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A concessão de tutela antecipada ex officio

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A tutela de urgência satisfativa não carece de pedido formal da parte interessada. A atuação judicial de ofício considera os novos contornos jurídico-sociais e o anteparo constitucional garantista, os quais conferem ao julgador poderes para agir sem provocação em hipóteses materialmente justificadas.

RESUMO

O artigo posto tem por objetivo discutir a possibilidade de concessão de tutela antecipada de ofício pelo magistrado, independentemente de requerimento expresso da parte. A previsão legal, expressa no sentido de ser possível a antecipação dos efeitos da tutela pretendida somente à parte que formalmente a pedir, é desafiada por uma vanguardista jurisprudência que admite sua viabilização ainda que não haja requerimento específico, desde que o magistrado se convença da existência dos pressupostos para concessão. Uma exegese precipitada poderia, conforme o posicionamento, excluir de plano a hermenêutica que se desviasse da letra da lei; entrementes, o direito, como se sabe, não é estanque, mas diuturnamente construído, e as exigências sociais, mostrando uma diretriz mais realista e pragmática, decerto conduzirão os operadores a caminhos que ultrapassam a barreira da estrita legalidade. Perpassando por contextualização do tema e análise de requisitos legais, focaliza-se o embate entre as correntes contrárias e as que autorizam a viabilidade da medida, tudo com base em pesquisas de doutrina e jurisprudência.

Palavras-chave: Tutela antecipada. Requerimento expresso. Concessão de ofício.


Introdução

Objetiva-se com o presente estudo trazer à baila o instituto da tutela antecipada, poderoso instrumento de equalização de demandas judiciais e, num prisma lato, sociais, especialmente no que se refere ao atendimento de necessidades urgentes independentemente de requerimento expresso das partes interessadas.

É sabido que, uma vez configurados os requisitos exigidos em lei, é mister do Estado-juiz conceder a antecipação dos efeitos do mérito para o momento presente, dando o que se configura devido, numa primeira análise, à parte que formalmente o requer.

O ponto nevrálgico do tema em comento, no entanto, é fomentar o raciocínio jurídico a partir de digressões sobre a possibilidade de concessão da tutela de segurança ex officio, terreno de inquietantes teses na doutrina e reflexos na jurisprudência.

O panorama que se traça, de início, é o imbróglio legal para se aceitar tal assertiva. Decerto, há de se enfrentar também o aspecto principiológico, e numa derradeira análise as manifestações da mais abalizada doutrina e o posicionamento dos tribunais pátrios.

Como em toda instigante questão, manifestar-se-ão aderentes contrários e favoráveis, que por suas razões e respectivos fundamentos, terão pródigos elementos para enriquecer o debate, e mais ainda a Ciência Jurídica.

Espera-se, assim, contribuir de modo profícuo para a evolução da temática e, se possível, estimular ainda mais o viés pragmático de que se reveste.


1. Contextualizando a tutela antecipada

Dentre os temas mais palpitantes no processo civil, certamente tem lugar cativo a tutela antecipada. Multifalada, debatida frequentemente na doutrina, requerida diuturnamente nas mais diversas petições e tantas outras vezes apreciada pelos órgãos jurisdicionais, é induvidoso que há múltiplas razões para a existência e o processamento de tão instigante e utilíssimo instrumento.

Decerto, aos olhos do leigo, essa tutela diferenciada, batizada inadvertidamente de “liminar”, viria a ser o antídoto para grande parte dos males da morosa justiça. Ora, se num processo para o qual se previa, em visão mais otimista, duração de anos a fio, opera-se a resolução em meses ou semanas, gera-se otimismo, sensação de confiança nas instituições públicas, em especial no Poder Judiciário, chegando-se a questionar, inclusive, por que todas as demandas não se submetem a esse tratamento.

 Na esteira do que pregava o imortal Rui Barbosa em frase cuja célebre autoria lhe é atribuída (“Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” (BARBOSA, 2009, p.62)), o senso comum não conhece como justa a causa que se arrasta sem fim, mormente em se tratando de situações urgentes que não podem esperar tramitação por quatro instâncias, recursos protelatórios, e coisas do gênero.

Dos operadores do direito, alinhados com as exigências sociais, como razoavelmente se exige, esperam-se respostas efetivas. Sem descurar da boa técnica processual, os juristas podem e devem lançar mão desse formidável instituto para tutelar os interesses dos que a eles recorrem.

