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Os efeitos da Emenda Constitucional nº 64/2010 no Direito de Família

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12/04/2012 às 15:01
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4. Entidade familiar como geradora do dever de alimentação

Registradas as premissas da eficácia horizontal, passamos a adentrar nas questões especificas do direito civil constitucional. Nesse contexto, ensina Paulo Lôbo que a Constituição Federal não encerra, em numerus clausus, as entidades familiares juridicamente reconhecidas e merecedoras de tutela, ou seja, podem existir diversos outros tipos de entidades familiares dignas de proteção, além daquelas elencadas na Constituição.

Desse modo, o autor citado procura destacar características comuns a todas as entidades familiares:

a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico; b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; c) ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente.

Desta sorte, percebe-se que a obrigação alimentar surgirá como consequência jurídica dos deveres inerentes aos componentes da entidade familiar, ou seja, basta a constatação da estabilidade, ostensividade e da afetividade, para surgir o dever da solidariedade alimentar.

Portanto, constatando que as entidades familiares não são descritas taxativamente pela Constituição Federal e tendo em vista as razões anteriormente invocadas, poderíamos chegar à conclusão de que os alimentos são devidos também na união homoafetiva, bastando que se observem as 3 (três) características de todas as entidades familiares, pois o fundamento da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade familiar não admitem interpretações restritivas. Sobre esse tema, Farias (1999) assim leciona:

Assim, mesmo não contemplados no art. 1.694 do novo Código Civil – que prevê sua possibilidade apenas entre parentes, cônjuges ou companheiros – os alimentos são devidos na união homoafetiva, eis que decorrem, logicamente, de princípios constitucionais, especialmente do dever de solidariedade social e da afirmação da dignidade humana que, repita-se à exaustão, não pode ser vislumbrado como valor abstrato, desprovido de concretude. Ora, se a relação homoafetiva, como qualquer outro relacionamento heterossexual, lastreia-se no afeto e na solidariedade, não há motivo para deixar de reconhecer o direito a alimentos, em favor daquele que necessita de proteção material.

Em outras situações, o ex-companheiro poderá ser obrigado a prestar alimentos; o irmão (ou até mesmo, primos) de uma melhor situação financeira deverá prestar alimentos a seus irmãos e primos que deles necessitam; os concubinos podem pedir alimentos uns aos outros, etc.


5. A solidariedade familiar

Consoante frisado, com o advento da Emenda nº 64/2010, o dever de solidariedade entre particulares ganhou contornos mais consistentes no dever alimentar. É sabido que, no âmbito do Direito de Família, os alimentos decorrem de parentesco, deveres de assistência, deveres de amparo aos idosos e obrigações, após o término de relações matrimoniais, dentre outras.

Segundo Diniz (2002, p. 467), o fundamento desta obrigação de prestar alimentos é o princípio da preservação da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1, III) e o da solidariedade familiar, pois vem a ser um dever personalíssimo, devido pelo alimentante, em razão do parentesco que o liga ao alimentando.

Pontes de Miranda (1995, p. 217) já destacava que a palavra alimento:

Na linguagem comum significa o que serve à subsistência animal; juridicamente, os alimentos compreendem tudo que é necessário ao sustento, à habitação, à roupa. (Ordenações Fillipinas, Livro I, Título 88, § 15: “[... ]o que lhes necessário for para seu mantimento, vestido e calçado e todo o mais”), ao tratamento de moléstias (Coelho da Rocha, Direito Civil português, I, 219) e, se o alimentário é menor, às despesas de criação e educação (Ordenações Fillipinas, Livro I, Título 88, §15: “E mandará ensinar a ler e escrever àqueles que forem para isso”).

Com alta carga valorativa, o direito à alimentação, agora insculpido no art. 6º, é um verdadeiro princípio constitucional que, juntamente com princípio da solidariedade, está apto a impregnar toda a ordem jurídica brasileira. Os princípios, com seus conteúdos abertos e indeterminados, são verdadeiras normas jurídicas na visão de Mello (2008, p. 23). Se apreciarmos a questão sobre o prisma sancionista, que vê na sanção punitiva o dado essencial para caracterizar uma norma jurídica, concluiremos que os princípios atendem aos requisitos para serem considerados normas jurídicas. Com efeito, qualquer ato ou omissão, que contrariar o direito à alimentação, está passível de intervenção judicial, garantindo, com isso, a coercibilidade do ordenamento. Essa pesquisa segue o entendimento de que os princípios e as regras são espécies do gênero norma. Essa corrente também é conduzida por Robert Alexy (2008), Norberto Bobbio (1999) e José Afonso da Silva (2006).

