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O poder de veto no ordenamento jurídico brasileiro

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02/03/2012 às 15:17
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Integrante do conjunto de dispositivos institucionais que compõe o sistema de freios e contrapesos, o poder de veto encontra-se presente na Constituição como um dos principais poderes legislativos assegurados constitucionalmente ao chefe do poder Executivo nacional.

 

Sumário: 1. Introdução. 2. O Poder de veto como peça da engrenagem do sistema de freios e contrapesos. 3. Desenvolvimento histórico do poder de veto. 4. O Poder de veto no Brasil. 5. Conclusão. Referências.


 

1. Introdução[1]

Integrante do conjunto de dispositivos institucionais que compõe o sistema de freios e contrapesos, o qual configura a maioria dos Estados modernos fundamentados nos princípios da teoria da separação dos poderes elaborada por Montesquieu, o poder de veto encontra-se presente na Constituição Federal (CF) brasileira de 1988 como um dos principais poderes legislativos assegurados constitucionalmente ao chefe do poder Executivo nacional.

Com o objetivo de expor as principais minúcias do poder de veto enquanto instituto[2] juspolítico, bem como descrever o seu fluxo processual legislativo vigente no âmbito federal, o presente artigo versa sobre o poder de veto e o modo como ele está disciplinado na CF de 1988.[3] Numa perspectiva teórico-metodológica fundamentalmente jurídica, o texto está estruturado em três seções. A primeira apresenta o conceito de veto e identifica o papel institucional que ele desempenha como um dos mecanismos do sistema de freios e contrapesos. A seção seguinte promove uma breve resenha da trajetória histórica do poder de veto, desde as suas mais remotas e imprecisas origens – pois variável, conforme o autor –, bem como indica os tipos desenvolvidos ao longo desse período e que foram incorporados aos diferentes ordenamentos jurídicos atualmente existentes. A terceira e última, por sua vez, está voltada à exposição do modo como ele está regulamentado no Brasil, notadamente na Constituição Federal em vigor.


 

2. O Poder de veto como peça da engrenagem do sistema de freios e contrapesos

Em seu livro Do Espírito das leis[4], ao teorizar normativamente sobre a forma de governo na Inglaterra, Montesquieu (1995) elaborou a teoria da separação dos poderes, teoria essa que viria a ser o fundamento para a maioria dos arranjos institucionais dos Estados contemporâneos.

Para o autor, o Estado era um mal necessário: ao mesmo tempo em que deveria ser forte o suficiente para garantir a ordem civil, não poderia ser tão forte ao ponto de manter o cidadão totalmente submisso a ele. Daí a necessidade de garantir prerrogativas do cidadão frente a este poder, assim como a de enfraquecer o Estado internamente, sem, no entanto, deixá-lo fraco externamente. A solução encontrada para contornar essa questão foi dividi-lo em três partes, pois a ideia era que, desse modo, ele continuaria a ser forte em seus relacionamentos externos, mas não tão forte em suas relações internas.

Após essa idealização, o Estado passou a ser concebido como uma unidade que se forma a partir de uma diversidade, ele seria a soma de três partes. Entretanto, isto não bastava para assegurar as garantias sociais, era preciso que essas partes possuíssem prerrogativas exclusivas e agissem de forma autônoma entre si. Tornava-se imprescindível que houvesse uma especialização das tarefas desempenhadas, o que fez com que cada uma delas fosse considerada um poder.

Acerca das especializações conferidas a cada um deles: ao poder nomeado de Legislativo caberia elaborar as leis; ao chamado Executivo, aplicar essas leis; e, ao intitulado Judiciário, julgar as lides em consonância com as leis criadas pelo Legislativo e aplicadas pelo Executivo. Estes poderes, por sua vez, deveriam apresentar uma natureza moderada, porquanto haveria uma supervisão permanente entre eles. Cada um passaria a puxar para um lado, com a mesma força que os demais – por intermédio de instrumentos de controle recíprocos –, no intuito de manter o Estado em uma posição de estabilidade e de equilíbrio institucional entre cada um dos três poderes que passariam a compor-lhe. Com isso, acabou-se por moderar o próprio Estado e, por via de consequência, as ações dele para com os cidadãos.[5]

A respeito da divisão funcional do poder estatal, Rojo (2000, p. 106) afiança que ela “se refiere a la organización de controles recíprocos. Esta organización permite mantener un determinado equilibrio en la disposición y ejercicio del poder que una sociedad concentra en los órganos que crea para la acción del Estado” (destacado no original).

