INTRODUÇÃO
Dentre as inovações trazidas com a entrada em vigor da Lei nº 10.406/02, destaca-se a inclusão dos novos vícios do negócio jurídico: o estado de perigo (art. 156) e a lesão (art. 157).
Evidentemente que, como toda inovação no campo do Direito positivo, tais institutos devem ser objeto de estudos para traçar-lhes o conceito, os limites e a aplicabilidade, de modo a ensejar interpretação uniforme em território nacional, o que se enquadra plenamente no princípio da segurança jurídica.
Constituindo exceção ao princípio do “pacta sunt servanda”, que propõe a obrigatoriedade de cumprimento das cláusulas contratuais e que, durante muito tempo norteou o direito civilista brasileiro, notadamente pelo acentuado caráter individualista do Código Civil de 1916, os institutos deverão ser analisados com certa cautela, já que não se pode tornar a exceção em regra, sem que o próprio legislador tome essa posição.
1 DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO
O negócio jurídico consiste em uma declaração de vontade, emitida com base no princípio da autonomia privada, com liberdade negocial e, por meio do qual, as partes disciplinam os efeitos que pretendem produzir. “O negócio jurídico é a manifestação de vontade tendente a criar, modificar ou extinguir um direito” (BARROS, 2003, p. 219).
Com base no conceito acima, extrai-se facilmente que o principal elemento do negócio jurídico é a manifestação ou declaração de vontade. É o elemento estrutural, requisito de existência de um negócio jurídico.
No entanto, para a perfeita validade de um negócio jurídico, não basta a declaração pura e simples da vontade. É necessário que a mesma tenha sido idônea, consciente, em consonância com o verdadeiro querer do agente. Para Diniz (2004), a validade do negócio jurídico depende da manifestação de vontade e que esta haja funcionado normalmente.
Na lição de Pereira (2004, p. 513), “na verificação do negócio jurídico, cumpre de início apurar se houve uma declaração de vontade. E, depois, indagar se ela foi escorreita”.
Diante da própria inexistência da manifestação da vontade, v.g., quando a mesma é totalmente tolhida, não há que se falar sequer em existência do negócio jurídico.
No entanto, é possível que a manifestação de vontade tenha sido externada com “defeito na sua formação ou na sua declaração, em prejuízo do próprio declarante, de terceiro ou da ordem pública” (GONÇALVES, 2005, p. 359).
Quando o defeito se relaciona à formação ou declaração da vontade, que não corresponde ao querer do agente, seja por uma situação de ignorância, necessidade extrema ou por força de um fator externo, estamos diante de um vício de consentimento ou psíquico. O Código Civil de 1916 elencava como vícios do consentimento o erro, o dolo e a coação.
Quando a declaração de vontade corresponde ao íntimo desejo do agente, mas visa fraudar à lei ou a terceiros, estaremos diante dos vícios sociais. Esses vícios correspondem à fraude contra credores e a simulação.
O novel Código Civil, abandonando a concepção individualista em que foi elaborado o diploma antigo, e lastreando-se no tripé eticidade, sociabilidade e operabilidade, enunciou expressamente, em seus arts. 156 e 157, mais dois institutos capazes de fundamentar a anulação do negócio jurídico. São eles o estado de perigo e a lesão.
A maior parte da doutrina enumera esses dois novos vícios dentre os vícios do consentimento. Consoante Venosa (2003, p. 424), “ao lado dos vícios de consentimento e deles muito se aproximando, coloca-se a lesão junto do estado de perigo, que não estavam no Código de 1916, mas é disciplinada pelo Código novo”. Para Pereira:
Não é a lesão puramente um vício do consentimento (...) Residindo, pois, a lesão na zona limítrofe dos vícios do consentimento, por aproveitar-se o beneficiário da distorção volitiva, para lograr um lucro patrimonial excessivo, é sem dúvida, um defeito do negócio jurídico, embora diferente, na sua estrutura, dos até agora examinados, razão por que é chamado por alguns de vício excepcional (2004, p. 545-546).