Tem-se, assim, com a antecipação de tutela, poderosa medida para garantir à parte detentora de legítimo direito o seu pronto reconhecimento, de forma satisfativa. Não se pretende, com isso, promover a irresponsável banalização de medidas de urgência, mas tão somente aclarar que, requerida e concedida nas hipóteses que a justificam, a tutela antecipada terá o condão de conferir justiça com eficácia.

Muito embora a antecipação de tutela já fosse de há muito conhecida em nosso ordenamento através de dispositivos esparsos, exempli gratia, na lei 8.245/91 (BRASIL, 1991), a qual prevê em seu art. 68, II, a fixação de aluguel provisório em ações revisionais, foi a partir da remodelagem do art. 273 do código processual civil, com a lei 8.952/94, que se tornou possível sua aplicação extensiva a toda e qualquer ação, vez que compreendida no processo de conhecimento e sendo este subsidiário para todos os demais.

Nas precisas lições de Alexandre Câmara, “a tutela antecipada é uma forma de tutela jurisdicional satisfativa (e, portanto, não cautelar), prestada com base em juízo de probabilidade” (CÂMARA, 2004, p. 87). Logo, todas as vezes que se encontrarem presentes os requisitos exigíveis, será possível, em tese, sua concessão.

Como se sabe, trata-se de um juízo de probabilidade, não exauriente, mas que não deve ser confundido como um julgamento leviano. É que, diante das mais variadas situações da vida, a demora pode fazer perecer o próprio direito que se pleiteia. Ilustrativamente, não é raro ocorrer a colocação em juízo de uma demanda que envolva conflito entre paciente com risco de morte, porém desassistido por plano privado de saúde, e unidade clínica particular que se recusa a atendê-lo. Parece que não resta ao magistrado muito tempo para aguardar acurada dilação probatória, de modo que, havendo prova inequívoca e verossimilhança do alegado, cabe-lhe deferir o pedido premente de internação com respectivo custeio pelo Sistema Único de Saúde.

Convém dizer, ainda, que nem as medidas cautelares, também tidas como de urgência, podem servir a contento em muitas casuísticas nas quais se exige não só a garantia do futuro direito, mas seu trazimento imediato para o momento presente. Conforme singelo e perspicaz ensinamento ventilado por Fredie Didier Jr., em alusão ao professor Pedro Caymmi, há momentos em que não é suficiente manter refrigerado o pedaço de carne (tutela cautelar), mas dar a carne para, incontinenti, saciar-se a fome, como sói ocorrer na antecipação de tutela (DIDIER JÚNIOR et alii, 2007, p. 515).

Por sorte, com a admissão da fungibilidade das tutelas de urgência, pode a providência cautelar ser deferida no bojo de pedido antecipatório (art. 273, § 7º), ou, como muitos já admitem, ocorrer o inverso (CÂMARA, 2004, p. 463 apud DINAMARCO, p. 463), antecipando-se o mérito através de pedido de natureza cautelar – a chamada mão dupla.

Considerando, dentre outros aspectos, essa aludida fungibilidade, bem como a possibilidade de se conceder medidas cautelares de ofício, com fundamento no poder geral de cautela, pode-se vislumbrar, num aspecto mais abrangente, certa proximidade das acauteladoras com as tutelas satisfativas, de modo que, muito embora sejam ontologicamente distintas, quiçá venham a ter similar tratamento.


2. Dos requisitos autorizadores da concessão

Especialmente combatendo eventuais opiniões contrárias à antecipação do mérito, no que se refere à frouxidão de condições para sua concessão, fixaram-se requisitos que, inobstante tipificados em redação truncada no art. 273 do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973), representam pressupostos relativamente rígidos de controle.

Formalmente, assim reza o código de ritos, ipsis litteris:

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:

I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou

II – fique caracterizado abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.

Desse excerto se extraem todos os requisitos. O primeiro deles consiste em prova inequívoca dotada de verossimilhança, isto é, capaz de convencer o julgador de que o alegado é verdadeiro. Eis aí o primeiro imbróglio, pois, em primeiro juízo, questionar-se-ia se uma prova inequívoca, por si só, não seria suficiente para ensejar uma certeza. Outrossim, essa primaz certeza contrastaria com a verossimilhança, que não passa de uma mera probabilidade.

