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Uniformização do entendimento jurisprudencial sobre o prequestionamento ficto como meio de efetivar a instrumentalidade do processo

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15/03/2012 às 16:37
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4. DA UNIFORMIZAÇÃO JURISPRUDENCIAL SOBRE O PREQUESTIONAMENTO FICTO

No Brasil a jurisprudência vem assumindo um papel de maior relevância dentro do nosso sistema jurídico. Segundo Didier Jr., o modelo brasileiro é sui generis, defendendo que para entendermos o sistema jurídico pátrio é preciso “romper com o ‘dogma da ascendência genética’, não comprovado empiricamente”[15], isto porque o Brasil apresenta um sistema peculiar que, apesar de trazer traços tanto do modelo estadunidense, quanto do modelo romano-germânico, é autônomo em relação aos demais, constituindo-se no “brazilian law”.

Diante deste panorama conclui-se que as decisões judiciais vêm apresentando um poder de persuasão cada vez maior na solução dos conflitos submetidos ao Poder Judiciário brasileiro. E é nessa realidade que surge a preocupação de uma uniformização dos julgados, a fim de que se preserve a segurança jurídica e a isonomia, evitando que os particulares encontrem-se a mercê de uma loteria jurisprudencial.

É certo que os julgados, por vezes, apresentam-se divergentes por uma série de fatores, tais como pela mutabilidade da realidade social ou pela pluralidade de órgãos judicantes. [16] No entanto, como bem afirma Marinoni, deve-se questionar a que ponto tal diversidade de decisões seria um problema para o ordenamento jurídico e para a sociedade que busca a solução de seus litígios pela via judicial.

Para Marinoni, não basta apenas a garantia, pelo Estado, da igualdade das partes no que tange ao contraditório ou ao acesso à Justiça, sem que haja a preocupação de uma isonomia em relação aos julgados, porquanto a decisão judicial seria o objetivo maior de todo litigante.

Vê-se, a partir daí, uma grave lacuna. Em que local está a igualdade diante das decisões judiciais? Ora, o acesso à justiça e a participação adequada no processo só tem sentido quando correlacionados com a decisão. Afinal, esta é o objetivo daquele que busca o Poder Judiciário e, apenas por isso, tem necessidade de participar do processo. Em outros termos, a igualdade de acesso, a igualdade à técnica processual e a igualdade de tratamento no processo são valores imprescindíveis para a obtenção de uma decisão racional e justa.[17]

Em assim sendo, o autor leva o foco para a necessidade da isonomia entre as decisões judiciais que versem sobre causas idênticas, como meio de promover a segurança de todo o ordenamento jurídico, tratando a decisão como o ápice da obtenção da Justiça.

De fato, quando se tem consciência teórica de que a decisão nem sempre é resultado de critérios previamente normatizados, mas pode constituir regra, fundada em elementos que não estão presentes na legislação, destinada a regular um caso concreto, não há como deixar de perceber que as expectativas que recaíam na lei transferem-se para a decisão judicial. A segurança jurídica passa a estar estritamente vinculada à decisão; essa é responsável pela previsibilidade em relação ao direito, e, portanto, tem que contar com estabilidade. Acontece que, diante deste deslocamento de eixo, torna-se também necessário repensar o significado externo de decisão. Não basta mais afirmar que esta não pode ser vista como mera aplicação da lei: trata-se de algo é óbvio e indiscutível. É imprescindível conferir à decisão do juiz contemporâneo um outro valor, que lhe assegure respeito e previsibilidade. [...] Tudo isso quer dizer que, embora o juiz possa criar a norma jurídica, é preciso impedir que haja uma multiplicidade de normas jurídicas para casos iguais, gerando insegurança e desigualdade. Aplica-se aí, literalmente, a máxima do common law, no sentido de que casos iguais devem ser tratados da mesma forma (treat like cases alike).[18]

 A heterogeneidade das decisões judiciais, para Barbosa Moreira, “compromete a unidade do direito [...], e não raro se semeiam, entre os membros da comunidade, o descrédito e o cepticismo quanto à efetividade da garantia jurisdicional.”[19] Assim, defende a uniformização da jurisprudência como forma de “evitar, na medida do possível, que a sorte dos litigantes e afinal a própria unidade do sistema jurídico vigente fiquem na dependência exclusiva da distribuição do feito ou do recurso a este ou àquele órgão.”[20]

Observa-se que, tendo a jurisprudência alcançado uma maior importância no sistema jurídico nacional, surge a preocupação das discrepâncias entre as decisões judiciais que se refiram a casos semelhantes, de forma a pôr em xeque o princípio da isonomia assegurado na Carta Magna e abalar a segurança do ordenamento jurídico. Nesse sentido é que doutrinadores defendem a uniformização jurisprudencial como mecanismo necessário ao bom funcionamento do Direito.

