RESUMO
Este artigo tem o escopo de analisar algumas possíveis consequências que poderão advir do disposto no artigo 314 do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil (PLS 166/2010), ante alguns princípios informadores do processo, uma vez que possibilita alterações na demanda – causa de pedir e pedido – até a prolação da sentença.
Palavras-chave: anteprojeto; novo código de processo civil; alterações; pedido; causa de pedir.
ABSTRACT
This paper has scope to consider some possible consequences that may result from the provisions of article 314 of the Proposal of New Code of Civil Procedure (PLS 166/2010), compared to some informants principles of the process, because it allows changes in demand - a cause of action and request - until the delivery of the sentence.
Keywords: project; new code of civil procedure; changes; request; cause of action.
INTRODUÇÃO
O anteprojeto do novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei no Senado nº 166/2010) está consubstanciado na celeridade processual e na simplificação dos procedimentos processuais, visando maior efetividade da Justiça, conforme se extrai da sua exposição de motivos[1].
É inegável que a morosidade da justiça gera a sensação de ineficácia do direito, e ainda, insegurança jurídica, denegrindo a imagem do Poder Judiciário.
A Emenda Constitucional nº 45[2] incluiu no art. 5º da Constituição Federal de 1988, rol dos direitos e garantias fundamentais, o inciso LXXVIII que, acertadamente, garante a duração razoável do processo, bem como, os meios necessários para uma tramitação célere.
Com esse escopo, é que se elaborou um novo Código de Processo Civil.
Todavia, há necessidade de se analisar alguns dispositivos novos deste projeto que poderão trazer resultados desastrosos ao intuito pelo qual foi elaborado, além de colocar em risco princípios informativos do processo, como a segurança jurídica e a celeridade processual, comprometendo a efetiva tutela dos direitos materiais.
Dessa forma, analisar-se-á o artigo 314, caput, e seu parágrafo único, do anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, em contraponto aos artigos 294 e 264 do atual Código de Processo Civil.
1 NOVOS CONCEITOS DE JURISDIÇÃO, DO DIREITO DE AÇÃO, DO PROCEDIMENTO E DO PROCESSO
Com o advento do Neoconstitucionalismo, os conceitos de jurisdição, processo, procedimento e do direito de ação ganham novos enfoques à luz da Constituição, dos direitos fundamentais, da legitimação e do fim pelo qual existem, de modo que não podem ser dissociados da realidade social (MARINONI, 2011).
Hodiernamente, o direito de ação não está adstrito somente ao requerimento da tutela jurisdicional do Estado, como um ato isolado, mas é um direito exercido e desenvolvido com o escopo de se obter um julgamento de mérito, e mais, que na sentença estejam expressos os meios adequados para garantir a tutela efetiva do direito ou os meios executivos aptos à sua implementação. Em suma, é o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (MARINONI, 2011, p. 222).
Para a compreensão dos atuais conceitos de processo e de procedimento, mister se faz a compreensão de que a jurisdição, no Estado contemporâneo, deve garantir proteção a todas as espécies de direitos, não mais tendo o juiz o mero papel de subsunção da norma ao fato, mas de apreciar o caso concreto a partir dos direitos fundamentais (MARINONI, 2011, p. 412).
Nesse diapasão, o procedimento (como técnica processual) deve ser estruturado de maneira a permitir a realização da tutela prometida pelo direito material, para tanto, deve o juiz adequar a técnica processual ao caso concreto. Assim, o procedimento tem finalidade e conteúdo, e não pode ser dissociado do conceito de processo, visto que este é instrumento ao exercício do poder jurisdicional, conferindo-lhe legitimidade (MARINONI, 2011, p. 414).
Diante disso, deixa o processo de ser apenas um instrumento de atuação da lei, uma vez que a própria jurisdição não é mais a aplicação da lei ao caso concreto, mas sim, passa a ser um instrumento para a efetiva proteção dos direitos, pela atuação do juiz na interpretação do caso concreto à luz dos direitos fundamentais (MARINONI, 2011, p. 415).