Buscando-se uma justa medida, e, compreendendo a natureza do instituto, não se olvide que se trata de uma cognição perfunctória, não exauriente, e assim chega-se ao raciocínio de que se requer a existência de um fato aparentemente verdadeiro, por sua vez fundado em prova robusta o suficiente para afirmá-lo como tal – nos dizeres de Freitas Câmara, “a probabilidade de existência do direito afirmado pelo demandante” (CÂMARA, 2004, p. 456). Este requisito, diga-se, remonta o fumus boni iuris das demandas de urgência de um modo geral.

Em um segundo momento, figurará ao lado do primeiro requisito um outro, que pode ser: a) o risco de o direito sofrer um dano de difícil ou impossível reparação; ou b) abuso do direito de defesa da parte ex-adversa.

Na primeira hipótese, consubstancia-se o que o hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Fux, denominara de “tutela de segurança” (FUX, 1996, p. 49). Conforme se pode deduzir, é a previsão de ocorrência mais corriqueira, fundamentada na iminência real de dano, ou, por assim dizer, no periculum in mora.

A derradeira possibilidade, consistente na dilação processual dolosamente provocada pelo demandado, há de ser verificada já a partir da contestação, dependendo do que seja processualmente apresentado, a exemplo de eventuais embargos de declaração ardilosamente interpostos com o fito de simplesmente interromper o prazo recursal, sem se estar diante de obscuridade, contradição ou omissão.

Como se vê, não é tão simples obter tutela antecipada em qualquer provimento, sem a devida comprovação de cumprimento dos seus requisitos. Embora se saiba que, muitas vezes, seja uma estratégia advocatícia apressar o máximo possível o trâmite processual, requerendo-se de praxe a tutela de urgência, é bem verdade que o crivo do Judiciário tem sido, e é de bom alvitre que seja, vigilante no momento de antecipar o mérito.


3. Da possibilidade de concessão ex officio

Ab initio, em análise do disposto em lei, observe-se o art. 273, caput, do código de processo, o qual reza que o juiz, uma vez atendidos os requisitos, “poderá” antecipar os efeitos da tutela. Tal expressão conduz ao raciocínio de tratar-se de uma faculdade atribuível ao bom senso do magistrado, além de que, considerando somente o aspecto gramatical, não se verifica previsão no sentido de que a análise pode ocorrer sem pedido da parte, como se dá nos casos de cautelar. Entrementes, como se verá, essa não se constitui a melhor hermenêutica e, de acordo com ampla doutrina, o “poderá” refere-se, em verdade, a um “poder-dever” do juiz, de obrigatório atendimento quando presentes os requisitos exigíveis (NERY JÚNIOR, 1996, p. 75).

Por sua vez, seguindo-se à leitura do dispositivo e após “o juiz poderá”, vem a aposição “a requerimento da parte”. Mais uma vez, em literal interpretação, seguramente se diria ser conditio sine qua non o pedido da parte interessada ao Estado-juiz para que a tutela se antecipe. A redação, a princípio, é inequívoca, mas cabe forçosamente perquirir: não seria o caso de, assim como ocorreu com a exegese de “poderá” equivalendo a “deverá”, serem ampliados os horizontes cognitivos a ponto de admitir a expressão “a requerimento da parte” como meramente ilustrativa e admitir-se também a hipótese “ex officio”?

O consagrado doutrinador e atual Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Alexandre Freitas Câmara, é veemente no sentido de ser impossível o provimento da antecipação de tutela sem que haja o correspondente requerimento da parte interessada, nos estritos termos do que se dispõe na redação do artigo de lei. Mencionando a divergência, na qual autores de renome defendem a concessão de ofício (dentre eles, Luiz Fux), e outros a repudiam (em sua absoluta maioria), o processualista carioca fundamenta sua posição basicamente em dois pressupostos: primeiro, a obediência ao princípio da demanda, segundo o qual não pode o magistrado conceder algo que não lhe foi pedido; segundo, a impossibilidade de responsabilização da parte que não requereu ou do magistrado que concedeu de ofício, na hipótese de revogação da medida e ocorrência de danos à parte contrária. A lição se insculpe nestes precisos termos (CÂMARA, 2004, p. 453):

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Exige o art. 273 do CPC, a fim de que se possa antecipar a tutela jurisdicional, que haja requerimento da parte interessada. Proíbe-se, assim, a concessão ex officio da tutela antecipatória. A necessidade de requerimento da parte foi alvo de severas críticas formuladas por importante teórico do tema, enquanto outro setor da doutrina a aplaudiu. Parece-nos que a lei processual, ao exigir o requerimento da parte, manteve-se consentânea com nosso sistema processual, onde prevalece o princípio da demanda, não podendo o órgão jurisdicional conceder à parte algo que não foi por ela pleiteado. Ademais, não se pode olvidar a hipótese de a tutela antecipada ser, afinal, indevida, causando danos à parte adversa, os quais precisarão ser reparados. Não se poderia, porém, responsabilizar o autor por um dano causado ao réu por uma decisão judicial que ele não pedira (assim como não seria possível, na hipótese, responsabilizar o juiz, o qual só responde civilmente nos casos de dolo ou fraude, conforme dispõe o art. 133 do CPC).

