Resumo:
Trata o presente artigo de uma breve análise da presença de características fundamentais do Pragmatismo Jurídico no Direito Brasileiro, examinando o conteúdo de normas legais vigentes, bem como de decisões proferidas pelos Tribunais Superiores.
PALAVRAS-CHAVES: Pragmatismo Jurídico. Características. Direito Brasileiro. Legislação. Decisões Judiciais.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Pragmatismo Jurídico. 3. O Pragmatismo e o Direito Brasileiro. 4. Conclusão.
01 – INTRODUÇÃO.
No presente trabalho, nos propomos a tecer alguns comentários sobre a influência do pragmatismo jurídico no Direito Nacional, seja na sua vertente Legislativa, seja na Jurisprudencial.
O Pragmatismo pode ser considerado como um movimento filosófico, principalmente difundido nos Estados Unidos da América, surgido entre o final do século XIX e início do século XX.
Com suas balizes cunhadas por Charles S. Pierce, e desenvolvido por William James e John Dewey, o pragmatismo prega a avaliação das idéias e ações a partir das suas consequências, de modo que apenas estas consequências seriam aptas a atribuir-lhes o seu efetivo significado. Assim, a investigação filosófica ou científica demandaria uma ligação necessária e indissociável para com a experiência do mundo real e as suas repercussões práticas.
Podem ser elencadas como idéias básicas pragmatismo o antifundacionalismo, o consequencialismo e o contextualismo.
Em linhas gerais, não é írrito afirmar que o antifundacionalismo implica na rejeição à fundamentação do pensamento e do conhecimento e, por extensão, da verdade, que se alicerce em asserções absolutas, estáticas, perpétuas e imutáveis. Partindo desta ótica, assevera-se que o processo natural de mutação das relações não permite assegurar que existam respostas finais, definitivas e atemporais que se prestem a servir de sustentáculo universal. O processo sistemático de investigação e reflexão permite que se obtenha uma resposta, a qual será, na medida das reais condições existentes, a resposta satisfatória para a situação examinada. O atingimento desta resposta aceitável, contudo, não fará cessar a possibilidade de investigação sobre o objeto examinado, eis que inexistente uma verdade final a ser atingida, mas sim um contínuo processo de aprimoramento.
De acordo com Thamy Progrebinschi (PROGREBINSCHI, 2005/38):
Neste sentido, o antifundacionalismo de Pierce muitas vezes se converte em falibilismo, na medida em que a inesgotabilidade do processo investigatório faz com que cada tentativa de conclusão seja antes uma nova fonte de informação passível de colocar a investigação novamente em marcha, revisando e corrigindo a si mesma permanentemente. No caso de James, seu antifundacionalismo, ao ampliar o escopo da teoria da significação pragmatista, para já sinalizar fortemente com o consequencialismo. Do mesmo modo, Dewey apresenta um antifundacionalismo fortemente associado ao contextualismo pragamatista – que ainda analisaremos, contudo- ao ressaltar a conexão da experiência prática com uma filosofia que prescinde de fundamento.
A segunda a idéia fundante do Pragmatismo, o Consequencialismo, impõe o exame axiológico da ação, avaliando quais serão as suas possíveis consequências, de modo que esta antevisão possibilite obter os resultados mais satisfatórios, úteis ou benéficos para a coletividade.
De seu turno, a necessária relevância a ser conferida aos aspectos culturais, ou seja, às crenças políticas, científicas e religiosas constitui a terceira característica do pragmatismo, denominada de Contextualismo. Nesta senda, a experiência humana assume posição de destaque no resultado do processo de investigação científica ou filosófica.
Com base nesta breve propedêutica, pode ser afirmado que a concepção pragmatista concorre para a asserção de que, ainda que não se alicerce necessariamente em categorias apriorísticas, dogmas ou verdades universais absolutas[1], a escolha – a decisão – será tão mais acertada quanto venha a se demonstrar estar em consonância para com as necessidades humanas e sociais, permitindo que estas sejam atendidas da forma mais satisfatória, em determinado estágio histórico-social.
02 – PRAGMATISMO JURÍDICO.
A orientação filosófica pragmatista concorreu para a formação de corrente de pensamento jurídico voltada a obter a solução que, na visão do aplicador do direito[2], melhor corresponder às necessidades e expectativas humanas e sociais.