Em que pese a lição do doutrinador, é correto elencar os dois novos institutos entre os vícios do consentimento, pois os mesmos atingem a formação ou a declaração de vontade, distorcendo o consentimento que, em situação diversa, não se teria dado. Tal classificação restará melhor evidenciada ao longo do texto.
2 DO ESTADO DE PERIGO
Para o início do estudo do tema, necessário a análise do texto legal e do contexto no qual está inserido. Enuncia o Código Civil:
Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias (ANGHER, 2007, p. 206).
Da simples leitura do artigo, é possível extrair a essência do instituto, que se baseia, sobretudo, na noção de necessidade. O necessitado assume a obrigação excessivamente onerosa como forma de evitar um dano.
Passa-se à análise do instituto.
2.1 HISTÓRICO
Lotufo (2003) ensina que a categoria dogmática do estado de perigo e do estado de necessidade é fruto do desenvolvimento da ciência jurídica da Europa Continental, notadamente da cultura germânica do período oitocentista, com profundas raízes na tradição medieval.
O Direito Romano, embora em experiência tênue, fixou as primeiras bases do instituto do estado de perigo como conhecemos hoje. Na época justiniana, o contrato celebrado em estado de perigo era considerado válido “se uma pessoa recebia alguma coisa por defender outra da violência dos inimigos, ou dos ladrões, ou do povo, já que esta última assumira a obrigação de dar alguma coisa em pagamento” (LOTUFO, 2003, p. 425). No entanto, aproveitar-se do estado de perigo poderia ser considerado o mesmo que ter incutido tal temor, podendo o negócio ser anulado.
Outra aplicação do instituto derivava da Lex Rhodia, relacionada a regras do Direito Marítimo, aplicáveis no âmbito da Bacia do Mediterrâneo. Partia do pressuposto de que entre os proprietários de cargas de um mesmo navio havia uma comunhão para assumir os riscos inerentes ao perigo do transporte (sinistros marítimos), sendo autorizado ao comandante da embarcação jogar ao mar mercadorias para aliviar o peso da embarcação. Pela comunhão de perigo, os proprietários das mercadorias salvas ficavam obrigados a indenizar os proprietários das mercadorias perdidas, proporcionalmente ao valor da embarcação e da mercadoria salva.
Lotufo (2003) aponta que nos diplomas civilistas germânico e austríaco observa-se expressa previsão somente quanto ao estado de necessidade. Na Itália, o Código Civil de 1942 já dispõe sobre as regras para rescisão do contrato em estado de perigo.
No Direito Brasileiro a fonte mais remota de alusão ao estado de perigo encontrava-se no Código Comercial, arts. 735 a 739, revogados pela Lei nº .542/86, e estava relacionada ao Direito Marítimo. Consoante informa Nery Junior e Nery (2005, p. 248), “o estado de perigo, como vício do negócio jurídico, era previsto no art. 319 do Projeto Coelho Rodrigues e, posteriormente veio a constar do art. 121 do Projeto Beviláqua”. A norma fora rejeitada pela comissão revisora do Código de 1916.
No anteprojeto do Código das Obrigações de 1963, que serviu de base para a elaboração do novel Código Civil, Caio Mário da Silva Pereira consignou ao lado da lesão, o estado de perigo, no capítulo referente aos defeitos do negócio jurídico.
2.2 CONCEITO
Pela leitura do texto legal, entende-se que ocorre o estado de perigo quando o agente, diante de situação de grave perigo conhecido pela outra parte, emite declaração de vontade para salvar-se ou pessoa próxima, assumindo obrigação excessivamente onerosa.
É, portanto, “a situação de extrema necessidade que conduz uma pessoa a celebrar negócio jurídico em que assume obrigação desproporcional e excessiva” (GONÇALVES, 2005, p. 392).