O mesmo autor, citando outro processualista de equiparável quilate, afirma ainda que mesmo a revogação ou modificação da tutela de urgência não prescinde do requerimento da parte (CÂMARA, 2004, p. 461 apud ALVIM, 1995, p. 129).

O pensador do direito Ministro Luiz Fux, reconhecido no meio jurídico por suas inteligentes e vanguardistas decisões, faz contraposição à impossibilidade de concessão da segurança de ofício. Segundo ele, há pródigas razões para se admitir a propriedade da tutela de urgência conferida ativamente pelo magistrado.

Segundo ele, é inegável a basilar onipresença, em regra, do princípio da inércia ou da demanda (ne procedat iudex ex officio), o qual confere a necessária imparcialidade ao julgador, esta esperada pelas partes litigantes em uma demanda qualquer. Entretanto, considerando as atuais conformações do mundo moderno, em que se exige uma postura mais atuante do Poder Judiciário, mormente na defesa da ordem social, vislumbra-se a necessidade de uma reinterpretação ou mitigação do aludido princípio. Demais disso, ainda segundo o autor, a lógica formal não se pode sobrepor à questão material que justifica o exercício da jurisdição.

Exemplificando, o autor aclara o ponto de vista que defende (FUX, 1996, p. 76):

Imagine-se, por exemplo, que num determinado ofício remetido por uma autoridade, o juiz verifique a possibilidade de lesão ao direito de determinado interessado que não se inclua na órbita de julgamento da causa donde originou-se o referido ofício. Diante da situação de periculum não se poderia negar ao juiz a possibilidade imediata da adoção de medida de segurança, instrumentalizando-a em procedimento à parte. É, em resumo, uma publicização da jurisdição, através da qual se concedem ao magistrado poderes instrumentais e necessários ao exercício de seus deveres.

Em continuidade de raciocínio, o festejado jurista alerta que as situações que requerem tutela antecipada encontram-se em situação diferenciada com relação às demais demandas, posto haver em jogo necessidades prementes e o risco de irreparabilidade de direitos. Segundo afirma (FUX, 1996, p. 79),

(...) impende considerar que o princípio dispositivo, extraído das regras do nosso sistema, pressupõe a propositura da ação de conhecimento entre contenedores em pé de igualdade e que por isso estimulam o juízo a conferir e atuar na medida da provocação. É evidente que não há lugar para estímulos quando o juiz deva agir ex officio diante da situação grave de periclitação do direito de uma das partes. As condições de prestação da justiça não são as “normais”, aquelas consideradas como aptas a que as partes em procedimento desconcentrado aguardem a definição judicial. A urgência modifica o panorama e altera o regime jurídico da ação.

Nesse arrimo, a denominada incoação estatal independente de provocação da parte fundamenta-se no poder-dever de segurança que detém o julgador, sempre que lhe é dado conhecer perigo de lesão a direitos.

Em crítica ao demasiado apego ao princípio da inércia para justificação da inação, o professor Galeno Lacerda, citado por Luiz Fux, chega a bradar com acidez: “Jamais cansaremos de criticar a sofisticada generalização e deturpação do princípio dispositivo a gerar a figura absurda e caricata do juiz tímido e inerte no processo civil” (FUX, 1996, p. 81 apud LACERDA, 1980, p. 64). A propósito, referido doutrinador cita diversas previsões legais que expressamente autorizam atuação de ofício em tutelas de nítida natureza satisfativa, a exemplo de algumas medidas estatuídas no art. 888 do CPC.