Atente-se para o fato de que a existência de decisões diferentes não é um problema em si mesmo, haja vista que o juiz, sendo o responsável pela aplicação efetiva da lei ao caso concreto, muitas vezes terá que aplicar determinada norma diferentemente em casos que exijam tratamento divergente[21]. Sobre este tema, Mancuso traz uma constatação bastante pertinente, afirmando que o problema atual, não está na existência de divergência jurisprudencial, a qual é prevista e ínsita ao modelo político-jurídico brasileiro; mas sim, nas irrazoabilidades praticadas pelos magistrados que, injustificadamente, proferem decisões antagônicas em casos em que não se constata modificação nas fontes materiais substanciais, causando um efeito social nefasto. Entre os casos que Mancuso considera como problemáticos, encontra-se a ocorrência de “controvérsias exclusiva ou predominantemente de direito, passíveis de sumulação, [as quais] seguem merecendo respostas díspares, conforme o Tribunal ou mesmo o órgão fracionário que as aprecie”.[22]

4.1 DA EDIÇÃO DE UMA SÚMULA VINCULANTE COMO MEIO HÁBIL À UNIFORMIZAÇÃO DO PREQUESTIONAMENTO FICTO

De todo o exposto até o presente momento, pode-se inferir que a uniformização, quando utilizada de forma equilibrada e racional, constitui-se como um meio eficaz para a solução isonômica dos litígios, num tempo razoável de duração, evitando julgados arbitrários.

Conforme já foi amplamente explanado, a convergência do entendimento jurisprudencial torna-se mais oportuno quando trata de matéria meramente processual, levando-se em consideração uma visão do processo como instrumento para a efetivação do direito material da parte. E é com base nesta visão que se desenvolve a tese esposada neste trabalho, ao tentar propor a uniformização do entendimento dos Tribunais Superiores no que tange ao prequestionamento ficto, matéria esta de cunho meramente processual e que deve servir como um meio de consecução do direito material almejado pelos agentes do processo, e não como um inibidor da busca por este direito.

A súmula vinculante é um instrumento de uniformização de jurisprudência surgido com a Emenda Constitucional nº 45/2004, sendo cabível quando atendidos os seguintes requisitos constitucionalmente previstos: tratar de matéria constitucional; versar sobre questão que tenha ensejado reiteradas decisões judiciais, devendo tratar sobre controvérsia atual que enseje grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de ações sobre questões idênticas; ser proposta pelos legitimados previstos em lei, que são os mesmos legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade, além do Supremo Tribunal Federal de ofício e de outros legitimados previstos pela Lei nº 11.417/2006; observância de quorum qualificado de 2/3 dos membros do STF.

Diante do afirmado, e levando em consideração que no presente estudo adotou-se o entendimento de que o prequestionamento é um requisito constitucionalmente previsto, infere-se que a súmula vinculante é o meio hábil a solucionar a divergência jurisprudencial acerca do prequestionamento ficto. Note-se que no presente caso, o Superior Tribunal de Justiça é quem está se imiscuindo em matérias que não são de sua competência para firmar entendimento que se mostra completamente oposto ao que defende o tribunal competente para a interpretação de tal questão jurídica.

Isso porque, no nosso entender, o conceito e aplicação do prequestionamento ficto são matérias de caráter eminentemente constitucional, não cabendo ao STJ, porquanto não é o intérprete autêntico nestes casos, sedimentar entendimento jurisprudencial acerca das mesmas, principalmente se tal entendimento for de encontro com o que preleciona o STF, tribunal responsável pela defesa e interpretação da Constituição Federal.

É passível de anotação o fato do Projeto de Lei nº 166/2010, que trata do novo Código de Processo Civil, prevê a criação de um dispositivo legal que acabaria, em termos, com essa discussão jurisprudencial sobre o prequestionamento ficto, podendo fadar ao insucesso a tese ora esposada pelo Superior Tribunal de Justiça nos seguintes termos: “Art. 979 (antigo art. 940 do Anteprojeto). Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos não sejam admitidos, caso o tribunal superior considere existentes omissão, contradição e obscuridade.”

Desta feita, enquanto citado projeto de lei não é aprovado definitivamente, visando evitar a insegurança jurídica e o sentimento social de injustiça, é que se entende que essa problemática de julgados divergentes deve ser solucionada o quanto antes, para que a seriedade do papel do Poder Judiciário não fique maculada. E tal solução, a nosso ver, seria dada com maestria através da edição de uma súmula vinculante acerca de dita matéria.

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5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo defendeu-se que o prequestionamento é um requisito de admissibilidade para os Recursos Excepcionais previsto constitucionalmente, seguindo a corrente doutrinária defendida por Medina.