Pela máxima expressa no art. 2°, da CF de 1988 – a qual afirma a independência e harmonia entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário –, verifica-se que o Estado brasileiro adotou o princípio da separação de poderes, pelo qual cabe a cada um deles uma função típica[6]: ao Legislativo, a atividade legiferante; ao Executivo, a administração pública; e, ao Judiciário, o exercício jurisdicional. Todavia, como o próprio Montesquieu (1995) havia indicado, a previsão de autonomia e de consonância entre os poderes, por si só, não assegura a salvaguarda aos direitos fundamentais e a estabilidade estatal. Por essa razão, dispõe a Carta constitucional de um mecanismo de controle mútuo entre os poderes do Estado – “um conjunto complexo de delegações cruzadas” (AMORIM NETO; TAFNER, 2002, p. 16) – que permite manter o equilíbrio entre eles. Em termos práticos, conforme se manifesta Ferraz (1994, p. 18), “cada um dos poderes tem, nas suas prerrogativas, as ‘armas’ contra os demais Poderes”.

Ao conjunto dos diversos instrumentos criados – ou importados – para esse fim, dá-se o nome de sistema de freios e contrapesos. De acordo com Moreira Neto (1989), em uma perspectiva analítica do aparato constitucional brasileiro, as interferências entre os poderes do Estado, no que toca ao seu objeto, podem ser de quatro tipos: controle de cooperação, de fiscalização, de consentimento e de correção.[7] O primeiro seria o “que se perfaz pela co-participação obrigatória de um Poder no exercício de função de outro” (MOREIRA NETO, 1989, p. 14); o segundo, “o que se exerce pelo desempenho de funções de vigilância, exame e sindicância dos atos de um Poder por outro” (Ibidem, p. 15); o terceiro, “o que se realiza pelo desempenho de funções atributivas de eficácia ou de exeqüibilidade a atos de outro Poder” (Ibid., p. 17); e, o quarto, “o que se exerce pelo desempenho de funções atribuídas a um Poder de sustar ou desfazer atos praticados por um outro” (Ibid., p. 18).

Para que não restem dúvidas em torno da aparente contradição que possa subsistir entre as noções de poderes independentes e harmônicos com a de controles mútuos entre esses mesmos poderes, Grohmann (2001a, p. 86) é esclarecedor:

um poder é independente quando suas prerrogativas são exclusivas, isto é, não são decididas em conjunto com outro poder. Decisão em conjunto significa que um outro poder pode alterar a decisão do primeiro, que não haverá decisão se ambos não cooperarem de alguma forma.

O poder de checar é a capacidade de um poder controlar o outro, suas atividades e decisões. Contudo, não pode substituir ou concorrer para decidir nas funções e prerrogativas assinaladas ao outro poder. Significa a capacidade de impedir a efetividade da decisão tomada ou avaliar e punir os efeitos das decisões tomadas e efetivadas, não de formular alternativas.

Inserido nesse catálogo de dispositivos institucionais está o poder de veto, previsto como atribuição privativa do Presidente da República (e por analogia aos seus congêneres nos planos subnacionais, governadores e prefeitos), reservada expressamente pelo art. 84, inciso V, da CF.[8]

Desse modo, apreciado sob um enfoque jurídico, o poder de veto pode ser conceituado como a faculdade atribuída a poder diverso daquele que detém a incumbência de exercer a atividade legiferante, de obstar a transformação de um projeto de lei em lei propriamente dita. De forma mais específica, pode ser definido como o “o poder que se atribui ao Executivo de impedir ou retardar a formação de lei” (RODRIGUES, 1993, p. 26), ou “o poder de desaprovação total ou parcial exercido pelo Poder Executivo sobre projeto de lei emanado do Poder Legislativo” (ISERN, 2002, p. 88). Circunscrito ao âmbito jurídico brasileiro, o instituto do veto pode ser caracterizado como a manifestação formal exarada pelo chefe do poder Executivo, de discordância em relação a projeto de lei – lato sensu[9] – aprovado no âmbito do poder Legislativo.

