O Superior Tribunal de Justiça está prestes a concluir o julgamento de um recurso em que se controverte sobre a legitimidade da apropriação do crédito da energia elétrica por prestadora de serviços de telefonia, que, segundo sustenta, seria transformada em ondas eletromagnéticas, por resultado de uma modalidade de industrialização, pelo que imposto pago poderia ser levado a crédito para prestar-se como elemento redutor dos débitos do ICMS pela prestação dos serviços, notadamente porque o Decreto nº 640, de 1962, teria anteriormente equiparado os serviços de telecomunicação a uma atividade industrial.
Há sérias e fundadas dúvidas sobre o acerto da tese sustentada
É fora de dúvida que o ICMS é um imposto informado pelo princípio da não cumulatividade, mesmo porque, nesse sentido, é inequívoca a dicção do art. 155, § 2.º, I, da CF, cuja eficácia, embora dotada de eficácia imediata, subordina-se ao que, no particular, dispõe a lei complementar, pelo que, sendo a aplicação da não cumulatividade passível de restrição por norma infraconstitucional superveniente, por exigência do art. 155, § 2º, XII, “c”, da CF, reclama a interpositio legislatoris para que opere, em plenitude, no plano jurídico, todas as suas consequências e virtualidades eficaciais.
Portanto, é a própria Constituição que remete a disciplina da matéria a essa espécie normativa autônoma, vocacionada que está para versar, com exclusividade, a matéria subtraída ao campo de atuação das demais espécies situadas em grau inferior da normatividade jurídica.
Nesse contexto, ao desincumbir-se da tarefa que lhe cometeu o art. 155, § 2º, XII, “c”, da CF, a Lei Complementar nº 87/96, no art. 20, assegura ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha decorrido a entrada de mercadoria no estabelecimento, acrescentando, entretanto, em seu art. 33, que somente dará direito a crédito a entrada de energia elétrica no estabelecimento quando, em operação interna, for objeto de saída tributada ou consumida no processo de industrialização.
O aparente vínculo de incompatibilidade normativa que se pudesse vislumbrar entre o disposto no art. 20 e o art. 33, ambos da Lei Complementar nº 87/96, segundo o magistério jurisprudencial do Min. Celso de Mello, subsumir-se-ia ao conceito teórico das antinomias perfeitamente solúveis, na medida em que a aparente situação de antagonismo entre as duas disposições legais revelar-se-ia dirimível pela aplicação do critério da especialidade, por exigência de que as normas que compõem o ordenamento jurídico devem manter entre si um vínculo de essencial coerência, pelo que “A concepção sistêmica do ordenamento jurídico impõe que se reconheça, desse modo, uma situação de coexistência harmoniosa entre as prescrições normativas que integram a estrutura em que ele se acha formalmente positivado”.
Sendo assim, padeceria de maior fomento jurídico eventual objeção formulada no sentido de que a norma inscrita no art. 33, da LC 87/96, revelar-se-ia insubsistente em face da prescrição contida no seu art. 20 ou no art. 155, § 2.º, I, da CF, pois foi o próprio legislador complementar, a quem Constituição confiou a disciplina do regime do regime de compensação do imposto, em preceito qualificado pela nota da especialidade, que dispensou às operações com energia elétrica específico tratamento tributário, inteiramente compatível, de resto, com o art. 155, § 2º, I, da CF.
Em hipóteses análogas, atinentes ao ICMS, o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência formada no sentido de que não há direito constitucional assegurado ao creditamento de valores relativos à aquisição de energia elétrica, bens ou mercadorias de uso e consumo ou aqueles destinados à integração ao ativo fixo, mesmo que intermediários, que não se integrem diretamente à mercadoria circulada ou ao serviço prestado.
Nesse contexto, acha-se afastada a possibilidade de creditamento do imposto se e quando a energia elétrica é adquirida para consumo no estabelecimento.
Por outro lado, a equiparação dos serviços de telecomunicações a uma indústria de base, procedida com propósitos diversos, estranhos ao campo da tributação, outro propósito não teve senão o de, a partir do reconhecimento do caráter de essencialidade do setor para o desenvolvimento econômico do país, assegurar a seus agentes o acesso às linhas de financiamento do BNDE, principal instrumento de execução da política de investimento do Governo Federal - então restrito à indústria de base.
