INTRODUÇÃO
Em uma era onde os conflitos étnicos, raciais e religiosos encontram-se cada vez mais presentes, o tema da tolerância assume um papel fundamental na agenda internacional. A tolerância é o pressuposto necessário para o reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Por meio dela, tornam-se possíveis a convivência harmônica e pacífica entre diversos grupos humanos e a preservação de minorias, evitando o recrudescimento de movimentos xenófobos.
Todos os seres humanos, apesar das diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais.[1]
A tolerância e a resistência estão intimamente relacionadas, uma vez que esta constitui um instrumento de pressão para a consolidação daquela. Passemos a analisar esses dois temas ao longo deste artigo.
DA RESISTÊNCIA
Na linguagem histórico-política, se designam sob o termo “resistência”, entendido em seu significado estrito, todos os movimentos ou diferentes formas de oposição ativa e passiva que se deram na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, contra a ocupação alemã e italiana, efetuada de modos diversos.[2]
Como indica, do ponto de vista lexical, o próprio termo, trata-se mais de uma reação que de ação, de uma defesa que de uma ofensiva, de uma oposição que de uma revolução. Há que se diferenciar, contudo, a resistência passiva da ativa. Enquanto aquela se limita à não colaboração, a sabotar passivamente, nos ministérios e nas fábricas, as iniciativas do inimigo, esta o ataca com o fim de o desmoralizar, estando na guerrilha a sua máxima manifestação.
Segundo Norberto Bobbio, “o alfa e o ômega da teoria política é o problema do poder: como o poder é adquirido, como é conservado e perdido, como é exercido, como é defendido e como é possível defender-se contra ele. Mas o mesmo problema pode ser considerado sob dois pontos de vista diferentes, ou mesmo opostos, quais sejam, ex parte principis ou ex parte populi”.[3]
O primeiro deles é o de quem se posiciona como conselheiro do príncipe e figura como porta-voz dos interesses nacionais; o segundo ponto de vista é o de quem se erige em defensor do povo. Assim, toda a história do pensamento político pode ser distinguida conforme se tenha posto o acento no dever da obediência ou no direito à resistência (ou à revolução).
Passemos a tratar do direito de resistência.
Primeiramente, é fundamental estabelecer a distinção entre contestação e resistência. Ambas pertencem às formas de oposição extralegal e deslegitimadora. Contudo, o contrário da resistência é a obediência, enquanto que o contrário da contestação é a aceitação. A obediência é uma atitude passiva e a aceitação é uma atitude ativa. Em oposição à obediência, a resistência compreende todo comportamento de ruptura contra a ordem constituída; coloca o sistema em crise, mas não necessariamente em questão. Em oposição à aceitação, a contestação se refere, mais do que a um comportamento de ruptura, a uma atitude de crítica, que põe em questão a ordem constituída sem necessariamente pô-la em crise.
O importante é que se podem verificar os dois casos-limite, isto é, o de uma resistência sem contestação (a ocupação de terras por camponeses famintos, por exemplo) e o de uma contestação que não se faz acompanhar por ato subversivo que possa ser chamado de resistência (a ocupação de salas na universidade, que é certamente um ato de resistência, nem sempre caracterizou necessariamente a contestação do movimento estudantil). Enquanto a resistência, ainda que não violenta, pode até chegar ao uso da violência, o questionamento do contestador é sempre de natureza ideológica.
Ocorre que a questão do direito de resistência perdeu, ao longo do século XIX, grande parte do seu interesse, por duas razões principais.
A primeira, de caráter ideológico, está relacionada com a crença no fenecimento natural do Estado. Com o crescimento da sociedade industrial, passou-se a acreditar que os homens deveriam guiar-se pelas leis naturais de mercado, restando ao Estado apenas o monopólio do poder coercitivo.
A segunda, de caráter institucional, está ligada intimamente ao surgimento do Estado liberal e democrático, caracterizado por um processo de acolhimento e regulamentação das várias exigências provenientes da burguesia em ascensão, no sentido de conter e delimitar o poder tradicional. Esse processo foi responsável pela “constitucionalização” do direito de resistência e de revolução, que ocorreu por meio de três institutos típicos: o da separação dos poderes, o da subordinação de todo poder estatal ao direito e o da democracia participativa. Portanto, houve uma inversão de tendência com relação à concepção e à práxis política através das quais se foi formando o Estado liberal e democrático do século XIX.