São exemplos trazidos pela doutrina, extraídos de Gagliano e Pamplona Filho (2004), Diniz (2004) e Gonçalves (2005): o indivíduo que está se afogando promete quantia exorbitante ao seu salvador; indivíduo abordado por assaltantes promete recompensa ao seu libertador; vítima de acidente de automóvel que assume obrigação excessivamente onerosa para que não morra no local do acidente; o doente, em perigo de vida, que paga honorários excessivos para o cirurgião atendê-lo.
Gagliano e Pamplona Filho comentam um exemplo corriqueiro e hodierno:
Não há como não se reconhecer a ocorrência deste vício no ato de garantia (prestação de fiança ou emissão de cambial) prestado pelo indivíduo que pretenda internar, em caráter de urgência, um parente seu ou amigo próximo em Unidade de Terapia Intensiva, e se vê diante da condição imposta pela diretoria do hospital, no sentido de que o atendimento emergencial só é possível após a constituição imediata de garantia cambial ou fidejussória (2004, p. 367).
A anulabilidade do negócio jurídico em razão do estado de perigo encontra fundamento na inexigibilidade de conduta diversa, ante a comparação dos dois males irremediáveis. Ainda, consagra o princípio da função social do contrato, probidade e boa-fé, verdadeira cláusula implícita de conteúdo ético e exigibilidade jurídica. Visa a uma equivalência material entre os contratantes, proibindo os contratos iníquos.
2.3 ELEMENTOS
Para que se configure o estado de perigo, necessária a observância de alguns requisitos.
Em primeiro lugar, como assevera Lotufo (2003, p.430) “é necessário que exista uma ameaça de dano grave à própria pessoa, ou a alguém de sua família, bem como pessoa estranha a seu círculo”. É necessário que a ameaça de dano recaia sobre essas pessoas. Assevere-se que em relação à pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá de acordo com as circunstâncias de cada caso.
É irrelevante que o dano tenha sido provocado pela própria vítima ou por terceiro, podendo originar-se de ação humana voluntária ou involuntária ou acontecimento natural.
Para a aferição da gravidade do dano, o juiz não deve levar em conta tão somente o padrão do homem médio, devendo perquerir todas as circunstâncias que possam influir na gravidade do estado de perigo, tais como sexo, idade, condição de saúde, dentre outras.
A ameaça do grave dano deve ser atual, pois é a atualidade do dano que exerce a pressão psicológica sobre o indivíduo e o força a escolher dentre os dois males: o do grave dano, ou da assunção de negócio jurídico em condições excessivamente desvantajosas. Segundo Gonçalves (2005, p. 397), “se não tiver essa característica inexistirá estado de perigo, pois haverá tempo para o declarante evitar a sua consumação, sem ter de, pressionado, optar entre sujeitar-se a ele ou participar de um negócio em condições desvantajosas”.
No tocante à atualidade, também é apto a anular o negócio jurídico a declaração manifestada na hipótese em que a pessoa julga estar sob grave perigo (estado de perigo putativo). Isso ocorre pelo fato de que o fundamento da anulação é a diminuição da liberdade de contratação do indivíduo, ou seja, o vício no consentimento expressado. Logo, o dano não precisa ser concreto.
Temos ainda que o estado de perigo deve ser o motivo determinante da manifestação de vontade. Com efeito, deve haver um nexo de causalidade entre o perigo e a manifestação da vontade. Para Gonçalves (2005, p. 397), a “vontade deve se apresentar distorcida em conseqüência do perigo de dano”. A vítima do dano, por desconhecê-lo, ou por não imaginar a extensa gravidade do dano ao celebrar um negócio, não poderá requerer a anulação do negócio por esse fundamento, pois não foi o motivo determinante da declaração de vontade. A vontade deve se apresentar distorcida em conseqüência do perigo do dano.