Da mesma maneira, o procedimento não pode estar dissociado dos fins da jurisdição, bem como, do processo. Também estes não podem ser vistos afastados do direito material. Neste sentido, o processo é o próprio procedimento, como meio idôneo a garantir efetiva tutela ao direito material prometido e à proteção ao caso concreto (MARINONI, 2011, p. 428-429).
Portanto, o direito de ação, o processo e o procedimento estão interligados ao fim pelo qual existem, que é garantir a efetiva tutela jurisdicional, para que estejam aptos a legitimar o exercício do poder estatal, mediante a sua adequação aos preceitos constitucionais, e aqueles decorrentes dos direitos fundamentais.
É justamente esse fim que deve ser garantido às partes contemplá-lo, sob pena de se ferir um direito fundamental inerente a natureza do processo, através da sua razoável duração, celeridade, segurança jurídica e estabilidade das relações jurídicas processuais.
2 ALTERAÇÕES NA DEMANDA NO ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O Código de Processo Civil vigente possibilita a modificação do pedido até a citação do réu, ou, até o saneamento do processo com o consentimento do réu.
Assim está previsto nos artigos 264 e Parágrafo único e art. 294 do Código de Processo Civil[3]:
“Art. 264. Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei.
Parágrafo único. A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo.
Art. 294. Antes da citação, o autor poderá aditar o pedido, correndo à sua conta as custas acrescidas em razão dessa iniciativa.”
Dessa forma, há certa rigidez no procedimento brasileiro ante a escassa possibilidade de alteração na demanda frente à mutatio libelli (RANGEL, 2002, p. 882).
Apesar disso, essa previsão parece estar de acordo com os preceitos do Processo Civil moderno, vez que até a citação não há relação jurídica processual, sendo, então, possível modificar o pedido, e, se a parte contrária estiver de acordo, a possibilidade de alterar o pedido antes do término do saneamento do processo, o que gera estabilidade na relação processual.
3 ALTERAÇÕES NA DEMANDA NO ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O art. 314 do anteprojeto do novo Código de Processo Civil possibilita ao autor, assim como ao réu no pedido contraposto, alterar o pedido e a sua fundamentação, até a prolação da sentença, desde que de boa-fé, garantido o contraditório e possibilitada a produção de prova suplementar.
Estabelece o referido artigo:
“Art. 314. O autor poderá, enquanto não proferida a sentença, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, desde que o faça de boa-fé e que não importe em prejuízo ao réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de quinze dias, facultada a produção de prova suplementar.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto neste artigo ao pedido contraposto e à respectiva causa de pedir.”
Evidente a intenção do legislador em prezar pela instrumentalidade e economia processuais (ALVIM, 2011), uma vez que a parte não precisará ingressar com nova ação judicial ao alterar o pedido ou a causa de pedir, que, juntamente com as partes, são elementos da ação, ou seja, modificando-os, tem-se uma nova ação.
Porém, a instrumentalidade e a economia processuais precisam estar adequadas, razoáveis e proporcionais, com o fim que integra o conceito de processo, qual seja, a efetiva tutela dos direitos materiais, neste sentido, a sua utilização não pode ultrapassar a linha limítrofe, frente aos demais pilares e princípios processuais e constitucionais, numa análise sistemática, que venha a comprometer a referida efetividade.
Em sentido favorável, Cândido Rangel Dinamarco (2002, p. 882) expõe que se não houver violação ao contraditório, oportunizada a defesa da parte contrária, não existem motivos para a rigidez da demanda, prejuízos maiores ocorrem ao se propor uma nova ação.
Já para Vicente Greco Filho (2007, p. 62), a estabilização do processo, quando completa a relação processual pela citação, tem como fundamento o interesse público da boa administração da justiça, pois, do contrário, haveria instabilidade na prestação jurisdicional e, consequentemente, nas relações jurídicas processuais. Sendo o pedido incoerente com o fato, a parte arcará com os resultados e encargos da perda da demanda.
Dessa maneira, haverá uma diligência muito maior das partes no momento de ingressar em juízo, no sentido de que deverão buscar todas as provas necessárias que balizam seus pedidos, diminuindo assim, o tempo da instrução processual, bem como, evitando-se o desperdício da mobilização da máquina judiciária para fatos irresponsavelmente alegados.
