem data para vencimento, necessitando as últimas da interpelação do devedor para a caracterização da mora, entendendo-se englobadas aqui, as obrigações condicionais, se de outro modo não puder realizar a prova do fator de eficacização da obrigação85.
Tratamento semelhante é dado em diversos ordenamentos, dentre os quais podemos citar o português86 e o chileno87, que, como o direito pátrio, postulam que as obrigações a termo, vencidas, têm o condão de impor o estado moratório ao devedor, desde que este não comprove que o retardo deu-se por circunstâncias alheias a sua vontade ou está amparado no exercício regular de um direito.
Apontando como sendo o feito mais relevante da mora, dentro da seara do tema global do presente estudo, Paulo NALIN afirma que o credor, ainda que a prestação esteja em atraso, não pode resolver a obrigação antes que a mora se transforme em inexecução definitiva88. Justificando tal posicionamento, o autor aduz que a relevância está dentro de um enfoque abstrato, pois ao se purgar a mora, pressupõe-se que o credor está satisfeito em todo o seu crédito, não restando nenhum prejuízo patrimonial e/ou extrapatrimonial a ser ressarcido e/ou compensado.
Portanto, vislumbra-se que a purgação enquadra-se bem nas obrigações de dar, de modo que se purgando a mora, os interesses do credor realizam-se quando ocorre o pagamento, tendo como efeito necessário a extinção da relação obrigacional.
Por sua vez, quando se tratar de obrigação de fazer, mais suscetível é a verificação dos danos extrapatrimoniais pela mora. Acerca do tema, Paulo NALIN ensina:
Parece mais suscetível de verificação de danos extrapatrimonais pela mora, mesmo que tardiamente realizada a prestação, quando for obrigação de fazer, inclusive pelo fato de que, eventualmente, se trata de prestação personalíssima. A figura é usualmente esquecida pelos sistemas jurídicos de orientação francesa, conforme preconiza Polacco, à semelhança do nosso Código Civil, quando da análise da mora. Entretanto, uma imprescindível verificação da situação concreta se impõe, tendo em vista que responde o devedor pelos prejuízos que sejam consequência provável do não cumprimento tempestivo da prestação. A partir do momento que desrespeita o devedor o prazo contratualmente previsto, ou imposto pelo credor para o cumprimento, acaba por se enquadrar em um “estado de responsabilidade”, passando a ser sujeito passivo, em potencial, de ação indenizatória89.
Assim, o devedor, além de cumprir com a obrigação anteriormente pactuada, tem a responsabilidade de indenizar o credor pelos eventuais prejuízos que o atraso no adimplemento tenha-lhe causado, inclusive os de natureza extrapatrimonial.
4.2.3 Violação positiva do contrato
A presente modalidade de inexecução das obrigações comporta inúmeros sinônimos, como cumprimento defeituoso, adimplemento ruim, inexecução contratual positiva90. Independentemente da terminologia adotada, a espécie consiste na violação da obrigação por razão de vício na prestação, não por uma inexecução ou atraso. Portanto, diz respeito à sua qualidade, sem qualquer ligação à sua identidade ou quantidade.
Há muitos séculos, na França, Robert J. POTHIER discorreu acerca de um imóvel que, logo depois de construído e entregue ao dono que o encomendara, vem a desmoronar por fato atribuível ao construtor que não executou a obrigação como deveria e que tem como consequência o dever de indenizar o accipiens pelos danos sofridos91.
Antunes VARELA, por sua vez, ao exemplificar o instituto, imagina as hipóteses de uma açucareira que fornece, na data aprazada, as ramas de cana de açúcar prometidas à refinaria, destarte, envia ramas fermentadas; e a do fazendeiro que entregou, no prazo estipulado, as crias que vendera, outrossim, os animais estavam doentes92.
Em todos os exemplos supra mencionados, vislumbra-se a clara possibilidade da configuração do dano moral, em razão dos efeitos causado pelo descumprimento do dever secundário ou lateral de cada obrigação. Este é o cerne da definição conceitual da violação positiva do contrato.
O Código Civil brasileiro, ao tratar da matéria dentro do conceito de mora, de maneira inadequada93, não oferece uma resposta satisfatória ao problema, circunstância que dá à doutrina a importante tarefa de construir o embasamento da violação contratual positiva.