Sob um ponto de vista político, contudo, o poder de veto é um dos instrumentos pelo quais o chefe do poder Executivo pode opor-se à entrada em vigor de proposta de lei aprovada pelo Legislativo, com a intenção de efetivar e/ou preservar sua agenda de governo. Para Mainwaring e Shugart (2002, p. 50), “el veto es un Poder Legislativo reactivo, en el sentido de que permite al presidente defender el statu quo reaccionando al intento de la Legislatura por alterarlo”. Tal afirmação se conecta à problemática evidenciada por Sartori (1996, p. 173) de “como se podem fundir as ações de governo e a criação de leis sem grande perda tanto do poder executivo como do legislativo”, já que a divisão de poderes tende a garantir os mecanismos de controle estatal. Ainda segundo Sartori (Idem, p. 174), “o poder de veto presidencial representa [...] sua defesa contra excessos da ação parlamentar e constitui uma característica típica do presidencialismo”, o que é corroborado por Isern (2002, p. 88), quando este fala que “o veto, como antítese da sanção, sem dúvida, objetiva coibir os excessos do Poder Legislativo, obrigando-o a reexaminar a matéria impugnada”. Mas, por outro lado, se analisado sob a ótica de um Executivo dominante em relação a um Legislativo submisso no processo de criação de leis, configura-se como um poder de impedir a atividade legislativa legiferante. Essa asseveração encontra respaldo no argumento de que há, modernamente, uma tendência por parte das democracias, de “governar por meio de leis [...]. O que implica que é impossível governar sem promulgar leis e, portanto, o apoio parlamentar é indispensável para a atividade governativa” (SARTORI, 1996, p. 173).

Por estas razões, seguindo a nomenclatura indicada por Moreira Neto (1989), pode-se dizer que o poder de veto é juspolítico, ou seja, consubstancia-se em um misto de jurídico e político.


 

3. Desenvolvimento histórico do poder de veto

Segundo Britto (1966), os mais antigos contornos institucionais do que viria a ser o veto legislativo encontram-se na Grécia monárquica (mais especificamente no seu modo de consulta popular), assim como no intercessio, no auctoritas, no tribunato da plebe romanos e no liberum veto polonês. No entanto, ele atribui o status de berço do instituto, nos moldes como hoje o vemos, à Inglaterra do século XV (representada por sua incipiente previsão na Magna Carta). De lá, por volta do final do século XVIII, o poder de veto alcança novos horizontes e “reaparece, sob várias formas, [...] nos Estados Unidos da América do Norte e na Europa Continental” (ISERN, 2002, p. 71)[10], de onde então ganha o mundo, carregando consigo as influências institucionais destes territórios, principalmente as norte-americanas e francesas.[11]

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É do século XVIII também o imbricamento do poder de veto com a noção de separação dos poderes estatais. Quando da elaboração da teoria da separação dos poderes comentada anteriormente, Montesquieu (1995) organizou a tarefa de legislar como atribuição do poder Legislativo que, necessariamente, deveria contar com a participação do poder Executivo. Para ele, caso o poder executivo não detivesse “o direito de vetar os empreendimentos do corpo legislativo, este último seria despótico porque, como pode atribuir a si o próprio todo o poder que possa imaginar, destruiria todos os demais poderes” (MONTESQUIEU, 1995, p. 122). Como consequência, “o poder executivo [...] deve participar da legislação por meio do direito de veto, sem o que seria despojado de suas prerrogativas” (Ibidem, p. 123). Como síntese do pensamento de Montesquieu, Moya (2006, p. 32) assevera: “a fim de que exista um governo equilibrado, o ramo que tenha a faculdade de estatuir (legislar) não deve ter a faculdade de vetar; e aquele que tenha a faculdade de vetar deve estar impedido de estatuir”.

