No Big Brother Brasil 12, exibido pela Rede Globo, a participante Renata insinua que outro participante, Jonas, é homossexual. Ao referir-se ao rapaz, desmunheca a mão. Sua interlocutora, embasbacada, questiona: será? A resposta não vem ao caso, mas a pergunta suscita diversos questionamentos. O fato narrado configuraria crime de injúria? Em reality shows, o direito à privacidade é reduzido de maneira a permitir pequenas ofensas? Haveria fato atípico pela aplicação do principio de política criminal da insignificância? Em caso negativo, seria caso de inexigibilidade de conduta diversa ? Afinal, dentro do reality não há espaço fora das câmeras para fofoca.
O fato narrado configura sem dúvida o tipo penal de injúria. Segundo o art. 140, do Código Penal, comete esse crime quem: injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou decoro. Para que se cometa o crime não é preciso que a ofensa seja uma afirmação expressa a respeito dos predicados de alguém[1]. O efeito performativo, estudado pela análise do discurso, demonstra que ações ou sentimentos podem ser gerados a partir de qualquer enunciado verbal ou até mesmo por afirmação. Por exemplo, o sinal de que o professor quer começar a aula pode ser feito por frase explícita do tipo: vamos dar início à aula de hoje. Como também por um simples “bem”, pois o professor tem competência reconhecida pelo interlocutor[2].
A moderna teoria dos sujeitos da linguagem está baseada no fato de que o sentido da comunicação está voltado para os parceiros do ato da linguagem, e não apenas pela análise das palavras utilizadas (conotação/denotação). O mero ato da fala (da comunicação), no caso de crime de injúria, é mero início da execução do crime, considerada a teoria objetivo-material. Haveria nessa ação começo da execução do delito, embora não se possa falar em começo da ação típica.
No entanto, já haveria tentativa. O ato da fala é, conforme previsão do autor do delito, imediatamente anterior ao início da execução da ação típica. Há nessa ação início de execução (parte objetiva) relacionada ao seu planejamento individual (parte subjetiva) de realizar o crime, conforme ensina Zafaronni[3]. O ato da fala não se confunde com o ato da linguagem (que significa a real comunicação, considerados os sujeitos e a situação em que a fala é produzida). A consumação do crime ocorrerá logo que percebida a estratégia discursiva, que, segundo Patrick Chanrandau, leva em conta: o efeito possível produzido pelo ajustamento ( o jogo) entre a encenação do dizer (o ato de fala) e a relação contratual do fazer[4].
O fato de a ofensa ser proferida num reality show, em que a conversa entre os participantes é a tônica do programa, não exclui o caráter criminoso da conduta. Não há critério de política criminal que permita safar antes da sentença penal a participante da reprimenda penal.
O princípio da insignificância não poderia ser aplicado. O participante de reality show, quando assina contrato para participar de programa, abre mão única e exclusivamente do exercício do direito de privacidade. Não há falar-se sequer em renúncia ao direito de privacidade. Como afirmou Canotilho, em obra específica sobre o tema, há simples não exercício de direito fundamental na conduta de quem participa de um programa televisivo como esse. A conveniência do titular sobre o momento que exerce seu direito fundamental decorre do valor de auto-determinação que integra os direitos fundamentais. Do contrário, como afirmou o mestre português: “o direito à privacidade tornar-se-ia um dever de privacidade”[5]. No caso: o não exercício do direito à privacidade está relacionado apenas a fatos consentidos pelo participante: tomar banho frente às câmaras, não poder cochichar, etc.
O caso narrado poderia configurar inexigibilidade de conduta diversa. A participante poderia alegar que não haveria outro lugar que não fosse o programa para questionar a homossexualidade do participante. Há aqui outro fundamento de política criminal. A doutrina, em sua maioria, admite a inexigibilidade de outra conduta como causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Se o requisito da culpabilidade é a reprovação, não há como censurar a conduta de quem não tem liberdade de agir. O fundamento é o neokantismo (que buscou valorar cada elemento do tipo penal a partir os ideais kantianos de autonomia do sujeito). Também há quem fundamente o instituto na analogia in bonam partem com as cláusulas de exclusão de antijuridicidade (como o estado de necessidade).