Em nosso ordenamento pátrio, podemos pensar na incidência da hipótese de inexatidão qualitativa ao analisar o art. 44194 e o art. 67995 do Código Civil, além do art. 1896 do Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, não se verifica em solo brasileiro o tratamento específico da matéria, restando uma lacuna em nossa legislação, a qual deve ser superar analogicamente pela doutrina e pela jurisprudência.
Ante a ausência de norte legislativo, afora a variedade de nomenclatura, surgiram inúmeras teorias acerca do direito violado por esta modalidade de quebra contratual. De acordo com os estudos de Mota PINTO97, podem-se destacar três correntes básicas: (a) a que os designa por deveres de proteção em face dos deveres de prestação; (b) a que os denomina como outros deveres de conduta ou deveres de diligência; e (c) a que os chama de deveres laterais98.
Marcos CATALAN, ao tratar do tema99, assim aduz:
No rol das situações de adimplemento inexato, ingressariam ainda as ofensas aos deveres laterais, desde que tragam, como já frisado, efeitos próprios, entendidos estes como efeitos diversos dos eventualmente causados em razão do incumprimento temporário ou definitivo, temas que diuturnamente ganham corpo no sistema de responsabilidade negocial, seja no microssistema consumerista, com referências expressas à responsabilidade objetiva, seja no sistema do Código Civil, onde se entende que também impera a mesma teoria100.
Por derradeiro, insta esclarecer que o credor, ao receber a prestação de forma qualitativamente imperfeita, não teve seu interesse creditório necessariamente satisfeito, vez que o recebimento de prestação viciada não tem o condão de extingui-la101.
Isto se dá em razão de umas das características dos deveres laterais, que é ausência de prestação determinada, de forma previamente definida, vindo a se delinear conforme a execução do contrato. Portanto, para a verificação do cumprimento e a consequente extinção do contrato, deve-se analisar a boa-fé (cooperação)102 do devedor.
Verificada que a prestação recebida não satisfez integralmente ao credor, pois deixou resíduos referentes à violação dos deveres laterais, há a possibilidade de pleito de reparação de danos, inclusive de natureza extrapatrimonial.
4.2.4 Cumprimento imperfeito
Também denominada como cumprimento inexato, esta modalidade de inexecução das obrigações consiste no cumprimento vicioso por parte do devedor, que realiza a prestação defeituosamente, sem que esta corresponda integralmente ao pactuado.
Insta esclarecer que a diferença básica entre esta espécie e a anterior explanada encontra-se no fato de que o cumprimento imperfeito, além da qualidade, diz respeito também à quantidade da prestação, referindo-se, portanto, a obrigação principal.
Há autores que defendem a existência de uma única modalidade abrangedora de ambos os aspectos, como é o caso de Ruy Rosado de AGUIAR JUNIOR, que afirma que a imperfeição procede de ofensa: ao modo e a forma estabelecidos para a prestação, aí incluída a quantidade e a qualidade (entrega de coisas em quantia inferior; prestação de serviços com deficiência); ao tempo (os serviços prestados por menos tempo do que o previsto) e ao lugar (mercadorias entregues em cidade diversa da indicada). O cumprimento imperfeito pode estar ligado à própria prestação principal e assim ofender diretamente a obrigação principal, mas também pode decorrer de descumprimento da obrigação acessória, sendo essa violação causadora de ofensa indireta à obrigação principal103.
No presente estudo, não coadunamos com tal posicionamento, reservando-nos a defender que a violação positiva do contrato refere-se ao descumprimento de um dever lateral de conduta, ao passo que o cumprimento imperfeito concerne à obrigação principal104.
Dentre os pressupostos dessa modalidade de inexecução, Paulo Romano MARTINEZ ressalta (a) a realização da prestação pelo devedor; (b) a violação ao princípio da pontualidade; (c) a aceitação da prestação pelo credor, mediante sua ignorância quanto ao defeito; (d) mostrar-se o defeito relevante; e (e) sobrevirem danos típicos105.
Acerca da violação do princípio da pontualidade, o autor assevera que existem nove classes, quais sejam: (i) a realização da prestação de forma diversa do contratado; (ii) a prestação realizada em tempo distinto do pactuado (antecipada ou atrasada); (iii) inobservância da quantidade devida, a maior ou a menor; (iv) violação quanto ao local de execução da obrigação; (v) entrega de uma coisa por outra; (vi) inobservância da qualidade da coisa entregue; (vii) objeto de contrato sobre o qual recai gravame ou ônus; (viii) violação a deveres acessórios106; e (ix) formas que a lei expressamente definir como defeituoso o cumprimento107.