Mas ao contrário do que se imaginou, o desenvolvimento da sociedade industrial não diminuiu as funções do Estado, mas aumentou-as desmesuradamente. A ilusão jurídico-institucional do século passado consistia em crer que o sistema político fosse auto-suficiente, isto é, capaz de buscar remédios aptos a controlar o sistema político.
No que tange à democracia participativa, é importante ressaltar que esta se encontra em crise por pelo menos três razões: o parlamento está longe de representar a vontade da maioria; mesmo que este fosse ainda o órgão do poder real, a participação popular limita-se a legitimar, a intervalos mais ou menos longos, uma classe política restrita que tende à própria autoconservação, e que é cada vez menos representativa; por fim, a participação é distorcida ou manipulada pela propaganda das poderosas organizações religiosas, partidárias, sindicais, etc. A participação popular, destarte, mesmo nas democracias mais evoluídas, tende ao não ser tão eficiente, direta e livre.
É dentro deste contexto que reemergem propostas mais radicais, que ultrapassam a linha da democracia representativa e repõem em circulação os temas tradicionais do direito à resistência e à revolução. Quando o tipo de Estado que se propôs absorver o direito à resistência mediante sua constitucionalização entra em crise, é natural que se recoloque o velho problema, bem como que voltem a ecoar, ainda que sob novas vestes, as velhas soluções.
Entretanto, entre as velhas teorias sobre o direito de resistência e as novas, há diferenças significativas. Senão vejamos:
a) o problema da resistência é visto hoje como fenômeno coletivo e não individual;
b) o que hoje se tende a derrubar não é uma determinada forma de Estado, mas uma determinada forma de sociedade, da qual as instituições são apenas um aspecto. Ninguém pensa hoje que se possa renovar o mundo abatendo um tirano;
c) enquanto as velhas teorias discutiam sobre o caráter lícito ou ilícito da resistência em suas várias formas, ou seja, colocavam o problema em termos jurídicos, quem hoje discute sobre resistência ou revolução o faz em termos essencialmente políticos. Não se questiona se é justa ou injusta, mas apenas se é adequada à sua finalidade. Deste modo, o discurso não versa tanto sobre direitos e deveres, mas sobre as técnicas mais adequadas a empregar naquela oportunidade concreta.
É necessário mencionar que há diferença entre a não-observância de uma lei proibitiva que consiste numa ação positiva, por um lado, e a não-execução de uma lei imperativa que consiste numa omissão ou numa abstenção, por outro.
As várias formas de obediência civil, por sua vez, também devem ser diferenciadas das técnicas de pressão não violenta que se voltam contra interesses econômicos. Mas assemelham-se pelo fato de que têm como finalidade principal a de paralisar, neutralizar, pôr o adversário em dificuldade. Ou seja: não contrapor ao poder um outro poder, um contrapoder, mas tornar o poder impotente.
Por fim, vale lembrar que a resistência passiva não se confunde com o poder negativo (poder de veto). Este é habitualmente exercido no vértice; a resistência passiva é exercida na base; o poder de veto é, geralmente, o resíduo de um poder que resiste à morte; a resistência passiva pode ser o primeiro sinal de um poder novo; o poder de veto serve habitualmente à conservação do status quo; a resistência passiva visa à mudança.
AS RAZÕES DA TOLERÂNCIA
Para Norberto Bobbio, quando se fala de tolerância no seu significado histórico predominante, o que se tem em mente é o problema da convivência de crenças diversas. Atualmente, o conceito de tolerância é generalizado para o problema da convivência das minorias étnicas, lingüísticas e raciais.[4]
Robert Weaver Shirley define etnocentrismo como “a crença firme na verdade da própria cultura de alguém. O etnocentrismo é a idéia de que a própria cultura e crenças de cada um são ‘a verdade’ ou, pelo menos, a maneira superior de lidar com o mundo. Mas os fundadores da antropologia ensinaram que o etnocentrismo é falso – que todas as culturas são, em geral, iguais, que nenhuma cultura ou sociedade possui o monopólio da verdade e que, de qualquer forma, todas elas merecem respeito”.[5]
Ora, como pilar do princípio da igualdade jurídica há o direito à diferença. Este direito refere-se à identidade cultural de certos grupos sociais e se exprime no direito das pessoas pertencentes a esses grupos, a ver reconhecidas e respeitadas as suas diferenças essenciais em relação às demais pessoas, diferenças essas consistentes em valores e costumes próprios (língua, crenças, tradições).