A lei exige, para que se configure o estado de perigo, o conhecimento do dano pela outra parte. É o que alguns doutrinadores chamam de dolo de aproveitamento, caracterizador da má-fé. Deve ter em vista que a boa-fé se presume, e a má-fé deve ser comprovada. Desconhecendo o perigo de grave dano, o negócio jurídico não deverá ser anulado com fundamento no estado de perigo. O que o Código veda é o enriquecimento sem causa.
Por fim, é necessária que a obrigação assumida seja excessivamente onerosa. Essa onerosidade deve ser analisada de forma objetiva e deve ser concomitante à celebração do negócio. Se a obrigação assumida for razoável, o negócio deve ser considerado válido.
2.4 EFEITOS DO ESTADO DE PERIGO
Consoante dispõe o art. 178, II do Código Civil, é anulável o negócio jurídico celebrado em estado de perigo no prazo de quatro anos a partir de sua celebração. Trata-se, indubitavelmente, de prazo decadencial.
O Código Civil brasileiro não prevê compensação para aquela parte que prestou o serviço. Com efeito, a doutrina critica a rigidez da norma que enuncia a pura e simples anulação do negócio jurídico, sem a possibilidade de sua conservação, como pode ocorrer na lesão, consoante o parágrafo segundo do art. 157. De fato, seria muito mais recomendável a tentativa de continuidade do negócio, à luz do princípio da segurança jurídica e da estabilidade dos negócios.
Alguns atribuem o rigor da lei ao fato de que a parte que não a vítima agiu com o dolo de aproveitamento, ou seja, agiu de má-fé ao se beneficiar do temor do declarante.
Para outros, a impossibilidade de suplementar a obrigação para validar o negócio decorre da natureza da prestação e da contraprestação:
Ao conceito dado pela norma comentada, pode-se acrescentar a obrigação assumida por aquele que se encontra em estado de perigo é sempre de dar ou de fazer, e a contraprestação será sempre de fazer. Essa é a razão pela qual não se pode suplementar a contraprestação para validar o negócio. A oferta de quem se encontra em estado de perigo não vincula, pois a manifestação de vontade, nesse caso, é viciada. Em outras palavras, a simples oferta vicia o negócio (NERY JUNIOR e NERY, 2005, p. 248).
Em que pese a qualidade de seus defensores, não compartilhamos a interpretação estanque da norma jurídica. À luz dos princípios constitucionais citados, deve-se oferecer a possibilidade de dar continuidade ao negócio jurídico, mormente naquelas situações em que o desfazimento do mesmo importaria em enriquecimento sem causa da vítima.
Ora, se de um lado o ordenamento invalida o negócio decorrente de estado de perigo, também o faz em relação ao enriquecimento sem causa. A solução a esse aparente conflito seria a aplicação do parágrafo segundo do art. 157 do Código Civil, segundo o qual o negócio poderá ser mantido ante o oferecimento de suplemento suficiente ou, se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.
Aliás, assim tem se posicionado o Conselho da Justiça Federal, ao aprovar o enunciado nº 148 da III Jornada de Direito Civil, com o seguinte verbete: “Ao ‘estado de perigo’ (art. 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art. 157”.
3 DA LESÃO
Como já salientado, a análise dos institutos devem partir da análise do texto legal e do sistema no qual estão inseridos. Enuncia o Código Civil:
Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
§ 1º Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.
§ 2º Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito (ANGHER, 2007, p. 206-207).
Em relação ao disposto para o estado de perigo, vemos que o legislador conferiu à lesão uma redação mais simples, direta. Para que ocorra, basta a celebração de negócio sob premente necessidade ou por inexperiência, e que as prestações assumidas sejam desproporcionais. Não há que se falar em dolo de aproveitamento como requisito para tanto.
Passa-se a análise do instituto.
3.1 HISTÓRICO
Em que pese a incerteza doutrinária acerca da origem do instituto, já que alguns apontam a influência dos princípios hinduístas, bem como as regras morais trazidas pelos princípios brâmicos do Código de Manu, não se pode negar a raiz romanista do instituto da lesão.