Diz, com efeito, o Decreto Federal n° 640/62:
“Art. 1º. Os serviços de telecomunicações, para todos os efeitos legais, são considerados indústria básica, de interesse para o fomento da economia do país e de relevante significado para a segurança nacional.
§ 1º. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico fica autorizado a incluir entre suas operações prioritárias as que visam ao desenvolvimento e reaparelhamento dessa indústria”.
No caso, mostrava-se até mesmo razoável a equiparação do importante segmento da economia (telecomunicações) a indústria de base, a revelar uma similitude essencial entre seus objetivos e a finalidade perseguida, mas apenas para os efeitos declinados no ato que procedeu à equiparação.
Tanto é assim que a principal motivação para sua edição foi a crise pela qual atravessava o setor das telecomunicações, que “estava afetando a boa marcha dos negócios públicos, a segurança nacional e a normalidade do desenvolvimento econômico do país”, quadro esse que estaria reclamando pela alocação de expressivos recursos financeiros para recuperação e manutenção da atividade considerada vital para o desenvolvimento do país.
Essa equiparação da telecomunicação à indústria de base não tem, portanto, o alcance hoje pretendido pelas concessionárias do serviço, mesmo porque, como a prestação do serviço nada transforma e nada produz, a partir da manipulação da matéria-prima, a prestação do serviço de telefonia não pode ser equiparada a uma indústria, para efeitos tributários, uma vez que a industrialização, que constitui seu objeto, pressupõe uma operação que modifique a natureza ou a finalidade do bem a ela submetido.
A seu turno, o conceito de produto industrializado, a que não se afeiçoa o resultado da prestação de serviço de telefonia, acha-se formulado no parágrafo único do art. 46 do Código Tributário Nacional, consoante o qual, “Para os efeitos deste imposto, considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo."
Por conseguinte, sendo a industrialização uma atividade ou conjunto de atividades de que resulta a produção de um bem, diversamente do que ocorre com a prestação de um serviço, parece que óbvio que a assimilação entre a atividade industrial e a prestação de serviços de comunicação, para fins de apropriação do crédito da energia elétrica, constituiria uma mera ficção, que parte, justamente, da diferença entre elas, para assimilá-las, no interesse exclusivo da redução do desembolso com o pagamento do ICMS devido pela prestação do serviços de comunicação.
Diante disso, é fácil perceber que a energia elétrica adquirida pela empresa de telefonia, sendo apenas consumida, não constitui insumo de processo industrial, pois nada transforma, não tendo, ademais, sua natureza ou a finalidade modificada, uma vez que, sendo mera prestadora de serviços, não laborando sobre a matéria prima, não transforma um produto em outro e nem o aperfeiçoa para o consumo.
Por conseguinte, o emprego da energia elétrica no estabelecimento prestador de serviços de telecomunicações é diverso daquele que a ela se reserva no processo industrial, como exigido pelo art. 33, II,”b”, da LC 87/96. Ademais, para efeito da compensação a que se refere o art. 19, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado o recebimento de serviços de comunicação (Art. 20), e não de mercadorias.
Ademais, sendo vedada a apropriação do crédito pelas entradas de mercadorias ou utilização de serviços resultantes de operações ou prestações que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento (§ 1º), conclui-se que, sendo a energia elétrica consumida no estabelecimento alheia ao objeto social da prestadora de serviços de comunicação, a pretensão formulada encontra na lei complementar óbice intransponível.
Por outro lado, equiparar, ensina Tércio Sampaio Ferraz Jr, significa por em relação de igualdade o que é parelho, semelhante, ocorrendo, então, por efeito do emprego da analogia, a subsunção de um fato para o qual não há norma à facti species de outra, no pressuposto de que entre ambos os supostos fáticos exista uma semelhança, isto é, que sejam essencialmente iguais nos aspectos importantes e diferentes apenas nos secundários. Assim, a equiparação tem por fundamento uma similitude essencial entre os elementos a equiparar, conclui.
