Cachoeira: É uma imoralidade combater o jogo do bicho.
Sócrates: Por quê?
Cachoeira: A Loteria Federal faz jogo toda hora, e ninguém fala nada. Não conheço ninguém que ganhou na Mega Sena. Mas no duque de dezenas ganham toda hora.
Sócrates: Mas a Caixa tem o monopólio legal da exploração de jogos...
Cachoeira: Mas monopólio estatal não é só a Constituição que pode fixar?
Sócrates: Claro, a liberdade de iniciativa é princípio constitucional da ordem econômica.
Cachoeira: E então?
Sócrates: Utilizei monopólio na expressão vulgar... queria dizer serviço público.
Cachoeira: Aí pode?
Sócrates: Há um autor bom, mas desconhecido, Fernando Herren Aguillar. Para ele serviços públicos só são aqueles contidos na Constituição. Só emenda constitucional poderia criar outros. Mas poucos conhecem esse doutrinador. Celso Antônio Bandeira de Mello tem muita força no Brasil. Também Maria Zanella di Pietro. Eles admitem a criação de serviços públicos por direito infraconstitucional.
Cachoeira: Mas não há critério para atribuir a certa atividade econômica a condição de serviço público?
Sócrates: Saber se determinada atividade configura serviço público já foi critério para determinar a competência do Conselho de Estado Francês.
Cachoeira: Tem gente me ligando, seja breve.
Sócrates: Sem teoria não se chega a práxis.
Cachoeira: Pois bem, prossiga.
Sócrates: Depois que o Estado passou a exercer diversas atividades, o conceito caiu de moda. O Estado passou a fazer tudo, de forma que não se poderia mais dizer o que era atividade típica do Estado... Tanto que Eros Grau enquadra, sob a ótica do ser, serviço público no gênero atividade econômica.
Cachoeira: E hoje o conceito não tem relevância? Só importa que a lei atribua a condição de serviço publico, e pronto?
Sócrates: Algum critério mínimo deve haver... Há o princípio da liberdade econômica. O Estado não poderia atribuir para si a empresa de bloqueador solar...
Cachoeira: Mas no Brasil é bem quente e, se o clima bater em 40 graus todo dia, vão aumentar para 100 mangos o preço do protetor nas farmácias.
Sócrates: Seria uma hipótese de intervenção do estado na economia.
Cachoeira: Quero saber só do jogo do bicho, não de aula. Estudo do direito no caso concreto, em voga nos Estados Unidos e aplicado na FGV.
Sócrates: Carmen Lúcia, lá do Supremo Tribunal Federal, afirma que atividades que contrariam princípios jurídicos, chegando a citar o da moralidade, não podem ser cuidados como se fossem de atribuição do Poder Público.
Cachoeira: E jogo do bicho configura contravenção...
Sócrates: Mas eu já lhe falei que Direito e Moral só por coincidência se encontram.
Cachoeira: E então?
Sócrates: Vão considerar que o caso envolve interesse social. É um dos casos de intervenção direta do Estado na economia
Cachoeira: E o que eles entendem por interesse social?
Sócrates: Tudo o que possa imaginar...
Cachoeira: Podem considerar algo criminoso e ao mesmo tempo sob a exclusividade do Estado?
Sócrates: Há contribuição sobre receitas de concursos de prognósticos... o Estado pega a Receita dessas contribuições sobre jogos e aplica nas atividades sociais determinadas pela Constituição.
Cachoeira: Nunca ouvi falar.
Sócrates: Se a Caixa tomasse conta do jogo do bicho, o imposto seria pago.
Cachoeira: Interesse social na possibilidade de arrecadação? O Estado nunca iria assumir o jogo do bicho. Para onde iriam os que trabalham lá, para outro ramo ilícito? Meu pessoal não tem qualificação, e estão acostumados ao bem bom... Se for para trabalhar com hipótese, chutaria, com grande chance de acerto, que o Estado ganharia menos com o aumento de arrecadação com o jogo do bicho que com o aumento do efetivo da polícia.
Sócrates: Eles poderiam jogar com o outro argumento.
Cachoeira: Qual?
Sócrates: Lavagem de dinheiro...
Cachoeira: Tem até escritório de advocacia lavando, a PF está apurando.
Sócrates: Mas o ramo de jogos é propenso a isso.
Cachoeira: Por acaso se lava algo com mais sujeira? Sempre ouvi dizer que quanto melhor o sabão, melhor a limpeza...