O termo veto, de seu turno, conquanto forjado ainda à época do tribunato da plebe (BRITTO, 1966), sempre identificou a faculdade conferida a um dos atores político-sociais de impedir ou de opor-se a uma decisão tomada por outro ator de mesma natureza, quando em disputa pelo poder político, posto que, seguindo-se o pensamento de Britto (1966, p. 7), “o veto não é mais do que uma limitação à sua hegemonia”.[12] Desse modo, características político-institucionais à parte entre a Inglaterra do século XV e os Estados que contemporaneamente o preveem, o poder de veto ainda conserva seu “caráter de participante no duelo entre os Príncipes e as Assembléias” (Idem, p. 12), ou, em termos atualizados, o caráter de partícipe da disputa entre Executivo e Legislativo.[13]

De volta à trajetória pela qual o poder do veto passou ao longo dos anos que separam sua origem de sua previsão atual, decorrente essa dos relacionamentos entre aqueles que criavam e aqueles que aplicavam as leis (BRITTO, 1966), tanto Britto (1966) quanto Rodrigues (1993) delimitam três configurações principais em relação à extensão do instituto.[14]

A primeira dessas conformações é o veto absoluto. Originária da Grécia monárquica (aproximadamente 350 a. C.) para Britto (1966), mas de estirpe hitita (por volta de 3.000 a. C.) para Rodrigues (1993), sua principal característica é a irrevogabilidade.

A segunda é o limitado ou interruptivo.[15] De raiz anglo-americana (séculos XVII e XVIII), distingue-se por sua temporariedade. Enquanto o veto absoluto permite ao chefe do poder Executivo pôr termo final ao processo legislativo e impedir definitivamente a transformação de um projeto em lei, o limitado o autoriza a embargar temporariamente (até posterior deliberação legislativa[16]) a conversão da potencial lei em lei. Como se depreende, no tipo limitado é assegurado constitucionalmente ao Legislativo a oportunidade de ratificar a posição manifestada ao aprovar o projeto, o que ocorre quando do necessário exame das razões do veto. Obviamente, a decisão do Legislativo a respeito do veto – a manutenção dele ou a reafirmação da vontade parlamentar – está condicionada aos requisitos institucionais que a disciplinam, sobretudo o quórum para a votação.[17]

Já a terceira delas é o translativo ou restitutório. De ascendência alemã (século XX), consubstancia-se na prerrogativa de procrastinar a colocação de uma nova norma no ordenamento jurídico vigente por meio da transferência, por parte do chefe de Estado, de seu poder de veto em relação ao projeto de lei aprovado pelo Legislativo. Esta transferência, regra geral, é popular ou oligárquica (BRITTO, 1966), estando mais ligado ao veto de índole política.

Passado o foco à questão formal, duas são as maneiras pelas quais o chefe do poder Executivo pode fazer uso do seu poder de veto: tácita ou expressa. A forma tácita é vislumbrada por meio do veto de bolso (pocket veto) do modelo norte-americano (resultante da inação presidencial frente a projeto de lei levado a sua apreciação, caracterizando-se pela postura de termo final à proposta, sem possibilidade de retorno à deliberação legislativa). Já a forma expressa, conforme sua extensão, manifesta-se por meio do veto total (package veto) e do veto parcial (line item veto ou selective veto).

Pela exigência do § 1º, do art. 66, da CF de 1988 – de que o Presidente da República, ao efetuar o veto em determinado projeto de lei, comunique ao Presidente do Senado Federal, no prazo de 48 horas, os motivos que o levaram a desse modo proceder –, verifica-se o caráter expresso do veto brasileiro (a necessidade de manifestação positiva do Executivo). Ou seja, inexiste no Direito nacional o chamado veto de bolso.


 

4. O Poder de veto no Brasil

Desde a outorga da Constituição de 1824, o poder de veto – ou, textualmente àquela época, a recusa do Imperador de “prestar seu consentimento” (art. 64 da Constituição de 1824) –, já se fazia presente no arcabouço jurídico brasileiro. Todavia a denominação do instituto, e a sua previsão no formato parcial, só apareceram em 1926, com a reforma constitucional da Constituição de 1891. Nenhuma dessas duas alterações, contudo, era novidade: o veto já era assim chamado pela literatura especializada desde o tempo do Império. Quanto ao veto parcial, este já era previsto em alguns estados-membros (RODRIGUES, 1981).

