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A possibilidade (ou não) de processo envolvendo crime de homicídio ser iniciado e ter prosseguimento sem cadáver

19/03/2012 às 14:32
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No (suposto) crime de homicídio praticado na (suposta) vítima Eliza Samudio, que teria (supostamente) o envolvimento do ex-goleiro do Flamengo, Bruno, existe ou não a possibilidade de processo e julgamento sem a existência de um cadáver?

Um caso que tem gerado enormes debates na imprensa ‘leiga’ (aquela não voltada especificamente para assuntos jurídicos) diz respeito ao processo envolvendo o (suposto) crime de homicídio praticado na (suposta) vítima Eliza Samudio, que teria (supostamente) o envolvimento, dentre outros, do conhecido jogador de futebol, o ex-goleiro do Flamengo, Bruno.

O objetivo do presente texto é analisar a possibilidade (ou não) de um crime de homicídio ser processado e julgado sem a existência de um cadáver, evidentemente que analisando apenas e tão somente o que consta da Lei, sem qualquer vinculação a este (ou qualquer outro) caso concreto.

O Código de Processo Penal, de maneira impositiva, é claro ao dispor no artigo 158:

“Art. 158 – Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.

O crime de homicídio é um exemplo claro de aplicação deste dispositivo, haja vista que, regra geral, deixa, por exemplo, sangue e cadáver visíveis, aptos à produção da referida prova.

No caso, estamos diante de uma hipótese de prova taxada outarifada, ou seja, aquela em que a decisão do magistrado deverá necessariamente estar ligada ao valor imposto pela Lei, sob pena, via de regra, de nulidade absoluta:

“Art. 564 - A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:

(...).

III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:

(...).

b) o exame do corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, ressalvado o disposto no Art. 167”;

A consequência é evidente: a Lei, determina, estabelece, impõe, não dá margem a qualquer dúvida ou interpretação: ocorrerá a nulidade da persecução criminal na falta desta.

Ocorre que o próprio Código de Processo Penal, nos casos de crimes que deixam vestígios, expressamente, estabelece que quando estes últimos desaparecerem, o exame de corpo de delito pode ser suprido, apenas e tão somente por um único meio de prova, qual seja,a testemunhal (CPP, arts. 167):

“Art. 167 - Não sendo possível o exame de corpo de delito, porhaver em desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”.

Em outras palavras, não sendo possível a realização do corpo de delito por haverem desaparecido – e não por não terem sido realizados em prazo adequado – a prova testemunhal poderá, então, suprir tal hipótese.

O que muitas vezes se verifica na vida prática, é que sob oerrôneo, equivocado e frágil argumento da mera existência de testemunhas no caso concreto,aliadas muitas vezes a uma confissão inquisitorial do acusado (não ratificada em juízo, pois muitas vezes existem indícios sérios de tortura na fase policial),bastaria parao prosseguimento da ação penal e até mesmo eventual condenação, sob o fundamento de que o artigo 167 do Código de Processo Penal estaria atendido.

Em nosso entendimento, entretanto, nunca, jamais, em tempo e momento algum, tal linha de raciocínio pode prevalecer, uma vez que a real intenção do artigo 167 do Código de Processo Penaléopleno – e não um mero e formal – suprimento da regra geral (CPP, art. 158).

O que muitas vezes se verifica – em especial no meio policial – é a existência das chamadas ‘testemunhas de assinatura’, ou seja, aquelasnãopresenciaramofatocriminoso, que não raras vezes absolutamentenadasabemdainvestigação, e apenas estão presentes para ‘ratificar’ a assinatura do indiciado no ato da confissão inquisitorial.

É mais que evidente, entretanto, que tal situação não pode, sequer em tese, ser considerada válida para os fins doartigo167doCódigodeProcessoPenal.

É que além de não suprir a exigência legal, a situação ainda procura, de maneira muito nítida, burlar justamente o que o artigo 158 do mesmo Diploma busca afastar: que apenas a confissão sustente a persecução penal.

Em outras palavras, não basta que as testemunhas nada saibam de concreto sobre o fato e / ou façam referência apenas e tão somente à confissão, pois, neste caso,ocorrerá ilegal e lamentável desrespeito (indireto) a expresso mandamento legal (CPP, arts. 158, 167 e 564, III, ‘b’).