Portanto, a equiparação não procede a uma igualação artificial entre dados essencialmente desiguais, como pretendido, mas afirma a existência de uma igualdade por semelhança, à qual se subsumem situações, apesar da existência de dessemelhanças secundárias. O ponto de partida é, pois, uma semelhança e não uma diferença essencial (esta, própria da ficção), como o que pretendido pelo setor de telecomunicação.
O uso da analogia no direito, sabe-se, funda-se no princípio geral de que, para os mesmos casos, deve haver a mesma razão dispositiva. Segue daí que possíveis semelhanças devem ser apontadas tendo em vista razões e efeitos jurídicos e não meras semelhanças artificais, ditadas por critérios quaisquer de conveniência. Somente quando são essencialmente iguais os supostos fáticos em que repousam, mostra-se, então, adequada a aplicação isonômica do Direito, a recomendar, portanto, que, para "casos iguais", "soluções iguais" (RE 433.896, Min. Cármen Lúcia).
No campo tributário, descabe, portanto, equiparar um estabelecimento prestador de serviços a um estabelecimento industrial, mesmo porque o industrial é aquele que realiza uma industrialização, ao cabo de cujo processo tem-se o correspondente produto.
Enquanto industrializar significa praticar operação da qual resulte alteração de natureza, funcionamento, utilização, acabamento ou apresentação de um produto, para que ocorra a prestação do serviço de telecomunicação, conjugam-se apenas os elementos emissor, mensagem a ser transmitida, receptor e prestador do serviço de comunicação.
Portanto, para que houvesse uma equiparação válida do estabelecimento prestador de serviço de comunicação ao estabelecimento industrial mister que entre eles existisse alguma semelhança essencial, pois, sendo industrial o que pratica industrialização de produto, o cerne da analogia está na alteração nele introduzida, o que não ocorre na prestação de serviços de telecomunicação.
Além do mais, se a industrialização é atividade que traz a nota da mudança, é também verdade que se muda algo em vista de um fim: do minério faz-se o aço. É, pois, atividade dominada pela relação meio/fim. Tem, assim, um fim previsível: o produto, algo que se destaca do produtor e passa a ter permanência própria no mundo. Em suma, não há industrialização se não houver alteração de que resulte algo que sai e toma vida própria, assegura Tércio Sampaio Ferraz Jr.
Em suma, a admitir-se a assimilação pretendida, como se autorizada para efeitos fiscais, estaria ocorrendo um tratamento igual com base em dessemelhanças essenciais.
Ademais disso, o prestador de serviços de comunicação não guarda qualquer semelhança com o industrial. Nem, obviamente, pela atividade por cada qual exercida, pois industrializar implica alterar a matéria e prestação de serviços de telecomunicação importa em colocar à disposição dos interlocutores os meios necessários para que se realize entre eles a comunicação. Se ambos fossem assimilados, estaria havendo, então, o uso de uma ficção e não equiparação.
De resto, é a própria Lei Geral de Telecomunicações que classifica a atividade da recorrida como prestação de serviços, e não industrialização, pelo que comporta aplicação o que dispõem os art.s 109 e 110, do CTN. Assim, inexistindo processo industrial na hipótese, mostra-se inviável o creditamento de ICMS relativo à aquisição de energia elétrica, uma vez que não atendida a condição posta pelo art. 33, II, "b", da LC 87/1996.
Diante disso, não seria mesmo lícito ao aplicador da lei proceder à imposição de seus próprios critérios, ampliando as hipóteses de apropriação do crédito do imposto, na hipótese exaustivamente enumeradas pelo legislador, pois, “se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional”, não se permitindo ao intérprete e ao aplicador da lei inserir na regra de direito o próprio juízo sobre a finalidade que “conviria” fosse por ela perseguida”, uma vez que, segundo se afirma, é tão ilegítimo se retirar algo que está escrito na lei quanto é adicionar algo que lá não se encontra e que desejaríamos que lá estivesse.
Resta aguardar pelo resultado do julgamento, que já se desenha favorável à tese sustentada no recurso.