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Análise crítica da prisão preventiva: Uma nova lei que mantém o retrocesso

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3. Crítica a “ordem pública” e a “ordem econômica” como requisitos para a decretação da prisão preventiva

O processo penal pode ser conceituado como “um instrumento limitador do poder punitivo estatal, de modo que ele só pode ser exercido e legitimado a partir do estrito respeito as regras do devido processo legal.”[26] Nesse sentido “a forma processual é, ao mesmo tempo, limite de poder e garantia para o réu.”[27] Fato que demonstra sua inconstância, por não ter uma visão unitária.

Fruto do Projeto de Lei (PL) nº 4208, apresentado em 2001 pela Comissão de Juristas[28], presidida pela profª. Ada Pellegrini Grinover, há quem entenda que a Lei nº 12.403/2011 é um atraso em relação ao texto originário da PL supracitada, como afirma Lopes Junior:

[...] a Lei 12.403/2011 não evoluiu em nada. E mais, representou, inclusive, um retrocesso à luz do Projeto de Lei 4208/2001 originariamente apresentado (cuja redação era muito melhor e abandonava as categorias “ordem pública” e “ordem econômica”).[29]

Se por um lado a Lei nº 12.403 trouxe inúmeras modificações no tocante a prisão cautelar, flagrante e medidas cautelares, por outro manteve algumas disposições da legislação antiga, o que vem recebendo críticas por uma parte da doutrina.

Dentre estas críticas, a mais incisiva está na manutenção dos requisitos “ordem pública” e “ordem econômica” para a decretação da prisão.

O art. 312 do CPP elenca as hipóteses para a decretação da prisão preventiva: “[...] garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal [...].”

No que concerne a ordem pública e a ordem econômica, previstos no artigo supracitado, o legislador não se ateve que ambos são termos genéricos e dão espaço a diversas interpretações.

A redação original do PL 4208/2001, como já dito, que deu origem à lei em estudo, não abarcava os dois termos, conforme explica o deputado Ibrahim Abi-Ackel:

são enunciadas com clareza as hipóteses de aplicação, descumprimento, revogação e substituição das medidas cautelares, fugindo desse modo o projeto das causas indeterminadas, como, no caso da prisão preventiva, a garantia da ordem pública e a garantia da ordem econômica, substituídas por definições precisas das circunstancias que a justificam.[30]

No entanto, durante a tramitação o PL acima referido foi modificado e fez-se constar, novamente, as previsões de 1941, o que afastou a ordem natural do direito, que é a evolução juntamente com a sociedade.

A prisão preventiva é uma medida cautelar e a finalidade de toda a medida cautelar é assegurar a eficácia da sentença, conforme assegura Ernani Fidélis dos Santos:

O processo cautelar não se presta nunca à antecipação da prestação jurisdicional definitiva, [...] mas, em determinados casos, o perigo de lesão irreparável está tão ligado ao reconhecimento do pretendido direito, que não há como ser evitado o adiantamento satisfativo, identificado com a própria cautela.[31]

No mesmo entendimento, dispõe Humberto Theodoro Júnior:

Consiste, pois, a ação cautelar no direito de provocar, o interessado, o órgão judicial a tomar providências que conservem e assegurem os elementos do processo [...], eliminando a ameaça de perigo ou prejuízo iminente e irreparável ao interesse tutelado no processo principal; vale dizer: a ação cautelar consiste no direito de assegurar que o processo possa conseguir um resultado útil.[32]

Explica Lopes Junior que “nos procedimentos cautelares, mais do que o objetivo de aplicar o direito material, a finalidade imediata é assegurar a eficácia do procedimento definitivo (esse, sim, tornará efetivo o direito material).”[33]

Assim, não é a cautelar instrumento para fazer justiça (como acredita o senso comum), e tampouco garantir a ordem pública ou econômica. A prisão cautelar tem a finalidade de garantir o funcionamento da justiça, acautelando, assim, o curso do processo.

Como preceitua Lopes Junior, “é cautelar aquela medida que se destinar a esse fim (servir ao processo de conhecimento). E somente o que for verdadeiramente cautelar é constitucional.”[34]

Assim, sob esse aspecto, as garantias de ordem pública e econômica são inconstitucionais, pois não têm a finalidade de garantir o curso do processo de conhecimento. A finalidade destes requisitos é garantir algo que está além, fora do processo, deturpando-se a finalidade inerente a toda e qualquer medida cautelar.