Um breve resumo do desenvolvimento do pragmatismo jurídico pode ser colhido no trabalho de Lorena Freitas (FREITAS, 2007/16) que assim se expõe:
“Cardozo, assim como Oliver Holmes e Roscoe Pound, desenvolvem o pragmatismo por um viés jurídico. Uma postura pragmática, além de ser sua preocupação acadêmica, marcou seu trabalho, pois o encarava não como teórico ou amante da perfeição, mas como homem prático.
Oliver Holmes além de ter tido o seu trabalho na Suprema Corte continuidade pelas mãos de Cardozo, este também deu prosseguimento ao pensamento daquele no campo das preocupações. Com isso nos referimos às discussões teóricas sobre o direito chamando atenção para uma perspectiva realista sobre o jurídico quando atentam para queos juristas percebam a “necessidade de se alhearem dos tradicionais exercícios conceituais e de se meterem dentro das exigências e realidades da vida”. E já em Holmes tem-se uma discussão sobre ideologia da magistratura, mesmo que ele não a expresse nesses termos exatos, quando diz:
A vida do direito não tem sido lógica mas sim, experiência. As necessidades sentidas na época, a moral e as teorias políticas predominantes, as intenções da política pública confessadas ou inconscientes, e até os preconceitos que os juízes compartilham com os seus concidadãos têm tido muito mais influência do que o silogismo so determinar as regras pelas quais os homens devem ser governados.
A lição de Holmes, de que o direito é, sobretudo, experiência e não lógica pura, ou a tese de Ortega Y Gasset, de que a lógica do direito é a lógica do razoável, de certa forma guardam a essência do método sociológico – também conhecida como a Escola Sociológica do Direito de Benjamin Cardozo e Roscoe Pound. O pensamento compartilhado aí era no sentido de que o elemento político-social deve interferir na interpretação da lei, com vistas À satisfação do interesse público e dos superiores interesses da coletividade.
José Eisenber (EISERBERG, 2006/01) pontuando que, em verdade, o pragmatismo jurídico não se estrutura como uma corrente destinada a assentar a natureza, a fonte do Direito ou a proporcionar uma explicação exaustiva para o fenômeno jurídico, isto é, não se constitui em uma Teoria do Direito, mas sim, em método de argumentativo justificador da tomada de decisão. Afirma o articulista que:
O pragmatismo jurídico não é uma Teoria do Direito. Aliás, nenhum de seus autores se propôs a elaborar uma. Nem Roscoe Pound, nem Oliver Holmes, nem Benjamin Cardozo elaboraram uma no início do século vinte, nem busca fazê-lo hoje seu principal expoente no mundo contemporâneo, Richard Posner. O pragmatismo jurídico consiste apenas de um método de argumentação que pode (ou não) ser adotado por operadores do direito no exercício de suas funções. Este método prescreve que (a) se analise o contexto de normas gerais e precedentes válidos que iluminam o contexto do caso particular, (b) se defina com clareza as conseqüências desejadas pela comunidade política para a ação engendrada, e (c) que princípios jurídicos, éticos ou morais, venham a ser mobilizados como simples instrumentos heurísticos no processo de fazer um juízo.
Percebe-se, então, que o Pragmatismo Jurídico se vale, enquanto técnica de decisão, de metodologia comparativo-consequencialista. Dito método implica em que se proceda ao cotejo entre as possíveis hipóteses de solução de um caso específico e os seus respectivos desdobramentos, as suas consequências de ordem prática no contexto social. Disto decorre que, em razão dos possíveis efeitos da decisão, o operador deverá buscar em outras fontes do conhecimento, que não só o jurídico, os parâmetros e fundamentos para sua decisão.
Sobre o tema, relevante é citar a orientação de Roberta Maia (MAIA, 2008/10):
Por tudo, o que hoje podemos entender como Pragmatismo Jurídico é que esta forma de pensamento apresenta um teor essencialmente prático: volta-se para o futuro, analisa as necessidades humanas presentes e futuras, e é avesso a princípios fechados, característicos do racionalismo. O juiz pragmatista, ao seguir estes passos, tem como objetivo primordial a escolha da melhor decisão30. Mas, para aferição de tal caráter satisfativo, o juiz pragmatista pode se valer de sua própria experiência como jurista, de recursos jurídicos e não-jurídicos, de diversas teorias e até mesmo de decisões anteriores. Contudo, é de suma importância destacar que essas fontes somente serão utilizadas quando úteis à obtenção da melhor decisão.
(......)
Em seu artigo Legal Scholarship Today, Posner sustenta que a condição indispensável para o crescimento da interdisciplinaridade na área jurídica foi a evolução de outras disciplinas, como a economia e a teoria política, enquanto meios potenciais de melhor compreender e aperfeiçoar o Direito.