Apesar de ter sofrido uma série de alterações em seu arranjo institucional nas Cartas Magnas que se seguiram (1934, 1937, 1946, 1967, 1988) – com evoluções e retrocessos[18] –, o poder de veto se manteve presente em todas elas.

Em se tratando de referências normativas, Rodrigues (1981) diz que as influências da Carta Imperial eram francesas. Foi somente com a passagem de Império para República que essas passaram a ser norte-americanas, nascedouro do presidencialismo contemporâneo e maior inspiração para o arranjo institucional brasileiro hodierno.

Na vigência da CF de 1988, a qual serve simultaneamente de base e de limitação às legislações subalternas relativas ao tema, o poder de veto encontra seu regramento máximo no Título IV (Da organização dos poderes), do Capítulo I (Do poder Legislativo), da Seção VIII (Do processo legislativo), da Subseção III (Das leis), mais precisamente no art. 66.

Pela observância da localização do artigo relativo ao poder de veto no texto constitucional, vê-se a relação direta existente entre esse e o processo legislativo: o âmbito por excelência do veto é o processo legislativo.[19] Segundo Moraes (2006), igualmente ao que ocorre com o veto, a definição do que vem a ser o processo legislativo apresenta uma dicotomia classificatória: jurídica e sociológica. Enquanto pela perspectiva jurídica ele é definido como o “conjunto coordenado de disposições que disciplinam o procedimento a ser obedecido pelos órgãos competentes na produção de leis e atos normativos que derivam diretamente da própria constituição” (MORAES, 2006, p. 599), pelo prisma sociológico ele é qualificado “como o conjunto de fatores reais que impulsionam e direcionam os legisladores a exercitarem suas tarefas” (Idem).

Além disso, não obstante seja o poder de veto uma atribuição legislativa assegurada ao chefe do poder Executivo[20] de interferir na função de criação das leis, esta interferência não é ilimitada nem discricionária. Pelo contrário, ela encontra demarcações formais e materiais para o seu exercício, isso porque formalmente o veto só pode abranger a totalidade do projeto ou a integralidade de unidades de articulação legais e, materialmente, só pode ser oposto mediante a devida fundamentação de suas razões.

Para esmiuçar o instituto do veto no Brasil deve-se, primeiramente, distingui-lo quanto à sua abrangência. Ele pode ser classificado em total ou parcial: a manifestação é total quando o projeto de lei é considerado na íntegra inconstitucional e/ou contrário ao interesse público; e parcial quando a contrariedade apontada cinge tão-somente a integralidade de artigo, parágrafo, inciso ou alínea do projeto apresentado (art. 66, § 2º, CF de 1988). Não pode, porém, a parcialidade recair sobre elementos textuais específicos, tais como frases e palavras, tendo em vista que o veto não serve para alterar a vontade legislativa expressa originalmente (TAVARES, 2003). Ademais, o caráter do veto parcial é negativo, o chefe do Executivo pode tão-somente suprimir texto do projeto de lei, nunca podendo efetuar alteração de natureza positiva, ou seja, acrescentar algo ao texto.

A principal vantagem de se contar com a previsão da modalidade parcial do poder de veto é que o chefe do Executivo não fica adstrito a duas opções diametralmente opostas: sancionar ou vetar totalmente o projeto de lei, pois há a faculdade de retirar determinadas partes específicas do projeto, sem ter de se posicionar totalmente contrário à vontade legislativa – manifestada quando da propositura do projeto ou da oposição de emendas –, nem procrastinar ainda mais, em certas situações, o disciplinamento jurídico de determinados assuntos emergenciais que se encontram desprovidos de regulação estatal.