4.2.5 Quebra antecipada do contrato
Dentre as modalidades de descumprimento contratual, encontramos a quebra antecipada do contrato, também denominada inadimplemento antecipado do contrato, cuja terminologia original é antecipated breach of contract108.
Tal modalidade prevê a possibilidade real de uma das partes pactuantes revelar, seja por seus atos, seja expressamente, que descumprirá a parcela contratual a que esta obrigado. Assim, resta claro que tal modalidade só é aplicável a contratos de execução futura ou sem termo certo, além da execução diferida, na medida em que a renovação da obrigação, pelo pagamento da parcela futura, gera a oportunidade em se descumprir antecipadamente109.
Insta esclarecer a importância de não se confundir a quebra antecipada do contrato com o vencimento antecipado da obrigação. Esta consiste na circunstância da obrigação ganhar eficácia antes do termo pactuado entre as partes, por conta da ocorrência de algumas situações no plano concreto.
Citando Ruy Rosado de Aguiar, Marcos CATALAN afirma que seria possível o incumprimento antecipado quando se verifique que o devedor adote conduta nitidamente contrária à obrigação, de tal modo que seja possível prever, à luz da base fática objetivamente considerada, que a prestação não será desempenhada110.
Ademais, continua o autor, afirmando que Araken de ASSIS, admitindo a hipótese, assevera que a figura carece de previsão expressa que venha a equiparar seus efeitos aos do incumprimento definitivo ou possibilitando o vencimento antecipado do negócio111, com o que concorda Judith Martins-COSTA defendendo o uso do raciocínio analógico da exceptio non adimpleti contractus necessariamente conectada à boa-fé objetiva112113.
Acerca do tema, merece destaque a lição de Anelise BECKER:
Nosso direito, ainda fiel à visão pandectística da relação obrigacional, veda expressamente ao credor demandar o devedor antes de vencida a dívida, com certeza por desconhecer a relação de confiança que liga as partes durante todo o curso do vínculo. Considerando esta, é perfeitamente possível a adoção da teoria do inadimplemento antecipado entre nós, por tratar-se da violação daquele direito que desde o nascimento da relação obrigacional tem o credo de tê-la mantida firme, presumindo que o devedor manter-se-á sempre pronto, hábil e querendo adimplir, exigível durante a vida da relação e, por tanto, violável, passível de ocasionar um verdadeiro inadimplemento que, em relação ao termo do contrato, seria antecipado114.
Em nosso ordenamento jurídico, o Superior Tribunal de Justiça não se mostra alheio a tal modalidade em seus julgados, embora ainda imbuídos de grande timidez por conta do excessivo apego ao princípio da conservação dos negócios jurídicos115.
A fim de exemplificar uma circunstância em que pode ocorrer a quebra antecipada do contrato, deixando de lado as grandes obras que demandam um lapso temporal razoável para serem executadas, podemos pensar em exemplos com prestações menos complexas, como um contrato pactuado para aulas particulares de certo idioma, a serem ministradas no período de férias do aluno, quando se descobre que o professor está indisponível no período, por estar em uma longa viagem, ou então que aquele mestre não tem conhecimento do idioma que deveria ensinar116.
Ao discorrer sobre esta modalidade de descumprimento contratual, Paulo NALIN ensina:
A quebra antecipada pode gerar na esfera jurídica do contratante previamente frustrado prejuízos de toda a ordem. Constatados tais prejuízos, mesmo que futuros, deverá o contratante prejudicado ajuizar indenização, optando pela espera do vencimento da parcela a vencer, ou, imediatamente, quando toma ciência do descumprimento que há por vir. A escolha cabe ao credor, podendo ser reparado dos prejuízos sofridos, ou que sofrerá117.
Portanto, vislumbra-se que esta modalidade de descumprimento contratual refere-se à circunstância de a parte verificar, antes da data acordada para o cumprimento, que a prestação não será cumprida, gerando inúmeros danos que por ela serão suportados, seja de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, em decorrência da inobservância ao conteúdo anterior pactuado.