Em relação a outro motivo pelo qual não seria possível a atuação de ofício, ventilado por Alexandre Câmara, consistente na inviabilidade de se responsabilizar por eventuais danos a parte que não requereu ou o juiz que concedeu a medida satisfativa sem prévia petição, encontra-se um contra-argumento em outra passagem do próprio doutrinador, onde afirma ser a eventual concessão antecipada da tutela, muitas vezes, menos gravosa que seu indeferimento, ainda que haja o risco de irreversibilidade (CÂMARA, 2004, p. 459):

Uma interpretação apressada da norma nos levaria a concluir que, havendo risco de que a antecipação da tutela jurisdicional acarretasse efeitos irreversíveis, tal antecipação seria terminantemente proibida. Esta, porém, não é a melhor exegese. Isto porque há casos em que o indeferimento da tutela antecipada pode causar um dano ainda mais grave que o seu deferimento. Pense-se, por exemplo, numa hipótese em que a antecipação da tutela se faça necessária para que se realize uma transfusão de sangue, ou uma amputação de membro. Ambos os casos revelam provimentos jurisdicionais capazes de produzir efeitos irreversíveis. Ocorre que o indeferimento da medida, nos exemplos citados, provocaria a morte da parte, o que é – sem sombra de dúvida – também irreversível.

Ora, em casos como os que mencionara o autor, ainda que adviesse dano pelo deferimento da medida antecipada, não seria razoável cogitar responsabilização da parte que a requereu, haja vista ter agido em inegável estado de necessidade, acobertada pela ressalva prevista no art. 188, II, do Código Civil, e desobrigando-se, assim, de qualquer reparação civil (art. 927 do mesmo codex). Com efeito, se este raciocínio é cabível para tutelas antecipadas expressamente requeridas, também o será para as que forem, de ofício, concedidas.

Embora minoritária, a corrente doutrinária favorável à antecipação de tutela ex officio tem obtido adesões significativas de respeitáveis operadores do direito. Têm se destacado no meio jurídico, exempli gratia, opiniões de magistrados das searas federal e estadual, que, embasados em consistentes argumentos teóricos e de ordem prática, defendem com autoridade a inequívoca propriedade da concessão das tutelas de segurança sem prévio requerimento.

Em interessante doutrina, o magistrado sergipano Daniel Vasconcelos explana com maestria sobre o perfeito cabimento da tutela antecipada de ofício. Segundo ele, a expressão do codex que condiciona a concessão da medida a um pedido formal (“a requerimento da parte”) não deve ser interpretada de maneira absoluta, dado que, ao se conferir o poder geral de antecipação ao julgador, garante-se à parte o direito fundamental à efetividade do processo, e, em por conta disso, pressupõe-se uma matiz constitucional do prefalado instituto jurídico, pelo que se exige uma interpretação sistemática e teleológica, não meramente gramatical. Reforça seu pensamento citando doutrina de mesmo posicionamento (VASCONCELOS, 2009, p.33 apud SCHMIDT JUNIOR, 2007, p.87):

Mas, como é sabido, o método gramatical não é, no mais das vezes, por si só suficiente para a adequada aplicação do direito, embora toda e qualquer interpretação, como é evidente, não o dispense. A par da interpretação gramatical, siga-se a interpretação lógica e, sobretudo, sistemática. (…) Basta socorrermo-nos de uma interpretação teleológica para que possamos chegar à conclusão adequada. Assim temos que é indiscutível que as normas guardam um propósito. Resta verificar que propósitos podemos aceitar e quais propósitos devemos rejeitar.

Mencionado juiz continua sua tese aclarando que a concessão da tutela de urgência, de ofício, é cabível em casos excepcionais, em se verificando potencial prejuízo à efetividade do processo. Em idêntico sentido, José Roberto dos Santos Bedaque (VASCONCELOS, 2009, p.35 apud BEDAQUE, 2006, p. 385):

Não se podem excluir, todavia, situações excepcionais em que o juiz verifique a necessidade da antecipação, diante do risco iminente de perecimento do direito cuja tutela é pleiteada e do qual existam provas suficientes de verossimilhança. Nesses casos extremos, em que, apesar de presentes os requisitos legais, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional não é requerida pela parte, a atuação ex officio do juiz constitui o único meio de se preservar a utilidade do resultado do processo.

E, ainda na mesma esteira, Cassio Scarpinella Bueno (VASCONCELOS, 2009, p.36 apud BUENO, 2007, p. 37):

À luz de uma visão constitucional do processo, parece que a resposta mais afinada ao que procurei desenvolver no item 1, no entanto, é, diferentemente, positiva. Se o juiz vê, diante de si, tudo o que a lei reputou suficiente para a concessão da tutela antecipada menos o pedido, quiçá porque o advogado é ruim ou irresponsável, não será isso que o impedirá de realizar o valor ‘efetividade’, sobretudo naqueles casos em que a situação fática reclamar a necessidade de tutela jurisdicional urgente (art. 273, I). Se não houver tanta pressa assim, sempre me pareceu possível e desejável que o juiz determine a emenda da inicial, dando interpretação ampla ao art. 284. Não que um não pedido de tutela antecipada enseje a rejeição da inicial; evidentemente que não. É que é essa uma porta que o sistema dá para que a postulação jurisdicional inicial seja apta no sentido de produzir seus regulares efeitos.