Apesar da propositura de uma nova ação ser, em termos, inviável, é justamente esse ponto que leva a parte autora a ingressar em juízo com um arcabouço probatório sólido, pois, de outro modo, correr-se-ia o risco da demanda não ter fim, contrariando outros princípios em que se fundamenta o processo, assim como, aumentar-se-ia o número de ações judiciais “desnecessárias” ou “impensadas”, abarrotando ainda mais a máquina judiciária, num país onde 1/5 da população já contende no Judiciário (OLIVEIRA, 2008).
Ainda que existam fatos diversos, já conhecidos no processo, que embasem outro pedido, tem que existir um momento para que alguma alteração seja possível, e esse momento, deve ser, no máximo, até o saneamento do processo, possibilitando, inclusive, ao juiz, diante dessa situação, oportunizar as partes tal medida.
Esse limite processual temporal deve existir, senão o autor da ação, verificando que sua instrução não foi satisfatória, alteraria o pedido de acordo com as provas produzidas, sem limites para isso, invertendo-se a lógica processual, em razão de que a causa de pedir deve fundamentar o pedido, do fato decorre o direito, e não vice-versa, consoante ensina DINAMARCO:
“Na lógica e dinâmica da dialética processual, o afirmar antecede ao provar e, por conseqüência, o ônus da prova é algo que vem logicamente depois do ônus da afirmação [...] E ‘como quem pede há de justificar o petitum alinhando uma causa petendi, só demanda adequadamente quem fundamenta de modo adequado´. Daí a inépcia de uma petição inicial à qual falta, entre outros elementos essenciais, a causa de pedir deduzida de modo claro e com inteireza em relação aos fatos relevantes para a constituição do direito que alega.” (2002, p. 929)
Logo, se não há “inteireza em relação aos fatos relevantes para a constituição do direito que alega”, significa, em regra, que a parte não detém o direito material pretendido, caso contrário, abrem-se precedentes para vantagens indevidas, pois a parte poderá alterar a causa de pedir ao verificar que não obterá êxito na demanda, na tentativa de “forçar” um direito que não tem e, por consequência, fere direito daquele que o tem.
Para GRECO FILHO (2010, p. 118), a causa petendi é o fato do qual surge e deriva o direito pretendido pelo autor, que, inclusive, justifica o interesse processual.
Ademais, o réu (ou autor em pedido contraposto) não tem como se defender de um fato que não tem conhecimento, por isso, toda defesa e estratégia processual é baseada na causa de pedir e no pedido, então, se estes últimos são modificados, o processo retorna ao passo inicial.
Por exemplo, as testemunhas são arroladas de acordo com o fato apresentado, para contestá-lo. Se o fato é modificado, novas testemunhas deverão ser arroladas, com nova audiência designada para oitiva, novas provas produzidas e, assim, mais uma vez a celeridade resta somente no papel.
Além disso, confere guarida àquelas partes que têm interesse em protelar a ação, ou ainda, aos advogados relapsos que não preparam devidamente as defesas de seu cliente ou não conseguem instruir suficientemente o processo, e, dando-se conta disso, continuam alterando causas de pedir, pedidos, e por ato contínuo, juntando novos documentos, estendendo-se o litígio indefinidamente.
Na redação do art. 314 há previsão de que referida alteração deve ser realizada de boa-fé. Mas, não se pode tapar os olhos para a realidade, muitos profissionais agem de má-fé, alguns ainda se propõe a pagar o baixo preço que esse ato traz como consequência, até porque em muitos casos não existe sequer punição, e mais, a boa-fé demanda uma apreciação subjetiva do juiz (ALMEIDA SOARES, 2010), o que dificulta afim de valorar sua relevância, pertinência, honestidade, lealdade, etc.
Ainda, a parte deixa de ter compromisso sério com o ônus de provar o fato que alega. E nos casos de demandas sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, quando o ônus da prova é invertido, e o autor modifica os fatos, a causa de pedir e os pedidos antes da sentença, como ficarão?