A solidariedade, antes da Constituição de 1988, era apenas considerada como simples dever moral, não constituindo valor jurídico. Atualmente, na Carta Magna, encontramos o valor da solidariedade em várias regras e princípios espalhados por seus dispositivos. O inciso I do art. 3º traz o princípio da solidariedade como regra matriz e diz que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil: “construir uma sociedade livre, justa e solidária.”

Outras normas constitucionais sobre solidariedade dão mais consistência ao direito à alimentação. Exemplo disso é o art. 226, que obriga a sociedade, o Estado e a família a proteger o núcleo familiar. Disso decorre que, a essa proteção, a depender do caso, deve ser dada a mais ampla interpretação possível, abrangendo a proteção alimentar de tios, primos, casais homossexuais, nascituros, enfermos, crianças filhas de outros pais, mas que foram criadas em outra família, mesmo que não adotadas, etc.

Para Bonavides (1998, p. 259), “o princípio da solidariedade deve ser daqueles que mais se presta a servir como oxigênio da Constituição, conferindo unidade de sentido e auferindo a valoração da ordem normativa do sistema constitucional.”

Paulo Lobo (s/d) sintetiza um panorama dos dispositivos constitucionais inerentes ao princípio da solidariedade:

A regra matriz do princípio da solidariedade é o inciso I do art. 3º da Constituição. No Capítulo destinado à família, o princípio é revelado incisivamente no dever imposto à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro) de proteção ao grupo familiar (art. 226), à criança e ao adolescente (art. 227) e às pessoas idosas (art. 230).

Portanto, aos integrantes de grupos sociais, que podem ser considerados juridicamente como entidades familiares, devem ser dados direitos e deveres inerentes à alimentação, respaldados não só no princípio da solidariedade, mas também na eficácia horizontal dos direitos fundamentais. E o desafio que se coloca é até que ponto esse dever pode chegar.

Desse cenário, extrai-se que os herdeiros do falecido, por exemplo, deverão ser obrigados a continuar a prestar alimentos até os limites dos valores da herança. Doutra banda, é sabido que os parentes em linha reta são credores e devedores de alimentos uns dos outros (art. 1.696 do CC). Já em relação aos colaterais, Dias (s/d) já defendia que a obrigação de prestar alimentos se estenderia até o colateral de 4º grau, ou seja, o primo. É que o art. 1.592 do Código Civil (que trata somente de questões relativas à filiação) estabelece que o parentesco colateral irá até o 4º grau, e os dispositivos do próprio Código, referentes aos alimentos, não estabelecem até que grau poder-se-ia acionar o colateral.

No entender de Berenice Dias (s/d), tal fato se deu por que o legislador não viu necessidade de especificar até que grau a obrigação alimentar poderia atingir, portanto, não significa dizer que o legislador tenha dispensado os tios e os primos. Com efeito, após a promulgação da Emenda Constitucional nº 64, a tese, defendida pela Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ganhará mais força e consistência, devendo ser observada, em cada caso, pelo julgador. Anote-se, porém, que o Superior Tribunal de Justiça, em dezembro de 2008, decidiu que os tios não devem ser compelidos a prestar alimentos aos sobrinhos (REsp 1032846), apesar de data maxima venia, não nos filiarmos totalmente ao teor dessa decisão.

Nesse entendimento, apresenta-se oportuno citar o exemplo do art. 6º da Lei nº 11.804/2008, que disciplina o direito aos alimentos gravídicos:

Art. 6º Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré.

Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia, em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.

À vista disso, respeitadas vozes preconizam que não seria razoável a aplicação do art. 6º da lei, que possibilita à gestante o pleito judicial, em face do suposto pai de seu filho. Autores não enxergam muita segurança no direcionamento da ação contra um suposto pai, pois a condenação, com base em indícios, talvez não seja prudente. Entrementes, entendemos que o julgador deverá agir com cautela, utilizando o princípio do livre convencimento motivado, analisando o caso concreto, não se esquecendo, porém, da máxima aplicação do direito fundamental à alimentação nas relações entre particulares.

Nesse contexto, também entendemos que a Emenda Constitucional nº 64/2010 também abriu bom espaço para a utilização dos alimentos gravídicos avoengos.


6. O futuro estatuto das famílias

É evidente a responsabilidade do Congresso Nacional em dar celeridade aos projetos de lei que tratam do direito à alimentação. Ademais, não se pode mais tolerar que a efetivação de leis e políticas públicas fique a mercê de interesses políticos e que a sociedade fique a esperar a efetividade desse direito tão fundamental. Diante do atual panorama social e jurídico, um novo diploma marcará significativamente a história jurídica brasileira.

Com efeito, a sociedade brasileira está prestes a ser presenteada com o novo Estatuto das Famílias, que vai promover importantes modernizações no âmbito do direito de família e nas interpretações das próprias normas constitucionais, revogando expressamente dispositivos do Código Civil sobre o tema.