Mas há doutrina de peso que rejeita fortemente a inexigibilidade de conduta diversa como cláusula de exculpação. Nélson Hungria, por exemplo, afirmou[6]:
“[...]é de enjeitar-se a “teoria das causas supralegais de exclusão de crime ou de culpabilidade [...] não se justificando perante Códigos mais recentes, que procuram ir ao encontro de todas as sugestões no sentido de se obviarem os inconvenientes do sistema fechado da lei penal. Estaria esta exposta a sério perigo de subversão, se se atribuísse aos juízes o arbítrio de, com apoio em critérios não afiançados pela lei escrita criarem causa de excepcional licitude, de impunibilidade ou não-culpabilidade penal”
No caso ocorrido no reality show é aceitável defender a tese de inexigibilidade de conduta diversa. Para a tese do suporte fático amplo, defendida por Robert Alexy[7], consta no direito à liberdade de expressão até mesmo o direito de ofender terceiros. A prevalência a priori da liberdade de expressão faz com que sua restrição dependa não só de ofensa à honra de terceiro, mas também de uma fundamentação constitucional plausível. Fora do programa, ofender a dignidade de uma pessoa em conversa com amiga íntima é plenamente aceitável. Nesses casos quem comunica o fato tem a confiança de que a conversa não extravasará o reduto. Já no reality show não há como ter uma conversa desse tipo por conta de limitação física do programa. Não há como ir ao confessionário fofocar sobre suspeita da masculinidade de participante.
No entanto, prova pode demonstrar que a intenção foi mesmo ofender o participante. A insinuação da homossexualidade não tinha a mera condição de informar, de suspeitar. Seria vingança. O que poderia ser provado a partir de uma “dor de cotovelo” da participante ou pelas declarações de que o Brasil não poderia formar uma imagem do participante como um “pegador”, em vocábulo utilizado no programa.
No entanto, a prova da intenção do agente, para que se configure até mesmo fato atípico por exercício do direito a liberdade de expressão, não pode ser feita pelo delegado, pois depende de instrução. A mente do agente é impenetrável, como alertou Frank, daí porque o intuito criminoso deve partir de provas materiais. Além disso, a vontade do agente, deduzida por meio de outras provas, vai configurar qual foi o discurso praticado. Como demonstrado, o ato da fala não se confunde com a linguagem.
Há opinião respeitável de que o delegado de polícia deve avaliar não só a tipicidade, mas também a antijuridicidade, quando efetua a prisão em flagrante. Mas não há como defender que analise também a culpabilidade, quem dirá a existência de causa de exculpação. Luis Flávio Gomes[8] afirma que a defesa da mera análise da tipicidade pelos policiais implicaria a prisão em flagrante dos atiradores de elite, já que esses profissionais cometem crime de homicídio sob a exclusão de antijuridicidade do exercício regular de direito. No entanto, o Código de Processo Penal é explícito no sentido de que o juiz deve conceder a liberdade provisória sem fiança, e não o relaxamento da prisão, para quem comete crime sob causa de justificação (art. 310, do CPP).
Melhor aplicar o conceito de tipicidade conglobante proposto por Zafaronni para resolver esses casos extremos. Segundo Zaffaroni, a tipicidade conglobante impede considerar crime fato que seja permitido ou devido por outras normas jurídicas. Trata-se de mera distinção entre texto e norma já previstos pela teoria do direito há tempos. A previsão explícita de texto jurídico que imponha dever contrário ao previsto em texto penal não pode implicar em normas diferentes, mas apenas uma que convirja os preceitos de cada uma. De todo modo, não há como defender a exclusão da culpabilidade, aplicando causa de exculpação, por delegado de polícia, sem ferir expresso comando legal.
Desse modo, como a injúria é crime de ação privada, a prisão da integrante do programa poderia ocorrer desde que houvesse: 1) requerimento do ofendido; 2) o flagrante poderia ser aplicado logo após o conhecimento de Jonas sobre a ofensa (já que a consumação do delito de injúria ocorre com o conhecimento do interlocutor, com a ofensa); 3) a discussão sobre ausência de culpabilidade só poderia ocorrer na sentença, não havendo no caso como trancar inquérito policial por meio de habeas corpus[9] por necessidade de aprofundamento na prova.
Notas
[1] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol.6. São Paulo: Forense, 1958, p. 96.
[2] Charaudeau, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem (2008), in Gláucia Muniz Proença Lara, Ida Lucia Machado, Wander Emediato (orgs.), Análises do discurso hoje, vol. 1. Rio de Janeiro: Fronteira, 2008, p. 22-25.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. 6. ed. Da
tentativa: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 50
[4] Charaudeau, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem (2008), in Gláucia Muniz Proença Lara, Ida Lucia Machado, Wander Emediato (orgs.), Análises do discurso hoje, vol. 1. Rio de Janeiro: Fronteira, 2008, p. 27.
[5] CANOTILHO, Gomes; MACHADO, Jónatas. Reality shows e liberdade de programação. Coimbra: Coimbra, p. 66-70.
[6] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. 1, tomo I. 5ª ed. Rio de Janeiro: 1977, p. 101.
[7] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 140-142.
[8] Gomes, Luiz Flávio. Prisões e Medidas Cautelares. Comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: RT 2011. Pg.137
[9] HC 66192-1/MS, Rel. Min. Moreira Alves. Dj. 25.11.88; HC 88.868/RS, Rel. Min. Ayres Britto, Primeira Turma, Julgamento em 11/03/08; HC 98.272/PE, Relatora Min. Ellen Gracie, Segunda Turma; RHC 85.214/MG, Relator Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, Julgamento em 17/05/05