Para o membro do Judiciário de Sergipe, outrossim, refutam-se argumentos outros que inviabilizariam o deferimento de ofício. A eventual violação ao princípio da demanda, segundo sustenta, não se verifica, vez que o juiz estaria antecipando um pedido já delimitado, atendo-se estritamente a ele, acelerando apenas os seus efeitos; quanto à possível responsabilização por danos, defende que a depender do interesse em jogo – vida, saúde, por exemplo – o ressarcimento de danos materiais seria um minus. Nesse sentido, ensina lançando mão de uma situação hipotética em que não há sequer o risco de dano, ensejando-se ainda com mais razão a antecipação de mérito (VASCONCELOS, 2009, p. 38):

(...) Outro exemplo interessante consubstancia-se no do autor que ingressa com uma ação, sem, todavia, requerer a tutela antecipada, pleiteando o direito de participar da segunda fase de um concurso público, alegando, pois, em seu favor que fora reprovado na primeira fase por apenas uma questão da prova objetiva, a qual aduz ser nula, por não se encontrar no programa do edital. Nessa hipótese, também remota, mas possível, o indeferimento da tutela tornará ineficaz a eventual sentença procedente, eis que, quando do seu trânsito em julgado, a segunda fase do certame já terá ocorrido. No entanto, o deferimento da medida e a sua posterior revogação não ensejará ao beneficiário qualquer dano decorrente da responsabilidade objetiva pelo cumprimento da tutela antecipada.

Já o jurista Roberto Eurico Schmidt Júnior, em obra específica sobre o tema esposado, além de lecionar, dentre outros, acerca da necessidade de desapego a interpretações gramaticais e fórmulas rigorosas, bem como da inafastabilidade do viés constitucional que o acesso à justiça confere à matéria, salienta que a concessão de ofício de medidas urgentes se fundamenta muito mais em efetividade do que exatamente oficiosidade, isso por uma exigência do processualismo e da sociedade moderna. Assim, contemporiza (SCHMIDT JUNIOR, 2007, p.22):

Esclareça-se que, agir de ofício não tem o mesmo significado de poder o magistrado “agir por agir”, como se lhe fosse facultado fazer isto ou aquilo, o que, como consequência, nos levaria, inarredavelmente, à arbitrariedade. Desta sorte, o que defendemos é a possibilidade da concessão da tutela antecipada de ofício, ou seja, em determinadas situações deve o juiz conceder a antecipação de tutela, independentemente do requerimento da parte porque o ordenamento jurídico – que se tem mostrado mais sábio do que os homens que o criaram – lhe impõem tal forma de atuação.

O Juiz Federal George Marmelstein Lima, também expoente dessa linha, lança pujantes razões para a tese que defende. Segundo afirma, o deferimento de tutela antecipada sem requerimento expresso passa, inicialmente, pela efetivação de direitos fundamentais, estes de índole constitucional, e, portanto, superiores às limitações legislativas ordinárias. Tão somente o direito a uma tutela adequada e efetiva, na esteira do que reza o art. 5º, XXXV, autoriza a ampla e positiva atuação do julgador.

Continuando, defende o jurista ser possível até mesmo afastar a incidência de norma que, conquanto válida, tenha aplicação flagrantemente injusta, a depender do caso concreto. Isto porque, sendo impossível à norma positivada prever todas as situações do mundo real, deve o julgador integrar sua exegese pela via dos princípios constitucionais, ainda que decida contra legem, mas pro Constituição.

Em outro argumento, sustenta haver situações que, de per si, contêm implícita a urgência e, em consectário, um pedido tácito de tutela de segurança, como é o caso das verbas alimentícias decorrentes de benefícios previdenciários ou assistenciais.