Tal posicionamento consubstanciou-se no fato de entendermos que a Constituição Federal, ao tratar, em seus arts. 102, III e 105, III, que a interposição de ditos recursos fica condicionada à anterior decisão da causa por outro Tribunal, está instituindo o prequestionamento como requisito sem o qual se torna impossível o manejo dos Recursos Especial e Extraordinário.

Levando em consideração tais ponderações, tem-se como conseqüência o fato de que cabe ao Supremo Tribunal Federal a delimitação do conceito e aplicação deste instituto processual constitucionalmente previsto, porquanto este Tribunal é o responsável pela Guarda da Carta Magna, devendo realizar a interpretação do texto normativo constitucional e solidificar tal entendimento, o qual não deve ser contrariado por outros julgadores.

O prequestionamento foi pensado e desenvolvido como forma de minimizar as demandas interpostas perante os Tribunais Superiores, criando uma espécie de peneira para selecionar quais causas deveriam ser submetidas à apreciação destes tribunais. Tal como foi inicialmente criado, este instituto processual, antes de ser considerado cerceador do direito de ação, mostrou-se como um meio de tornar eficaz a prestação jurisdicional.

No entanto, o entendimento do STJ acerca do prequestionamento ficto faz com que sejam desprezados direitos fundamentais como o acesso ao Judiciário, o princípio da indeclinabilidade (non liquet), bem como os princípios da duração razoável do processo e da instrumentalidade.

Por todo o exposto, fica a dúvida de por que o Supremo, até o presente momento, não chamou para si a responsabilidade que lhe cabe, pondo fim a esta jurisprudência arbitrária do STJ e uniformizando definitivamente o entendimento no que diz respeito ao prequestionamento ficto.

Antes de ser um poder do Supremo, realizar dita convergência jurisprudencial é um dever deste tribunal, que deve pugnar pela correta interpretação do texto constitucional e pela defesa dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Magna. Ao quedar-se inerte, o STF está compactuando com uma situação vexatória para o Judiciário Brasileiro, onde as partes sentem-se inseguras e injustiçadas, por verem desrespeitados direitos processuais basilares do nosso ordenamento jurídico, o que leva, em muitos casos, à perda da tutela do próprio direito material almejado pela demanda. E dessa forma, há uma quebra com a evolução do Direito Processual, que deve ser visto como um instrumento por meio do qual as pessoas podem alcançar os direitos materiais em litígio.

A súmula vinculante apresenta-se como uma solução adequada, uma vez que é um meio que impõe uma observância obrigatória do entendimento jurisprudencial do STF pelos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta. Além do que, estão presentes todos os requisitos necessários para edição de tal súmula de efeitos vinculativos, porquanto a matéria alvo de uniformização, conforme amplamente defendido, é de cunho constitucional e enseja reiteradas decisões divergentes sobre questões idênticas, cuja controvérsia causa grave insegurança jurídica.

Dessa maneira, o Supremo Tribunal Federal não só iria pôr fim a esta irrazoável divergência jurisprudencial, como também iria defender a ordem do sistema jurídico brasileiro, haja vista que, uniformizando o entendimento acerca do prequestionamento ficto, com sua aceitação para a admissão dos recursos excepcionais, preservaria o ideal do processo como um meio para a efetivação dos direitos substanciais, e não como um fim em si mesmo. Em assim sendo, faria com que o STJ se desapegasse do formalismo exacerbado, atingindo o fim maior da atividade jurisdicional: a tutela efetiva e eficaz, seja do direito material discutido em Juízo, seja do próprio direito de ação, que é constitucionalmente assegurado a qualquer pessoa, independente da mesma ter êxito no mérito da causa.


6 – REFERÊNCIAS

BUENO, Cassio Scarpinella. “De volta ao prequestionamento – duas reflexões sobre o RE 298.695”. In: NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coords.). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: RT, 2005, p. 79. (Série Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos, V. 8).

CUNHA, Leonardo Carneiro da; DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3. 8 Ed. Bahia: Juspodivm, 2010.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 12 ed. V. 1. Bahia: JusPodivum, 2010

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. São Paulo: RT, 2009

MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. Disponível em: http://ufpr.academia.edu/LuizGuilhermeMarinoni/Papers/148909/O_Precedente_na_Dimensao_da_Igualdade

MEDINA, José Miguel Garcia. O prequestionamento nos recursos extraordinário e especial. 3 ed. São Paulo: RT, 2002

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 15. ed.  V. 5. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

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Sobre a autora
Larissa Pinheiro Quirino

Advogada em Recife (PE). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUIRINO, Larissa Pinheiro. Uniformização do entendimento jurisprudencial sobre o prequestionamento ficto como meio de efetivar a instrumentalidade do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3179, 15 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21294. Acesso em: 19 abr. 2024.

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