No período clássico do Direito Romano, o instituto da lesão ainda não tinha grande repercussão, haja vista a cultura eminentemente individualista da época. Com o início da dominação cristã e seus ideais de eqüidade o instituto ganhou força. Como ressalta Lotufo:
Mas, se consultarmos a Bíblia, já no Antigo Testamento iremos nos deparar com um exemplo de venda tipicamente lesiva. Trata-se do episódio de Esaú e Jacó, da compra dos direitos do primogênito por um prato de lentilhas, realizada porque Esaú estava faminto. Tomados pela idéia de lesividade, para muitos doutrinadores, em especial da Igreja Católica, Jacó teria pecado, já que comprou tanta coisa por um preço vil (2003, p. 436).
De fato, esse instituto ganhou guarida no Direito Canônico e seus ideais acerca do justo preço, justo salário e proibição de juros, assegurando-se o equilíbrio entre a prestação e a contraprestação.
O Código Napoleônico, embora individualista, previu a lesão em vários dispositivos, mas com restrição à venda de bens de raiz em favor do vendedor prejudicado, em se tratando de menor ou co-herdeiro na partilha.
O Código Civil alemão também prevê a nulidade para o negócio jurídico fundamentado na lesão, desde que haja o dolo de aproveitamento. Previsão semelhante encontra-se no Código Civil Italiano.
No Direito pátrio, a lesão foi prevista em todas as Ordenações portuguesas que exerceram influência em nosso território. Clóvis Beviláqua, ao elaborar o Código Civil, preferiu abandonar a lesão como vício de consentimento, afastando-se da influência alemã e francesa, afirmando que o lesado teria outros meios de resguardar o seu direito, consubstanciados nos demais defeitos do negócio jurídico.
Contudo, o surgimento da lesão foi previsto, sob o aspecto criminal, na Lei de Economia Popular (Lei nº 1.521/51). “A despeito de se tratar de norma penal, a doutrina firmou entendimento no sentido de que o comportamento ilícito do agente também repercutiria na seara cível, autorizando a invalidação do contrato” (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2004, p. 372).
Na década de 90, com a aprovação do Código de Defesa do Consumidor, o instituto passou novamente a ser tutelado em sede de relações privadas, vedando o art. 51, IV as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.
Embora tenha havido a lacuna desse instituto em grande parte da história brasileira, a doutrina e jurisprudência, cuidou de preenchê-la, até o advento do atual Código Civil.
3.2 CONCEITO
A lesão diferencia-se dos demais defeitos do negócio jurídico por representar uma ruptura do equilíbrio contratual desde a fase de formação do negócio. É um negócio defeituoso em que não se observa o princípio da igualdade, e, no qual, não há a intenção de se fazer uma liberalidade. Não há equivalência entre prestação e contraprestação.
Traduz-se no prejuízo resultante da manifesta desproporção existente entre a prestação e a contraprestação de um negócio jurídico, em face da inexperiência, necessidade econômica ou leviandade de um dos declarantes.
São exemplos, apontados por Diniz (2004, p.428): a situação de alguém que na iminência de ter sua falência decretada, vende seu imóvel por preço bem inferior ao de mercado, em razão da falta de liquidez de recursos para saldar a dívida; daquele que, diante da necessidade de continuar a atividade, paga preço exorbitante pelo fornecimento de água, numa época de seca.
A anulabilidade do negócio jurídico em razão da lesão encontra fundamento na deformação da manifestação de vontade por fatores pessoais do contratante. Não tem relação direta com a intenção do agente em tirar proveito da necessidade do outro, o que pode ou não ocorrer no caso concreto.
Como salienta Lotufo: “os fundamentos do instituto da lesão encontram-se em valores éticos” (2003, p. 440).
Em outras palavras, a intenção do agente não é punir aquele que se beneficiou, mas tutelar o interesse do lesado, ante a manifesta desproporção da obrigação assumida, o que se coaduna ao princípio da equivalência das prestações, da boa-fé objetiva e da eticidade.