Aduz ainda a possibilidade de deficiência técnica do procurador da parte que, por error in procedendo, deixa de formular expressamente o pedido antecipatório, não sendo justo que esse lapso, no entanto, prejudique a parte hipossuficiente e não raro leiga, cabendo ao juiz a aplicação do princípio da instrumentalidade das formas. Suscita também, no mesmo plano da relação advogado-parte, a ocorrência de conflito de interesses, aqueles propositalmente pretendendo uma dilação processual e estes querendo seu rápido desfecho, situação em que pode e deve interferir o julgador para a célere solução do litígio, sempre que possível.

A teor do que dispõe, o magistrado não encontra óbices à antecipação de tutela sem expresso requerimento. Em termos legais, menciona, inclusive, o art. 461 do CPC, no qual é prevista a concessão de tutela específica, de ofício, nas obrigações de fazer ou não fazer. No mais, por sua vivência prática no exercício da judicatura, enriquece a tese através de testemunho pessoal (LIMA, 2002):

Tenho me deparado com inúmeros feitos previdenciários em que a antecipação da tutela, de ofício, mostra-se não apenas útil como também fundamental. São processos que tramitam em primeiro grau há cerca de cinco anos e certamente levarão outros cinco anos nas instâncias superiores. Os autores são sempre bem idosos, pedindo uma simples aposentadoria rural por idade, pensão ou amparo assistencial, cujo valor corresponde a tão somente um salário-mínimo. A eficácia do provimento final estaria seriamente comprometida caso seus efeitos não fossem antecipados imediatamente, pois, não obtendo desde logo a tão sonhada aposentadoria, certamente a parte autora já haverá falecido quando a sentença transitar em julgado, o que, infelizmente, ocorre com certa frequência. Por isso, sempre venho antecipando a tutela quando a verossimilhança é manifesta, demonstrada com farta prova documental e testemunhal do tempo de serviço rural necessário à obtenção do benefício.

A jurisprudência, no mesmo diapasão, vem sinalizando o reconhecimento do multifalado instituto de urgência, à luz do atendimento às básicas premissas concernentes à dignidade da pessoa humana, aos fins sociais da aplicação da lei e à proteção aos hipossuficientes. In verbis,

(TRF3-050707) PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. TUTELA ANTECIPADA EX OFFICIO. IMPLANTAÇÃO DO BENEFÍCIO DO ARTIGO 201, V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ESTADO DE NECESSIDADE COMPROVADO. FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL INSCRITOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AGRAVO IMPROVIDO.

I - Em matéria de Direito Previdenciário, presentes os requisitos legais à concessão do benefício do artigo 201, V, da Constituição Federal, meros formalismos da legislação processual vigente não podem obstar a concessão da tutela antecipada ex officio, para determinar ao INSS a imediata implantação do benefício, que é de caráter alimentar, sob pena de se sobrepor a norma do artigo 273 do CPC aos fundamentos da República Federativa do Brasil, como a "dignidade da pessoa humana" (CF, art. 1º, III), impedindo que o Poder Judiciário contribua no sentido da concretização dos objetivos da mesma República, que são "construir uma sociedade livre, justa e solidária", bem como "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (CF, art. 3º, I e III).

II - Comprovado nos autos que o autor sofre de doença grave e degenerativa e vivendo em estado de extrema penúria à custa da caridade alheia, e considerando que o recurso de apelação do INSS espera por julgamento há quase sete anos, não pode esperar ainda que se cumpram formalismos legais e processuais até que possa receber o benefício, pelo que deve o Juiz nortear-se pelo disposto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual "na aplicação da lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum".

III - Devendo ser o julgamento convertido em diligência para a realização de estudo socioeconômico exigido pela Lei nº 8.742/93, bem como para que lhe seja dado representante legal, a tutela antecipada é medida de extrema equidade em face do estado de necessidade, uma vez que, como já decidiu o Egrégio STJ, o benefício em questão "foi criado com o intuito de beneficiar os miseráveis, pessoas incapazes de sobreviver sem ação da Previdência" (STJ, Quinta Turma, REsp. 314264/SP, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 18.06.2001, pág. 00185).

IV - Agravo Regimental a que se nega provimento.

Decisão: A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator.

(Agravo Regimental nº 224215/SP (94031042893), 1ª Turma do TRF da 3ª Região, Rel. Juiz Walter Amaral. j. 11.03.2002, DJU 01.08.2002, p. 196).