Outro grande problema é que ambas as garantias tratam de conceitos vagos, abertos e imprecisos, dando espaço a interpretações por vezes errôneas, sem falar que tais requisitos têm origem na Alemanha nazista, conforme explica Lopes Junior:

Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifacismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes.[35]

Assim, usando das próprias palavras previstas na legislação, é possível construir uma interpretação equivocada e fora das finalidades da cautelar, o que gerará a sua ilegalidade.

Também, equivocadamente, o requisito da ordem pública é confundido com o clamor público. Os sistemas de comunicação (televisão, internet, rádio etc.) têm grande força sobre a opinião social, o que, por vezes, gera a revolta popular, a opinião pública ou opinião publicada, como afirma Lopes Junior:

É inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar o alarma social, e, por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo.[36]

No que tange a ordem econômica, é incabível que alguém seja mantido preso para assegurar a especulação financeira, quando existem meios mais eficientes e menos gravosos como a medida assecuratória de sequestro e a indisponibilidade dos bens, “pois dessa forma melhor se poderia tutelar a ordem financeira e também amenizar as perdas econômicas.”[37]

Portanto, a ordem pública ou econômica não tem a finalidade de garantir a prova ou a efetividade do processo, como seria no risco de fuga, portanto não pode ser considerada medida cautelar a decretação da preventiva com fundamento nestes requisitos. Há, no caso, um desvio de finalidade, tendo o legislador perdido mais uma oportunidade de corrigir tal equívoco.

No que tange aos outros requisitos do art. 312 do CPP que autorizam a preventiva – por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal – são elas naturalmente cautelares, já que visam efetivar o andamento do processo e o provimento final.

A conveniência da instrução criminal configura-se, por exemplo, quando o agente ameaça ou suborna testemunha para que falte com a verdade acerca da prática do crime, destrói vestígios ou provas, entre outras situações. Já a garantia da aplicação da lei penal se faz presente quando há indícios de que o réu intencione foragi ou quando não consiga comprovar um endereço fixo onde possa ser encontrado.


4. Crítica à decretação de ofício da prisão preventiva e ao termo “ação penal”

Primeiramente, deve-se compreender a função do juiz no processo penal. O art. 251[38] do CPP define que ao magistrado cabe manter a ordem no curso dos atos processuais. Ainda, Denilson Feitoza afirma que “a rigor, sujeito do processo é o Estado. O juiz é o agente do Estado, exercitador do poder que é a jurisdição.”[39]

Nesse aspecto, entende-se que é devida a imparcialidade do magistrado, pois, desta forma, poderá encontrar a melhor solução para o caso in concreto. Do contrário não seria necessário a investigação, tampouco a instrução e julgamento para a apuração de provas, tendo em vista que o julgador já tem a sua decisão formada.

Sobre o tema, ensina Geraldo Prado:

A posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz-natural – garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição – que consiste na combinação de exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu reciprocamente contrapõem durante o processo.[40] (sem grifo no original).

No entendimento de Nucci, uma das características que deve ser mantida no curso do processo penal é a imparcialidade do magistrado, um princípio

[...] constitucionalmente assegurado, embora de maneira implícita. Ingressa o sistema pela porta do art. 5º, §2º, da Constituição (“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”). Ora, não somente o princípio do juiz imparcial decorre do juiz natural, afinal, este sem aquele não tem finalidade útil, como é fruto do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada pelo Decreto 678/92), firmado pelo Brasil e, em vigor, desde 1992. Verifica-se no art. 8º, item 1, o seguinte: “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza.[41] (sem grifo no original).

Desta forma, não é de sua competência a produção de provas – apesar do artigo 157 do CPP assim o autorizar, crítica que não será feita neste trabalho – mas a apreciação para solucionar o caso da forma mais imparcial possível.

