Se o processo penal é o meio pelo qual o Estado-juiz pode exercer o jus puniendi e ao mesmo tempo é o limite desse poder, uma vez que garante ao acusado a proteção de sua dignidade humana, outorgando a ele, por exemplo, o direito à inocência e à ampla defesa, parece paradoxal que se pretenda atualmente talhar um processo penal antidemocrático, voltado à supressão das garantias do acusado a fim de dar uma resposta expedita à sociedade, “cansada da violência” que a assola todos os dias.
Ora, por qual razão se quer dar ao processo penal uma roupagem autoritária e inquisitória? Mesmo depois da Constituição Federal de 1988, tem-se visto nos fóruns criminais e Tribunais do país a construção de um “processo penal” que foge da essência do que verdadeiramente deveria ser. Haveria que se falar em “processo penal”, se o direito à defesa ou à liberdade do acusado é restringido de tal forma que sobre o veredito já se sabe desde o momento em que é apresentada a denúncia?
A razão dessa tendência é a tentativa desavergonhada de se garantir, através do “processo penal”, o atingimento de objetivos afetos à segurança pública, como o combate à criminalidade, a execração do “criminoso” e a paz social. Ocorre que o verdadeiro processo penal, aquele moldado pela Constituição de 1988, não pode se prestar a esse papel, sob pena de demolir as garantias do acusado e de, por conseguinte, esvaziar a essência do próprio processo penal. Então, o que os juízes criminais têm aplicado muitas vezes é outra coisa que não o processo penal; e essa outra coisa podemos chamá-lo de “processo penal do inimigo” (ver LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional – volume I, Rio de Janeiro: Lumen Juris).
O processo penal do inimigo está baseado na ideia de que mais vale a força do que o direito para neutralizar os “criminosos”. Para isso, permite-se até mesmo a punição antecipada, indo contra inclusive a própria função do processo penal. Pune-se antes mesmo da sentença, para dar, dessa maneira, uma resposta espetacular à sociedade que “não suporta mais a escalada de crimes”.
Na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941, ainda hoje em vigor, apesar das inúmeras reformas ocorridas principalmente na última década, está impressa a ideologia que subjaz no processo penal do inimigo: “Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o a tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal-avisado favorecimento legal aos criminosos”.
De fato, para essa visão fascista do processo penal, os pseudodireitos dos acusados são destinados tão-somente a garantir a impunidade dos “criminosos”. Por essa razão, transforma-se o acusado em verdadeiro inimigo da sociedade, que precisa ser neutralizado a qualquer custo, mesmo que esse custo seja a negação da Constituição.
É claro que o processo penal do inimigo conta com um aliado de peso: os meios de comunicação. A espetacularização da violência e o discurso da “lei e da ordem” têm servido como balizas para a vazão do autoritarismo dos juízes nas causas criminais. Os jornais frequentemente criam o monstro, que será julgado pelo que ele é (ou melhor, pelo que querem fazer crer que ele seja), e não pelo fato que cometeu. Dessa forma, a produção dessa imagem deletéria do acusado tem servido muito bem para sustentar prisões preventivas arbitrárias e decisões judiciais evasivas da intimidade do acusado.
Ao destruir a imagem do acusado, tenciona-se que ele seja julgado pelo que ele aparenta ser e não pelo que eventualmente cometeu, o que configura expressão máxima do “Direito Penal do Inimigo”, de viés antidemocrático e antigarantista e que vai de encontro aos princípios estatuídos na Constituição Federal de 1988.
De maneira insidiosa, os discursos midiatizados da “defesa social” contaminam os órgãos investigadores e acusadores e turvam a imparcialidade do julgador, para quem muitas vezes o acusado é visto como bandoleiro impiedoso, imagem que serve, espertamente, para justificar a relativização e supressão de suas garantias processuais, invertendo-se, por exemplo, o ônus da prova para impor a ele o dever de demonstrar que não é quem a mídia e a polícia querem que ele seja. Claro que, submetendo propositadamente o acusado a uma imagem deletéria, o trabalho dos órgãos acusadores fica muito mais fácil, pois caberá ao acusado a árdua tarefa de restaurar sua dignidade para voltar a ser visto como sujeito de direitos perante os demais atores processuais.