3.3 ELEMENTOS
Para que ocorra a lesão é necessária a ocorrência de dois elementos, um de ordem subjetiva e outro de ordem objetiva.
O elemento objetivo consiste na prestação manifestamente proporcional a que a parte se obriga em relação à contraprestação. Como vimos, essa desproporção tem origem na própria formação do negócio jurídico e, é nisso que se diferencia da chamada onerosidade excessiva, ensejadora da cláusula rebus sic stantibus, decorrente de eventos imprevisíveis ou inevitáveis que oneram o contrato de prestação continuada.
O primeiro problema é saber em que consiste a manifesta desproporção. Em alguns sistemas, como o italiano, a técnica consiste em tarifar a desproporção. A citada Lei de Economia Popular exigia a desproporção superior a um quinto do valor recebido em troca. No entanto, à luz de nosso sistema jurídico, a tarifação criaria uma regra inflexível, bastante inconveniente à realidade dos negócios jurídicos. A solução adotada pelo nosso Código Civil é a averiguação, caso a caso, pelo juiz, da ocorrência ou não de manifesta desproporção, ao momento da celebração do negócio jurídico (§2º do art. 157), “pois o contrato é prejudicial e lesivo no seu nascedouro” (GONÇALVES, 2005, p. 406).
O outro elemento é o subjetivo, consistente na falta de paridade entre as partes. Um dos declarantes, ao obrigar-se, encontra-se mentalmente tolhido por uma situação de inexperiência ou premente necessidade. Não basta a ocorrência da desproporção, mas é necessário o nexo de causalidade entre a situação subjetiva (motivo determinante) e a assunção do negócio manifestamente desvantajoso (elemento objetivo).
A premente necessidade a que alude a lei, não é a situação de miséria, nem aquela dependente da capacidade econômica do indivíduo. A necessidade tem base econômica e reflexo contratual. Consiste numa situação extrema que impõe ao necessitado uma rápida solução e que consiste na inevitável celebração do negócio jurídico. É a necessidade contratual, ou seja, relacionada à impossibilidade de evitar o contrato.
“A inexperiência também deve ser relacionada ao contrato, consistindo na falta de conhecimentos técnicos ou habilidades relativos à natureza da transação” (GONÇALVES, 2005, p. 407). É a falta de habilidade para o trato nos negócios, o que não quer dizer falta de instrução ou de cultura em geral.
Para que se configure a lesão, não há a necessidade do chamado dolo de aproveitamento, que é aquele intuito da parte de aproveitar-se da necessidade ou falta de experiência do declarante na celebração do negócio manifestamente vantajoso. Diante disso, diz-se que a lesão é objetiva. Tal é o entendimento do Conselho da Justiça Federal, expresso em seu enunciado nº 150: “A lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento”.
Com efeito, entende-se que o objetivo da norma não é punir aquele que maliciosamente se aproveita de outrem, mas sim, proteger o lesado, que tem o seu consentimento turbado por situação peculiar que lhe afeta, qual seja, a premente necessidade ou a inexperiência.
Assevere-se que o magistrado deve se atentar às condições pessoais do declarante, ao momento da celebração do negócio, para aferir a premente necessidade ou inexperiência. Se a “desvantagem contratual decorre exclusivamente da desídia de quem contratou, inserindo-se na própria álea contratual, não há falar-se em invalidação do negócio, em respeito ao princípio da segurança jurídica” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2004, p. 377).
3.4 EFEITOS
Consoante dispõe o art. 178, II do Código Civil, é anulável, no prazo de quatro anos, o negócio jurídico celebrado em situação de lesão, contados a partir de sua celebração. Trata-se de prazo decadencial, como prevê o texto legal.
Embora preveja a anulação, o diploma legal prevê a hipótese de preservação do contrato em seu parágrafo segundo, acaso seja oferecido suplemento suficiente ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.