Esta concepção voltada aos resultados, com considerável desapego a marcos iniciais rígidos que, obrigatoriamente, devessem orientar e direcionar o curso da argumentação e da fundamentação da decisão, mas sim que proporcione a mais adequada solução para o caso examinado, demonstra estar em perfeita sintonia com o modelo sob o qual se travam as relações sociais na sociedade norte-americana[3] e que, por conseguinte, resta por influenciar o seu pensar jurídico.
Dissertando sobre o tema, Roland Sèroussi assevera que (SÈROUSSI, 2001/109)
Em oposição flagrante com a Inglaterra, o direito jurisprudencial, tão essencial aos Estados da common law, não tem o mesmo rigor nem o mesmo vigor de aplicação nos Estados Unidos.
O alcance das decisões da justiça é, muito evidentemente, grandíssimo. A Autoridade da coisa julgada – res jurídica – impede qualquer ação posterior que repouse na mesma base jurídica.
Essa fonte maior de direito não é todavia erigida como regra absoluta. A decisão de jurisprudência exprime, com certeza, o direito e vincula, em princípio, pelo valor do princípio decorrente, as jurisdições posteriores de fundamento similar.
Mas visto que o objetivo da estrutura federal de “ajustar-se” às necessidades econômicas e sociais de uma sociedade em mutação permanente continua sendo buscado, induz-se a noção da idéia – amplamente seguida – de que o precedente (precedent) deve ser analisado com sutilieza, de forma não dogmática.
A aceleração histórico-social dos Estados Unidos – uma moda evolui, um hábito de consumo muda, em comportamento se abranda...- deve ser levada em conta pelos juízes que fazem a justiça em nome de uma sociedade dada, e não da do século XIX.
Disto decorre que a regra do stare decisis (isto é, do respeito aos precedentes), proveniente da common law, é suscetível de mudança.
Analisando as diferenças existentes entre “o realizar o Direito” procedido pelos órgãos jurisdicionais Continentais e pelos da commom law, Antoine Garapon afirma que (GARAPON, 2008/173):
O juiz da commom law não é a caixa de ressonância da lei; sua palavra é mais o diapasão ao qual se submetem os advogados e toda a comunidade de profissionais do direito. Em lugar de uma concepção hierarquizada do direito, na qual o juiz não penetra na pirâmide senão para tornar transparente a intenção do legislador, a commom law instaura uma comunidade de linguagem horizontal, a dos “pares” (peers), na qual as opiniões circulam e são constantemente postas à prova. Narração e agôn (competição pública de discurso): eis os traços específicos do julgamento em commom law.
Não reclama maiores digressões a assertiva no sentido de que, há muito, o Direito Continental superou a antiga concepção do juiz como ente inanimado ou a “boca da lei”, assim como vem se afastando da orientação dogmática que buscava identificar o Direito, exclusivamente, com a Lei, passando ao reconhecimento de uma Ordem Jurídica Translegal revelada pelo poder normativo e juridicamente criador levado a efeito pela Jurisdição[4]. Entretanto, é de se destacar a observação precisa de Carlos Britto (BRITTO, 2006/214-5), para quem:
Há duas correntes jurídicas em permanente oposição quanto do intérprete do Direito. Uma, proclamando que a interpretação deve ser rigorosamente objetiva, pois o que interessa não é o requerer subjetivo do intérprete, mas a vontade objetiva da norma (engastada em um determinado dispositivo). Outra, bem ao contrário, afirmando que a vontade ou o querer subjetivo do intérprete (condicionamentos psíquicos e sócio-culturais) é ineliminável do processo interpretativo. Do que resulta ser a norma jurídica o resultado de sua interpretação. Não um a priori, portanto, mas um a posteriori.
Com a proficiência habitual, arremata o professor, aduzindo que (BRITTO. 2006/215):
A solução parece estar no meio. A norma a desentranhar dos signos lingüísticos (dispositivos) é tanto um a priori quanto um a posteriori. Implica uma descoberta e uma construção, tudo ao mesmo tempo. Nem exclusiva objetividade de um querer legislado que se impõe ao exegeta, nem exclusiva subjetividade de um exegeta que se impõe ao querer legislado.