O contraditório e a ampla defesa devem ser garantidos, e, lógico, o réu usufruirá da permissão do art. 314 – “facultada a produção de prova suplementar” – para se defender, causando morosidade, e inclusive, impedindo a condenação da parte autora por litigância de má-fé, pois, ao ver que não detinha direito sobre o fato alegado (o que hoje é comum no judiciário, pessoas que propõem ações visando locupletamento), muda o pedido, uma vez que lhe será permitido.
E a situação do réu que, ao figurar numa ação judicial tem sua moral abalada em sua comunidade, o que é comum em cidades interioranas e, diante da inexistência do direito o autor modifica a causa de pedir e o pedido antes da sentença, aquele não terá direito de exigir uma sentença de mérito a seu favor sobre aquela causa de pedir e pedido formulados indevidamente, a fim de ter restaurada e reparada sua moral?
Vislumbra-se que nesse caso a modificação traria prejuízos ao réu, sendo, portanto, indeferida. Todavia, tal apreciação ficaria ao cunho subjetivo da apreciação do juiz, que, entendendo em sentido diverso, abriria margem para recursos e mais dilações no andamento do processo, o que poderia ser evitado com a devida diligência na propositura da ação.
Também está o juiz adstrito, em regra, ao pedido formulado na ação para sentenciar[4], sob pena de julgar “extra”, “ultra” ou “citra petita”, bem como, no decorrer da instrução processual procurará as provas e realizará a apreciação delas de acordo com aquilo que foi proposto.
Existem no ordenamento vigente mecanismos necessários para garantir a efetiva tutela do direito material, como, por exemplo, a previsão do art. 461 do atual Código de Processo Civil que confere a possibilidade do juiz determinar providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento, nas obrigações de fazer e não fazer, sem que precise sequer a parte requerer[5].
Destarte, em uma primeira análise superficial, entende-se que essa alteração em questão, do art. 314 do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, não atende aos princípios pelos quais está fundado o Processo Civil moderno, nem a finalidade para a qual existe, numa visão sistematizada, gerando insegurança jurídica, instabilidade nas relações processuais, morosidade, aumento das ações judiciais e favorecendo a incompetência técnica.
CONCLUSÃO
Verifica-se que o disposto em seu art. 314 possui grandes probabilidades de causar confusão no processo judicial, influindo para a morosidade da ação e comprometendo a própria noção contemporânea de jurisdição, processo, procedimento e direito de ação.
Atinando-se para o intuito pelo qual foi confeccionado o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, qual seja, a celeridade processual e a simplificação do processo judicial, tem-se que o artigo alhures mencionado vem abalroar-se com esses pilares.
Por fim, não se pode ter a ilusão de que a alteração legislativa irá solucionar os problemas do Processo Civil brasileiro, pois, existem mecanismos suficientes para que o direito material seja efetivamente tutelado, basta que, a maneira de se pensar o processo mude, em face da constitucionalização e o compromisso com a realidade social, e, para isso, é preciso boa vontade dos operadores do direito e infraestrutura no Órgão Judiciário, do contrário, um novo código de processo civil virá, e o velho processo judicial continuará.
REFERÊNCIAS
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, v. II.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 2.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1.
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v.1.
ALVIM, Escritório Arruda. Notas Sobre o Projeto de Novo Código de Processo Civil. São Paulo, 2011. <http://www.arrudaalvim.com.br/Site/visualizar-artigo.php?artigo=2&data=14/03/2011&titulo=notas-sobre-o-projeto-de-novo-codigo-de-processo-civil> Acesso em: 25 de junho de 2011.
ALMEIDA SOARES, Ary Jorge. Algumas Questões Polêmicas do Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro, 2011. <http://www.cnc.org.br/sites/default/files/arquivos/dj4nov2010.pdf> Acesso em: 25 de junho de 2011.
OLIVEIRA, Alexandre Vidigal de. Efetividade da Justiça Através do Processo. Curitiba, 2008. <http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=57> Acesso em: 25 de junho de 2011.
Notas
[1] BRASIL. Congresso. Senado. Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Brasília, 2010. < http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf> Acesso em: 28 de junho de 2011.
[2] BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004.
[3] Brasil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil.
[4] “Art. 460. É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.”
[5] Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.