Portanto, ao lesado, caberá a opção de requerer judicialmente a anulação do contrato ou a sua revisão. No entanto, como a própria lei assevera, é facultado ao beneficiado a possibilidade de preservar o negócio jurídico, mediante a suplementação ou a concordância em reduzir o proveito, elidindo, assim, o pleito anulatório.
Assevere-se que assim entende o Conselho da Justiça Federal, cujo enunciado nº 149 assim dispõe:
Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002.
De tal sorte, deve prevalecer a segurança jurídica. Ora, a lesão prevista no Código Civil tem como base a objetividade, ou seja, prescinde do dolo de aproveitamento, o que, para alguns era o óbice para a convalidação do negócio mediante a aplicação do §2º do art. 157 em relação ao estado de perigo. Com muito mais razão, dada a presunção de boa-fé do favorecido - que pensa estar fazendo um excelente negócio -, o negócio só deve ser anulado em última hipótese. Se o defeito do negócio era basicamente a manifesta desproporção entre as prestações, convém conferir-lhe validade mediante o ajustamento das mesmas, de modo que o negócio deixe de ser iníquo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora tragam como conseqüência a anulabilidade do negócio decorrente da assunção de obrigações manifestamente onerosas, não se confundem os institutos da lesão e do estado de perigo, muito embora o segundo pareça estar contido no primeiro.
A necessidade exigida no estado de perigo (evitar dano grave a própria pessoa ou pessoa próxima) é diversa da exigida na lesão (necessidade contratual).
Além disso, há a diferença entre o critério subjetivo de ambos os institutos. Enquanto no estado de perigo prepondera o dolo de aproveitamento, na lesão esse mesmo elemento pode não ocorrer, ou seja, a premente necessidade ou inexperiência pode não ser conhecida da outra parte.
Ainda, interpretando-se literalmente o dispositivo, verifica-se que enquanto a lesão admite a suplementação do negócio ou a redução do proveito do beneficiário, em prol da continuidade do negócio jurídico, tem-se que no estado de perigo, diante do dolo de aproveitamento, tal regra fica impossibilitada.
No entanto, asseverou-se a necessidade de interpretar o estado de perigo consoante os princípios constitucionais e o tripé principiológico sobre o qual se assenta o novel diploma civil.
Diante disso, não se pode negar a afronta à segurança jurídica e a boa-fé de terceiros que causaria a eventual anulação do negócio, sem a possibilidade de suplementação ou de redução do proveito. Ainda, não se pode olvidar que, a depender da situação, a anulação poderia resultar em enriquecimento sem causa, o que é rechaçado, de um modo geral, pelo ordenamento jurídico, inclusive em sede de Direito Público[1].
Com efeito, embora parte da doutrina não admita, entendemos a necessidade de se aplicar o §2º do art. 157 do Código Civil ao estado de perigo, desde que seja possível e socialmente recomendável, podendo a parte beneficiada elidir a anulação mediante a suplementação ou redução de seu proveito.
Consoante asseverado, a jurisprudência pátria, nesse trabalho representada pelos enunciados firmados na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, corroboram com esse entendimento, afirmando, ainda, a necessidade do magistrado proceder, sempre que possível, a revisão do contrato, em detrimento de invalidação.
REFERÊNCIAS
ANGHER, Anne Joyce (Org.). Vade Mecum acadêmico de direito. 4. ed. São Paulo: Rideel, 2007.
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. III Jornada de Direito Civil: enunciados de ns. 138 a 271. Disponível em: <www.jf.gov.br >. Acesso em 10 set. 2007.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (v. 1).
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (v. 1).
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. (v. 1).
LOTUFO, Renan. Código civil comentado: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003. (v. 1).
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. (v. 1).
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. (v. 1).
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. (v. 1).
Nota
[1] Exemplo disso é a Súmula nº 363 do Tribunal Superior do Trabalho.