O juiz é o destinatário da prova e, sem dúvida alguma, sujeito do conhecimento. Quando, porém, se dedica a produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do conhecimento e empreender tarefa que não é neutra, pois sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver confirmada.[42]

Concernente a prisão preventiva, compete decretá-la o juiz ou tribunal competente para o julgamento do processo, sempre em decisão fundamentada, mediante requerimento do MP, representação da autoridade policial ou, ainda, mediante requerimento do querelante. Até aí, tudo bem, aceitável e lógico que o MP (acusação/autor da ação penal) ou o querelante (vítima ou representante desta, nesse caso na ação penal privada ou na subsidiária da pública) requeiram e a autoridade policial (que esteve frente às investigações) represente a prisão preventiva do ofensor.

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Por algum motivo, o legislador insiste em autorizar a decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz, mantendo-se o vício de procedimento inquisitivo, onde a gestão de provas está sob domínio do juiz[43], tornando-o parcial.

A nova redação do art. 311 do CPP não teve grandes modificações, apenas nova composição sem relevâncias significativas. A única alteração que merece destaque é que agora o magistrado, ainda decretando de ofício, poderá fazê-lo “no curso da ação penal”, conforme artigo supracitado.

Nesse aspecto Lopes Junior faz menção a dois erros:

O erro é duplo: primeiro permitir a atuação de ofício (juiz ator = ranço inquisitório), [...] e, em segundo lugar, por empregar a expressão “no curso da ação penal”, quando, tecnicamente, o correto é “no curso do processo”. Ação processual penal é um poder político constitucional de invocação da atividade jurisdicional, que uma vez invocada e posta em movimento, dá origem ao processo. O que se move, tem ‘proceder’ é o processo e não a ação penal.[44]

Perdeu o legislador, como já dito, a oportunidade de garantir a imparcialidade do juiz no curso do processo penal, tendo em vista que a sua atuação como “juiz-instrutor (poderes investigatórios) ou, pior, quando ele assume uma postura inquisitória decretando – de ofício – a prisão preventiva”[45] contrasta com a inércia que deveria ter, característica de um julgador, mais ainda, de um julgador imparcial, característica fundamente do sistema acusatório.

Neste sentido cita-se decisão proferida pela 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

HABEAS CORPUS. RECEPTAÇÃO. SENTENÇA CONDENATÓRIA RECORRÍVEL. ORDEM PÚBLICA. PRISÃO DE OFÍCIO.

1. O paciente, vereador licenciado para concorrer à candidatura de Deputado Estadual, foi condenado em primeiro grau, pelo delito de receptação. A pena privativa de liberdade foi substituída por restritiva de direitos, sendo, outrossim, concedido o direito de apelar em liberdade.

2. após ter sido instado a explicar na tribuna sobre sua condenação, manifestou indignação, alegando ser inocente. Foi-lhe decretada a prisão preventiva, com fundamento na ordem pública.

3. Além de a segregação cautelar ter ferido frontalmente o sistema acusatório, pois a decretação foi de ofício, prática rejeitada pela Constituição de 1988, foi totalmente desnecessária, tendo em vista que os pronunciamentos no âmbito da Casa Legislativa, onde o paciente é vereador, criticando instituições, não ameaçam a ordem do Estado de Direito, cuja artificial reason transcende aos limites da urbe localizada.

4. Além de não haver ofensa à ordem pública, não houve demonstração de nenhuma outra situação que pudesse ensejar a decretação da custódia cautelar, tal como o risco de fuga, por exemplo. Tanto é verdade que respondeu ao processo em liberdade e lhe foi concedido o direito de apelar em liberdade. [46] (sem grifo no original).

Então, como demonstra a jurisprudência e a doutrina pátria, a violação a esse preceito pode acarretar na parcialidade do juiz para alguma das partes, condenando ou absolvendo sem a correta observância das provas apuradas e acostadas nos autos.

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Sobre os autores
Fabiano Oldoni

Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí . especialização em Direito Penal Empresarial e graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí. professor titular das disciplinas de Direito Processual Penal e Prática Jurídica Processual Penal (EMA) pela Univali e Coordenador do Projeto de Execução Penal junto ao Sistema Penitenciário de Itajaí (convênio UNIVALI/CNJ). Advogado, autor do livro Arrendamento Mercantil Financeiro e de vários artigos publicados em revistas e periódicos.

Gizele Cristina Jovinski

Bacharel em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLDONI, Fabiano ; JOVINSKI, Gizele Cristina. Análise crítica da prisão preventiva: Uma nova lei que mantém o retrocesso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3197, 2 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21399. Acesso em: 16 abr. 2024.

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