O futuro diploma está sendo debatido no Projeto de Lei nº 2.285/2007, de autoria do deputado Sérgio Barradas Carneiro, promovendo eliminações de causas ou condições discriminatórias na prestação alimentícia, dentre outras importantes modificações. Nesse diapasão, salutar destacar, também, que o Estatuto destaca como matriz a máxima realização da solidariedade familiar.

Outro ponto importante diz respeito ao preconizado no art. 267 do projeto, que preceitua que é ineficaz qualquer ato, fato ou negócio jurídico, que contrariar os princípios estabelecidos na Constituição Federal, em tratados ou convenções internacionais, das quais seja o Brasil signatário e do Estatuto.

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Portanto, a ideia de que os valores constitucionais e supraestatais deverão impregnar toda a ordem jurídica continuará perfeitamente cabível nas relações de família entre particulares, tendo os direitos fundamentais aplicabilidade e eficácia plena e imediata nessa seara.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 64/2010, o Estado brasileiro tem uma maior responsabilidade no que diz respeito ao tratamento da questão alimentar, especialmente no direito de família. O executivo passa a ter maior responsabilidade em criar políticas públicas, no sentido de combater a fome e viabilizar a efetividade do direito a alimentos nas relações de família, bem como o Legislativo passa a ter a responsabilidade de criar normas para facilitar a prestação de alimentos entre os que necessitam e os que serão chamados a prestar. Não menor será também a responsabilidade do judiciário que terá, por exemplo, que dispensar atenção especial à questão, tanto na observação do percentual a ser prestado a título de alimentos, bem como numa celeridade processual, no que diz respeito às ações que envolvam alimentos. E tudo isso numa enumeração meramente exemplificativa, pois os efeitos da nova Emenda são por demais abrangentes.

Os efeitos também são sentidos nas relações privadas familiares que, a princípio, pareciam ser intocadas, devido ao manto intransponível da autonomia do direito privado. Situações como: até que ponto um pai pode testar toda a parte disponível da herança em favor de um filho em detrimento do outro por este último ser homossexual; ou se pode um pai ser solidário com um filho em detrimento do outro por ser contra a religião deste. Ou seja, são muitas situações que precisam ser repensadas pela comunidade jurídica.

Eénessecontexto,que engloba a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a solidariedade, a afetividade, o conceito de entidade familiar e a Emenda Constitucional nº 64/2010, que o direito à alimentação ganhará contornos mais amplos, impondo sua plena realização em quaisquer entidades familiares constituídas ou desfeitas.

Ao analisar os fatos sociais encontrados no Brasil, Paulo Lobo (s/d) cita o que ele denominou de “unidades de vivência.” Para ele, podem ser consideradas entidades familiares: “união estável, uniões concubinárias, união homossexual, pessoas sem laços de parentesco, que passam a conviver em caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual ou econômica,” dentre outras. Dessa forma, bastaria que o alimentado comprovasse que existiu entidade familiar para que surja seu direito a alimentos, sem esquecer as hipóteses em que outros parentes, em linha reta e colateral, poderão ser acionados.

Assim,entendemosqueodeverdesolidariedade deve ser imposto obrigatoriamente aos familiares, especificamente pais em relação aos filhos. As lides jurídicas revelam a realidade de pais descompromissados com o sustento e criação dos filhos que, muitas vezes, passam por inúmeras dificuldades, sem receber os alimentos que necessitam.

As milhares de causas sobre direito de família, que tramitam em todo o Brasil, batem às portas do judiciário cada um com uma singularidade específica que precisa ser tratada com cuidado pelo julgador. Dessa forma, uma jurisprudência, pacificada no direito de família, poderá causar equívocos e cicatrizes irremediáveis nas pessoas humanas da sociedade, por isso, cada caso deve ser tratado com prudência e à luz de sua particularidade.

No dia a dia das lides que envolvem direito de família, contatamos que os pais não prestam atenção devida aos filhos por mero comodismo, desleixo ou até capricho, deixando, em alguns casos, seus filhos comendo uma só vez por dia, especialmente nas camadas mais pobres da sociedade, devendo os operadores do direito observar, com maior cautela, a situação dos pais que insistem em alegar insuficiência de recursos quando, na verdade, comem mais de três vezes ao dia.

Por tudo isso, se o Estado não tomar medidas para combater essas lesões ao direito alimentar por particulares, na verdade, estará participando dessa violação.

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Sobre o autor
Othoniel Pinheiro Neto

Corregedor Geral da Defensoria Pública do Estado de Alagoas. Defensor Público. Mestrando em direito público pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Especialista em Direito Processual, bem como, em Direito Eleitoral pelo CESMAC (Centro de Estudos Superiores de Maceió). Professor de Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO NETO, Othoniel. Os efeitos da Emenda Constitucional nº 64/2010 no Direito de Família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3207, 12 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21495. Acesso em: 18 abr. 2024.

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