A tolerância se traduz no reconhecimento de posições contrastantes dentro de um sistema conflituoso disciplinado por “regras do jogo” convencionadas.[6]
O princípio da tolerância se afirmou plenamente no século XVIII com o Iluminismo e o racionalismo. E no século XIX foi um componente essencial do pensamento político liberal.
Mister se faz diferenciar, entretanto, o problema da tolerância de crenças e opiniões diversas, que implica um discurso sobre a verdade e a compatibilidade teórica ou prática de verdades até mesmo contrapostas, do problema da tolerância em face de quem é diverso por motivos físicos ou sociais, que põe a questão do preconceito como tema relevante da agenda internacional.
A primeira forma de intolerância deriva da convicção de possuir a verdade. A questão fundamental que sempre foi posta pelos defensores da tolerância religiosa ou política é deste teor: como são compatíveis, teórica e praticamente, duas verdades opostas?
Já a segunda forma de intolerância deriva do preconceito e da discriminação, seja esta racial, sexual ou étnica.
Da acusação que o tolerante faz ao intolerante, isto é, de ser um fanático, o intolerante se defende acusando-o de, por sua vez, ser um cético ou, pelo menos, um indiferente, alguém que não tem convicções fortes e que considera não existir nenhuma verdade pela qual valha a pena lutar. Neste sentido, o tolerante é aquele que não dá a menor importância à verdade.
A tolerância, contudo, é tida como um mal necessário. Ela não implica a renúncia à própria convicção firme, mas pura e simplesmente a opinião de que a verdade tem tudo a ganhar quando suporta o erro alheio. O tolerante, por razões práticas, dá muita importância ao triunfo de uma verdade, a sua, mas considera que, através da tolerância, o seu fim, que é combater o erro ou impedir que ele cause danos, é mais bem alcançado do que mediante a intolerância.
Assim, se sou o mais forte, aceitar o erro alheio pode ser um ato de astúcia; se sou o mais fraco, suportar o erro alheio é um estado de necessidade; se somos iguais, entra em jogo o princípio da reciprocidade, sobre o qual se fundam todas as transações, todos os compromissos, todos os acordos, que estão na base de qualquer convivência pacífica.
A tolerância significa a escolha do método da persuasão em vez do método da força ou da coerção. Trata-se da recusa consciente da violência como único meio para obter o triunfo das próprias idéias.
Segundo John Locke, um dos maiores teóricos da tolerância, “a verdade não precisa da violência para ser ouvida pelo espírito dos homens”.
Um das definições possíveis de democracia é a que põe em particular evidência a substituição das técnicas da força pelas técnicas da persuasão como meio de resolver conflitos.
Segundo Bobbio, a democracia é caracterizada por “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos”.[7]
Há também uma razão moral para a importância da tolerância: o respeito à pessoa alheia. Nesse caso, a tolerância não se baseia na renúncia à própria verdade, ou na indiferença frente a qualquer forma de verdade. Na realidade, trata-se de um conflito entre dois princípios morais: a moral da coerência, que me induzi a pôr minha verdade acima de tudo, e a moral do respeito ou da benevolência em face do outro. Assim, como o método da persuasão é estreitamente ligado à forma de governo democrático, também o reconhecimento do direito de todo homem a crer de acordo com sua consciência é estreitamente ligado à afirmação dos direitos de liberdade.
Ora, se o outro chegar à verdade, deve fazê-lo por convicção íntima e não por imposição, pois a liberdade interior é um bem demasiadamente elevado. A tolerância, aqui, não é desejada porque socialmente útil ou politicamente eficaz, mas sim por ser um dever ético.