É absolutamente imperioso, para a correta interpretação da exceção legal, que as testemunhas tenham sido presenciaisaofato, merecendo destacar o respaldo doutrinário do eminente FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (“Código de Processo Penal Comentado”, 12ª ed., fl. 532/533, 547/549 ed. Saraiva, 2009):

“Corpo de delito. Exame: direito e indireto. (...).

Se duas ou três pessoasviram, no rio Amazonas, alguémdeceparacabeçadeoutrem, não há dúvida que ocorreu um homicídio. Mas, como proceder ao exame, se as águas levaram o corpo de delito? Nesse caso, relatando as testemunhas o que viram, estará feito o exame indireto. É preciso, contudo, que elas tenham visto os vestígios. Se por um acaso não se fizer o exame, direto ou indireto, anulidade é tão grande que fulmina todo o processo, nos termos do art. 564, III, ‘b’ do CPP. Se faltar o exame direto, lança-se mão do indireto, como salienta o art. 564, III, ‘b’ do CPP. Mas senão houver  nem um nem outro, a nulidade é absoluta. (...). Quis e quer dizer o legislador que a ausência do exame direto de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios carreta nulidade a menos que se proceda ao exame indireto... (...)”.

(...).

Exame de corpo de delito. (...) é necessariamente indispensável. E a tal ponto chega essa indispensabilidade que o art. 564, III, b, do CPP diz que haverá nulidade se não for feito, nesses crimes, o exame de corpo de delito, ou, na impossibilidade, quese observe,ao menos o disposto no art. 167. (...) odenominadoexameindiretodecorpodedelito, realizado por outros meios, notadamente pela prova testemunhal. Nesses casos, é preciso que a testemunha informe sobre o que efetivamente viu, para que se possa, assim, suprir o exame direto de corpo de delito. Não é o fato de dizer que viu a vítima  entrando neste ou naquele local, onde possivelmente estava ao acusado, não é o fato de afirmar ter sabido da própria vítima o queaconteceu, que constitui o exame indireto. A autoridade não está investigando se a vítima foi ou não neste ou naquele local, se disse ou não o que com ela aconteceu. Simplesmente vai indagar da testemunha se ela viu o corpo de delito, isto é, os vestígios materiais deixados pelo crime. (...), se viu a vítima ensangüentada ser jogada no mar, ou situações semelhantes (...)”.

O festejado magistrado paulista GUILHERME DE SOUZA NUCCI em seu autorizado magistério doutrinário (“Código de Processo Penal Comentado”, 8ª ed., pág. 364/365, 377/378, ed. RT, 2008) é no mesmo sentido:

“4. Diferença entre exame de corpo de delito e corpo de delito: (...).No artigo em comento exige-se, para a infração que deixa vestígios, a realização do exame de corpo de delito, direto ou indireto, isto é, a emissão de um laudo pericial atestando a materialidade do delito. Este laudo pode ser produzido de maneira direta – pela verificação pessoal do perito – ou de modo indireto – quando o profissional se serve de outros meios de provas. (...). O exame de corpo de delito é sempre produzido por peritos, de maneira direta ou indireta, como já abordado. O corpo de delito, no entanto, pode resultar de forma direta ou indireta. (...). Quando o cadáver se perde, contando-se com a mera narrativa de leigos que, de longe, viram o réu desferindo tiros na vítima, por exemplo, caindo o corpo no mar e perdendo-se, há a prova indireta da ocorrência da morte. É o corpo de delito indireto (...).

(...).

5. Confissão e corpo de delito: a lei é clara ao mencionar que a confissão do réu não pode suprir o exame de corpo de delito, direto ou indireto. A única fórmula legal válida para preencher sua falta é a colheita de depoimento de testemunhas, nos termos do art. 167 (...). Como já se mencionou, trata-se de um tema desenvolvido com especial cuidado pelo legislador, tendo em vista as inúmeras razões que podem conduzir uma pessoa a confessar falsa ou erroneamente, colocando em grave risco a segurança exigida pelo processo penal. Assim, se o cadáver, no caso do homicídio, desapareceu, ainda que o réu confesse ter matado a vítima, não havendo exame de corpo de delito, nem tampouco prova testemunhal, não se pode punir o autor. A confissão isolada não presta para comprovar a existência das infrações que deixam vestígios materiais.