Conforme relata Ferreira Filho (2007), o fator preponderante para a adoção nacional do poder de veto parcial foi a necessidade de contenção da introdução de emendas legislativas, sobretudo incidentes nos projetos de lei orçamentária (as chamadas caudas ou riders), as quais se consubstanciam em “disposições que, nada tendo que ver com a matéria regulada no projeto, são nele enxertadas para que o Presidente tenha de aceitá-las, se não quiser fulminar todo o projeto” (FERREIRA FILHO, 2007, p. 198-199). Ironicamente, porém, após ser institucionalizado, o veto parcial necessitou ter seu alcance refinado em função de uma inversão comportamental dos atores políticos. Em sentido contrário aos parlamentares, que procediam a inserções maliciosas nas proposições legislativas, o chefe do poder Executivo passou a retirar indiscriminadamente elementos textuais dos projetos de lei a ele submetidos, o que, em algumas situações, desnaturava toda a ideia principal do projeto aprovado pelo Legislativo.

Quanto à questão motivacional, as razões de veto restringem-se à invocação de inconstitucionalidade e/ou contrariedade ao interesse público. São elas, por conseguinte, de duas dimensões: uma jurídica e outra política.

A primeira das dimensões, a da inconstitucionalidade – ou da juridicidade –, pode ser acionada por meio de dois tipos de contrariedades normativas: formais e/ou materiais. O aspecto formal guarda relação com o cumprimento do conjunto de regras que rege o processo legislativo; com a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis; e com a correta competência para a postulação dos projetos de lei conforme o seu conteúdo. Ele se manifesta, portanto, “quando as normas inferiores são produzidas em desconformidade com o processo legalmente previsto para a sua formação” (ISERN, 2002, p. 19). O aspecto material, por sua vez, mantém correlação com o mérito propriamente dito da proposta de nova lei e a verificação da sua adequação com a ordem jurídica vigente, funcionando como uma instância de controle de constitucionalidade prévio das leis.[21] Ele expressa-se, consequentemente, “quando a norma inferior contraria, substancialmente, princípio, comando ou preceito constitucional” (Idem).

A segunda das dimensões, a da contrariedade ao interesse público – ou da inoportunidade (BRITTO, 1966) –, está vinculada a um juízo de valor subjetivo por parte do Executivo, dos prós e dos contras em relação aos efeitos que a proposta de lei a ser aprovada pode surtir quando vigente, não havendo parâmetros normativos para nortear sua deliberação.

Como não há nenhum impeditivo normativo para que um veto seja fundamentado tanto em razões de natureza constitucional quanto de conveniência política, três acabam sendo as motivações possíveis para a fundamentação do veto do Executivo: por inconstitucionalidade, por contrariedade ao interesse público, ou por ambas.

No atual sistema legal brasileiro, uma vez cumprido todo o trâmite legislativo, o projeto de lei aprovado pelo Legislativo (também chamado de autógrafo) é encaminhado ao Executivo, para que o Presidente o analise e decida se o sanciona ou se o veta. O prazo para tanto é de 15 dias úteis (a contar da data de seu recebimento), e o silêncio presidencial nesse período indica sanção tácita ao projeto (art. 66, § 3º, CF de 1988). Após a emissão do veto, deve o Presidente da República notificar o Presidente do Senado Federal, no prazo de 48 horas, acerca das razões que fundamentaram sua decisão.[22]

É em face dessa dupla exigência constitucional que Ferreira Filho (2007) diz decorrer do veto um caráter composto. Para ele, o veto

compreende [...] dois atos, a manifestação de vontade negativa – a discordância – e a comunicação fundamentada. Assim, aquela, dentro da quinzena, impede a sanção tácita do projeto, mas, somente conjugada com esta, aperfeiçoa o veto, o que deve ocorrer nas quarenta e oito horas seguintes à quinzena. Desse modo, se não houver tempestivamente essa comunicação, o veto não se aperfeiçoou e sancionado estará o projeto (Idem, p. 201).

Indo ao encontro desse argumento, Britto (1966, p. 39) entende que “a justificativa escrita decorre de imposição legal, sem a qual as Câmaras devem desconhecer o ato do Presidente”.