Ademais, há doutrinas que sustentam que a tolerância é fundamental do ponto de vista teórico, uma vez que a verdade só pode ser alcançada através do confronto, ou mesmo da síntese de verdades parciais, já que a verdade não é una.
A tolerância pode ter dois sentidos: um positivo e outro negativo. Intolerância em sentido positivo é sinônimo de severidade, rigor, firmeza, qualidades todas que se incluem no âmbito das virtudes; tolerância em sentido negativo, ao contrário, é sinônimo de indulgência culposa, de condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor da vida tranqüila ou por cegueira diante dos valores.
Este debate assume especial relevância quando ao universalismo próprio dos direitos humanos são contrapostas as teorias do relativismo cultural.
A questão que se coloca é como compatibilizar a imposição de direitos humanos com o direito à autodeterminação dos povos. O direito de autodeterminação dos povos não inclui o direito de uma nação proclamar suas próprias regras jurídicas?
Deste modo, tolerância em sentido positivo se opõe à intolerância, ou seja, à indevida exclusão do diferente. Tolerância em sentido negativo, por sua vez, opõe-se à firmeza nos princípios, isto é, à justa ou devida exclusão de tudo o que pode causar dano ao indivíduo ou à sociedade. Ora, se as sociedades despóticas de todos os tempos e de nosso tempo sofrem de falta de tolerância em sentido positivo, as nossas sociedades democráticas e permissivas sofrem de excesso de tolerância em sentido negativo, no sentido de deixar as coisas como estão, de não interferir, de não se escandalizar nem se indignar com mais nada.
Ressalte-se, todavia, que nem mesmo a tolerância positiva é absoluta, pois não é possível fazer uma distinção entre boas idéias e más idéias, ao contrário do que sustentava Marcuse. A tolerância só se define com tal se forem toleradas também as más idéias. Contrapor uma tolerância repressiva, que é recusada, a uma tolerância emancipadora, que é exaltada, significa passar de uma forma de intolerância para outra.
Nenhuma forma de tolerância é tão ampla que compreenda todas as idéias possíveis. A avaliação do que é progressista e do que é reacionário é relativa a situações históricas mutáveis.
CONCLUSÃO
Após as breves considerações desenvolvidas ao longo deste artigo, é possível concluir que o núcleo da idéia de tolerância é o reconhecimento do igual direito de conviver, apesar das diferenças religiosas, étnicas ou raciais. Trata-se de pressuposto necessário para a consolidação da democracia.
Somente através do respeito ao próximo e da preservação das minorias é possível a formação de uma sociedade global pluralista, baseada na dignidade da pessoa humana. Sendo o homem um imperativo categórico, jamais deve ser utilizado como instrumento para a consecução de determinadas finalidades, já que ele constitui um fim em si mesmo.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco, Dicionário de Política, trad. Carmen C. Varriale et al, 12ª ed, vol. II, Brasília, UnB, 1999
BOBBIO, Norberto, O Futuro da Democracia, trad. Marco Aurélio Nogueira, rio de Janeiro, paz e Terra, 1986
________________, A Era dos Direitos, Trad. Carlos Nelson, Rio de Janeiro, Campus, 1992
COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 2ª ed, São Paulo, Saraiva, 2001
SHIRLEY, Robert Weaver, Antropologia Jurídica, São Paulo, Saraiva, 1987
Notas
[1] COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 2ª ed, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 1
[2] BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco, Dicionário de Política, trad. Carmen C. Varriale et al, 12ª ed, vol. II, Brasília, UnB, 1999, p. 1114
[3] BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Trad. Carlos Nelson, Rio de Janeiro, Campus, 1992, p. 143
[4] BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Trad. Carlos Nelson, Rio de Janeiro, Campus, 1992, p. 203
[5] SHIRLEY, Robert Weaver, Antropologia Jurídica, São Paulo, Saraiva, 1987, p. 5
[6] BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco, Dicionário de Política, trad. Carmen C. Varriale et al, 12ª ed, vol. II, Brasília, UnB, 1999, p. 1245
[7] O Futuro da Democracia, trad. Marco Aurélio Nogueira, rio de Janeiro, paz e Terra, 1986, p. 18