(...).

39. Alternativa do exame do corpo de delito: (...) podeser que os vestígios tenham desaparecido (...). Nessassituações, (...) quando o cadáver é perdido por qualquer causa (...), inexistindo possibilidade dos peritos terem acesso, ainda que indireto ao objeto a ser analisado, podesupriroexame de corpo de delito portestemunhas. Pessoas podem narrar ao juiz que viram, v.g., o momento em que o agente desferiu tiros na  vítima e esta caiu em um despenhadeiro, desaparecendo nas águas do oceano. Baseado nisso, forma-se a materialidade do homicídio, permitindo-se, então, a punição do réu. (...) O que não mais se admite é a concretização da prova da existência do delito unicamente pela confissão - que, no passado, muitos transtornos já causou, como está registrado pelo célebre caso dos irmãos Naves (...) – ou por meros indícios, sempre frágeis e inconsistentes para esse tipo de prova (...).

(...).

39-B. Cautelas na formação do corpo de delito indireto: a autoridade policial, ao receber a notitia criminis, não mais sendo possível a realização do exame de corpo de delito, em face do desaparecimento dos vestígios, ‘deverá, então, certificar-se da existência de testemunhas do fato investigado, isto é, de pessoas que o tenham presenciado (...)’ (Rogério Lauria Tucci, Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro)”.

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Evidente, portanto, que não bastaumameraexistência ‘formal’detestemunhas para os fins do artigo 167 do Código de Processo Penal, sendo absolutamente imperioso, para os fins legais, que ocorra o concreto suprimento, ou seja: impõe-se que a prova testemunhal seja presencial aos fatos.

Apesar de não ser objeto central deste texto, entendemos adequado apresentar algumas breves linhas sobre o(s) meio(s) mais adequado(s) para buscar o reconhecimento do referido constrangimento ilegal acima mencionado.

Na hipótese de Defensoratuando desde a fase de inquérito policial, nada impede que seja requerido o trancamento do procedimento administrativo por meio de habeas corpus junto ao magistrado competente, pois se é certo que cabe ao Estado investigar / denunciar crimes, não menos certo que deve existir o respeito ao mandamento legal desde o início.

No caso de existir denúncia oferecida, o mais correto(e célere, evitando desnecessário trabalho) será o Magistrado sequer oportunizar vista à Defesa, rejeitando desde logo a inicial acusatória, tendo em vista ‘faltar justa causa para o exercício da ação penal’ (CPP, art. 395, III).

Se por um absurdo – mas é o que infelizmente ocorre na prática – o Magistrado receber a denúncia e determinar a citação do Indiciado, perfeitamente possívela impetração de habeas corpus perante o Tribunal competente para sanar tal lamentávelilegalidade.

Se por mais absurdo ainda ocorrer prolação de decisão de pronúncia, caberá à Defesa, conforme o caso, a impetração de habeas corpus ou o recurso em sentido estrito.

Neste ponto, e caminhando para o final deste texto, destacamos ser plenamente possível a utilização do writconstitucional citado para o reconhecimento do constrangimento ilegal, desde que não se faça o reexame de fatos, mas sim a revaloração da conclusão, o que é perfeitamente possível e aceito pela jurisprudência (STF, HC 91.585, rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 98.197, rel. Min. EROS GRAU – RHC 92.430, rel. Min. MARCO AURÉLIO).

Sendo assim, se é certo, que é possível um processo criminal relativo a homicídio ter prosseguimento sem um cadáver encontrado, podendo a materialidade ser suprida pela prova testemunhal, não menos certo que esta última deve existir de maneira apta e concreta, ou seja, ser presencial ao fato, sob pena sob pena de desrespeito a expresso mandamento legal (CPP, arts. 158, 167 e 564, III, ‘b’), e, consequentemente, faltar justa causa para a persecução penal (CPP, art. 648, I), sanável por meio de habeas corpus.

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Sobre o autor
João Carlos Pereira Filho

Advogado criminal em Santos (SP). Especializado em Direito Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA FILHO, João Carlos. A possibilidade (ou não) de processo envolvendo crime de homicídio ser iniciado e ter prosseguimento sem cadáver. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3183, 19 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21320. Acesso em: 21 nov. 2024.

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