O fato é que, ao receber o veto do Executivo, seja ele total ou parcial, o projeto de lei aprovado retorna ao poder Legislativo para nova deliberação. Entretanto, nesse retorno, não se discute mais o conteúdo do projeto, mas unicamente os fundamentos do veto sofrido, logo, o que é decidido é a sua manutenção ou a sua derrubada por meio da análise das razões alegadas. Se o veto em questão for do tipo parcial, somente o elemento vetado regressa ao Legislativo, pois os demais dispositivos de pronto recebem a sanção executiva.[23]

Ao Congresso Nacional é garantido o prazo de 30 dias (a contar do recebimento do veto) para apreciá-lo em sessão conjunta.[24] Para que ele seja rejeitado, a CF de 1988 (art. 66, § 4º) exige a adesão, em votação secreta, da maioria absoluta dos membros do Legislativo – contados separadamente em cada Casa (Câmara dos Deputados e Senado Federal).[25] Ao analisar esse quesito, Mainwaring (2002) observa que ele é vantajoso ao Presidente, pois faz com que as ausências ou as abstenções contem a favor do Executivo e aumentem o custo para aqueles que pretendem rejeitar o veto, os quais devem não só convencer os colegas a votarem contra o Executivo, como mobilizá-los para comparecer à sessão. Na prática, portanto, dos três comportamentos possíveis (favorável, contrário e abstenção/ausência), dois beneficiam a vontade do Executivo.

Ao contrário da manutenção, que se opera quando os motivos exarados pelo Executivo são acatados pelo Legislativo, a derrubada se processa quando o veto ao projeto de lei é rejeitado. Nestes casos, o projeto de lei[26] é remetido novamente ao Presidente, só que agora não mais para aquiescência, e sim para promulgação (art. 66, § 5º, CF de 1988). Superado o veto parcial, a parte vetada passa novamente a integrar a lei na qual ela diz respeito, conjugando ambas as mesmas regras no que diz respeito à vigência.

Especificamente em relação a este ponto, interessante é o questionamento sobre a faculdade de o Congresso Nacional rejeitar parcialmente o veto do Executivo. A esta pergunta retórica, Ferreira Filho (2007, p. 200) responde que, no que toca ao veto parcial, “a apreciação das disposições vetadas há de ser fragmentária e nada obsta que o Congresso acolha as objeções contra frações do projeto e recuse outras”. Por outro lado, atinente ao veto total (apesar de a resposta ao problema já não ser tão evidente, haja vista a carência de discussões e, consequentemente, de argumentos sobre esse aspecto processual do veto), o mesmo autor também entende ser possível, pois “havendo a possibilidade de veto parcial, o veto total equivale à recusa de cada disposição do projeto” (Idem, p. 202); como consequência “nada obsta logicamente que o Congresso reaprecie cada disposição do projeto de per si, ratificando umas, rejeitando outras” (Ibidem). Sobre este mesmo mote, defendendo igualmente o ponto de vista de Ferreira Filho (2007), só que de forma mais genérica, Britto (1966) entende que, por ter o parlamento soberania para decidir, pode ele superar o veto total tanto em sua integralidade quanto em sua parcialidade.

A alternativa que se contrapõe ao veto é a sanção. Tal medida significa a identificação dos interesses entre Legislativo e Executivo, e, regra geral, é por sua incidência que o projeto de lei transforma-se em lei de fato e de direito. Diferentemente do veto, que só se materializa por meio de uma manifestação de vontade formal expressa, a sanção pode ser tanto expressa quanto tácita: ela é expressa quando o Presidente aquiesce com o projeto de lei lhe enviado à deliberação pelo Legislativo, e tácita quando o Presidente não se manifesta sobre o projeto de lei que foi a ele remetido no prazo constitucional de 15 dias úteis, os quais são contados da data de recebimento (art. 66, § 3º, da CF de 1988).

Por ser a sanção, juntamente com o veto, uma das duas possibilidades de manifestação do Presidente quando da etapa do processo legislativo que lhe compete deliberar, em não sendo essa efetuada no momento oportuno, está prescrita a possibilidade de confirmação do projeto de lei aprovado no Legislativo por parte do chefe do Executivo. Mesmo que o Congresso Nacional delibere em reunião conjunta pela superação do veto, o destino processual da nova lei é a imediata promulgação, consoante prescreve o art. 66, §§ 5º e 7º, da CF de 1988.[27]

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HETSPER, Rafael Vargas. O poder de veto no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3166, 2 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21211. Acesso em: 17 abr. 2024.

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