Reconhece-se assim, na doutrina e nos tribunais, ainda que timidamente, o espírito legítimo da antecipação de tutela como forte instrumento capaz de atenuar sensivelmente as desigualdades processuais, e por que não dizer, sociais. O processo, nos dizeres de Luiz Guilherme Marinoni, significa

(...) um instrumento ético, que não pode impor um dano à parte que tem razão, beneficiando a parte que não a tem, é inevitável que ele seja dotado de um mecanismo de antecipação da tutela, que nada mais é do que uma técnica que permite a distribuição racional do tempo do processo” (NASCIMENTO, 2004 apud MARINONI).

Ao menos na esfera federal, onde sobrepujam benefícios previdenciários em que litigam, não raro, partes desfavorecidas socialmente, a possibilidade de concessão ex officio da tutela antecipada tem ganhado contornos reais. É isso que se vê com frequência nos Tribunais Regionais Federais:

PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. COMPANHEIRA E FILHOS. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA PRESUMIDA. DE CUJUS. TRABALHADOR RURAL. INÍCIO DE PROVA MATERIAL. PROVA TESTEMUNHAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA EX OFFICIO. POSSIBILIDADE. CARÊNCIA. EXEGESE DA LEI 8213/91. TERMO INICIAL DO PAGAMENTO DO BENEFÍCIO A PARTIR DO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SÚMULA Nº 111-STJ.

- A teor do art. 16, I, da Lei nº 8.213/91, é reconhecida a figura da companheira e dos filhos como beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado. E, segundo o parágrafo 4º, do referido diploma legal a dependência econômica dessas pessoas é presumida, dispensando, pois, comprovação.

- É possível a comprovação da condição de trabalhador rural e do tempo de serviço através de depoimentos testemunhais e de documentos os quais, apesar de não servirem como prova documental stricto sensu, já que não previstos na legislação, têm o condão de fortalecer a prova testemunhal, funcionando como início de prova material. Declaração do sindicato do Trabalhadores Rurais e certidão de óbito.

- O e. Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de admitir, como início razoável de prova material as anotações no registro civil.

- É possível a concessão da medida antecipatória de ofício, em face da demonstração do direito da autora ao benefício postulado e pelo fato de, em se tratando de prestação de natureza alimentícia, a demora na sua concessão acarretará sérios prejuízos à sobrevivência da demandante, por ser ela beneficiária da justiça gratuita.

- O benefício pensão por morte, nos termos do art. 26, inciso I, da Lei nº 8213/91 independe de carência.

- Verba honorária adequada aos termos da Súmula nº 111 - STJ.Apelação do INSS parcialmente provida

(TRF 5ª Região. AC 0001313-95.2004.4.05.8401. Primeira turma. Rel. Desembargador Federal José Maria Lucena. 19/06/2008).

Agora, falta conferir um maior grau de amplitude ao instituto, através da atuação plena dos magistrados, consubstanciada na aplicação ativa das tutelas de segurança nas mais várias situações de direito material em que se fizerem presentes os respectivos requisitos legais, tudo em favor dos desvalidos.


Considerações Finais

Ao que se pode verificar, percebe-se que a tutela antecipada de mérito, principalmente depois de se fazer constar expressamente no Código de Processo Civil, causou impressões e consequências impactantes nas relações jurídicas. Viu-se, a partir desse primoroso instituto, a possibilidade de se reconhecer direitos patentes de plano.

Para o sucesso da medida, repisou-se a necessidade de bem fundamentar o atendimento de seus requisitos, primando-se assim, dentre outros princípios, pela segurança jurídica.

No escopo central do trabalho, observou-se a ainda majoritária concepção de que a tutela de urgência satisfativa carece de pedido formal da parte interessada, por motivos de ordem legal, com base no caput do art. 273 do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973), e ontológica, no que tange ao princípio da demanda.

De outra banda, pode-se inferir que não são menos concatenados os argumentos que sustentam a atuação judicial de ofício, considerando, principalmente, os novos contornos jurídico-sociais e o anteparo constitucional garantista, os quais conferem ao julgador poderes para agir sem provocação em hipóteses materialmente justificadas.

Longe de pretender uma definitividade para o assunto, ainda assim é possível visualizar no horizonte uma tendência: a de se garantir ao jurisdicionado a concessão do que ele precisa, sem se ater excessivamente a formalidades.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Imediata da Sentença. São Paulo: RT, 1ª ed., 1997.

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Sobre o autor
Paulo Rodolpho Lima Nascimento

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Pós-Graduado em Direito Processual Civil - UNINTER. Servidor Público Federal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Paulo Rodolpho Lima. A concessão de tutela antecipada ex officio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3196, 1 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21411. Acesso em: 21 nov. 2024.

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