Para o processo penal democrático, o papel do juiz é o de julgar, de modo imparcial, respeitando as garantias do acusado, como a presunção de inocência. No processo penal do inimigo, cabe ao juiz o papel de xerife, isto é, o de garantir a segurança pública, combater o crime e aplacar o clamor social. Para atingir esse fim, todos meios são justificáveis, até mesmo negar a condição de sujeito de direitos ao acusado.
Para o processo penal de base constitucional, as prisões cautelares apenas podem ser decretadas ou mantidas em caso extremo, ultima ratio, quando presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, devidamente comprovados nos autos através de elementos concretos. No processo penal do inimigo, a prisão provisória é a regra e é decretada com finalidades extraprocessuais, como para resgatar a credibilidade do Poder Judiciário, para satisfazer a opinião pública, para impedir que o acusado volte a praticar crimes (sem comprovação de que ele irá fazê-lo), ou por conta da gravidade abstrata do delito.
No processo penal do inimigo, o juiz pode até mesmo determinar medidas cautelares sem a presença do fumus comissi delicti, como se vê no caso da prisão temporária e nas medidas cautelares da Lei Maria da Penha.
Os direitos à intimidade e à vida privada não existem para o processo penal do inimigo. Por essa razão, o juiz pode decretar e renovar ad aeternum a interceptação telefônica dos telefones do acusado, bem como autorizar a busca e apreensão genérica na residência ou no local de trabalho do investigado de “tudo que tiver relação com o crime em tese cometido”.
As provas apenas servem para afirmar a versão lançada pelos acusadores - públicos ou publicantes –, e o julgador jamais se importa em apurar o que realmente ocorreu, sendo elas prontamente rechaçadas se a este fim não servirem, mesmo que tenham gerado custos ao erário e correspondam à verdade dos fatos.
Não há que se falar em presunção de inocência e direito à ampla defesa no processo penal do inimigo. O juiz pode decretar genericamente a interceptação de todas as conversas nos parlatórios entre todos os acusados presos e seus defensores. O juiz pode negar o direito do acusado à liberdade provisória justificando, tout court, que esse direito foi suprimido por lei.
O juiz pode estabelecer seu próprio “devido processo legal”, não encarando a formalidade do rito como garantia do acusado, negando o direito à produção de provas pela defesa sem fundamentar sua decisão e pode condenar o acusado somente com base em meros indícios, ou na confissão isolada do réu, ou a partir da interpretação do silêncio do acusado (“não fez o bafômetro, logo devia”), ou com base em denúncia anônima, ou até mesmo em provas ilícitas.
Ademais, a morosidade do processo é sempre imputada à defesa. Se a defesa requer uma prova e ela tarda para ser produzida pelo incompetente aparato estatal, o excesso de prazo na formação da culpa deve ser imputado à defesa. Se a defesa nada fez para dar azo à demora, o excesso de prazo é justificável em virtude da “complexidade do fato”. E se a “causa” da morosidade é a existência de “inúmeros” recursos disponíveis ao réu, que se ponha fim a eles!
Pelo que se vê, o processo penal democrático e o processo penal do inimigo são duas coisas bem diferentes. O problema está na tentativa de se vender um pelo outro. Contra essa tendência de “relativização das garantias” (como se elas pudessem ser relativizadas) para a pretensa defesa da segurança pública, contrapõe-se a Constituição de 1988. No processo penal democrático, deve-se encarar o acusado como sujeito de direitos e possuidor de garantias que servem como barreira de contenção ao excesso de poder estatal e que asseguram o fair trial. De maneira muito simples, o processo penal de base constitucional está centrado no meta-princípio da dignidade da pessoa humana, o qual não admite mitigação, enquanto que o processo penal do inimigo é a negação desse mesmo valor constitucional.
Referências
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Terrorismo e direitos fundamentais. In VALENTE, Manuel Monteiro Guedes (org.). Criminalidade organizada e criminalidade de massa: interferências e ingerências mútuas. Coimbra: Almedina, 2009, p. 19-30.
FALCONE, Roberto A. Las garantias del imputado frente a la persecutión penal estatal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2007.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. 1, 3ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.