Se o intérprete faz do seu exclusivo pensar a vontade objetiva da norma, transmuta-se em legislador. Personagem completamente autônomo no circuito da produção/aplicação do Direito. Se, ao revés, ele se anula totalmente perante os dispositivo interpretado, fechando todos os espaços de manifestação mental/consciencial do seu próprio ser individual e ao mesmo tempo social, ele se torna um personagem completamente autômato no referido circuito.
Destarte, influências de uma exegese integradora dos fatos e consequências sociais decorrentes da aplicação do Direito, e que orientem no sentido de que se tenha em conta toda a riqueza da produção social da coletividade quando do processo realização do Direito, ou seja, de uma concepção pragmática, pode ser observada em disposições normativas, bem como em manifestações jurisdicionais no Direito Brasileiro.
3. O PRAGMATISMO E O DIREITO BRASILEIRO.
A preocupação de contextualizar e de buscar a melhor produção de resultados decorrentes da interpretação da norma são diretrizes há muito fixadas pelo Ordenamento Jurídico Pátrio, como se observa dos termos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942 c/c a Lei nº 12.376/2010)
Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Sem deixar qualquer margem de dúvida, a norma em foco estabelece, como diretriz interpretativa, que o direito legislado seja submetido a uma filtragem, na qual deverão ser consideradas as implicações sociais e humanas da aplicação do texto normativo ao caso concreto, sempre tendo em vista as consequências desta subsunção – os fins sociais –, direcionando-a à obtenção do resultado mais benéfico para a sociedade, posto que outro não poderá ser o entendimento do conteúdo da expressão “exigências do bem comum”.
No mesmo sentido, em obra cuja primeira edição remonta à primeira metade do século passado, Carlos Maximiliano (MAXIMILIANO. 1984/157-165) já advogava no sentido de que a interpretação deveria observar os fatores sociais e os resultados decorrentes da interpretação. Confira-se:
Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica; e esta não há de corresponder imutavelmente às regras formuladas pelos legisladores. Se as normas positivas se não alteram à proporção que evolve a coletividade, consciente ou inconscientemente a magistratura adapta o texto preciso Às condições emergentes e imprevistas. A jurisprudência constitui, ela própria, um fator do procedo de desenvolvimento geral; por isso a Hermenêutica se não pode furtar à influência do meio no sentido estrito e na acepção lata; atende às consequências de determinada exegese: quanto possível a evita, se vai causar dano, econômico ou moral à comunidade.
(......)
Preocupa-se a Hermenêutica, sobretudo depois que entraram em função de exegeses os dados da Sociologia, com o resultado provável de cada interpretação. Toma-o em alto apreço; orienta-se por ele; varia tendo-o em mira, quando o texto admite mais de um modo de o entender e aplicar. Quanto possível, evita um conseqüência incompatível com o bem geral; adapta o dispositivo Às idéias vitoriosas entre o povo em cujo seio vigem as expressões de Direito sujeitas a exame.
Ainda que se infira da douta lição um certo balizamento da interpretação às possibilidades extraíveis do direito legislado[5], não se pode deixar de afiançar a presença de uma concepção não totalmente subordinada a um querer normativo perene e imutável, por vezes em descompasso com o momento histórico em que reclamada a regulação de determinado conflito social por parte da referido Texto Legal.
Esta interpretação voltada a atender interesses sociais, observadas as potencialidades do direito legislado, pode ser observada na evolução da interpretação jurisprudencial da Suprema Corte. Cite-se, por exemplo, o entendimento quanto à partilha de bens entre concubinos. Já em 1946, o Tribunal buscava proteger os interesses dos concubinos valendo-se de elementos existentes no ordenamento jurídico então vigente, como se observa:
Sociedade de fato, comunhão de bens entre concubinos. Comunhão convencional e sociedade. Recurso Extraordinário e inocorrência de ofensa à letra de lei. (Supremo Tribunal Federal, Segunda Turma, Recurso extraordinário nº 9.855, relator Ministro Orozimbo Nonato, julgado em 16/04/1946).
A exegese levada a efeito veio a se consolidar, quase duas décadas depois, quando editada a súmula nº 380:
Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum. (Sessão Plenária de 03/04/1964)
A realidade social reclamava uma solução para as relações patrimoniais decorrentes da relação concubinária e, ausente norma legal específica, a Jurisprudência buscou interpretação que permitisse a proteção da plêiade de interesses envolvidos, mesmo que se valendo de disciplina legal não elaborada para reger tais relações.
Mais recentemente, pode ser observada a edição de norma, especificamente direcionada a aplicação do direito[6], por seu mais autorizado intérprete, voltada a ajustar as consequências e efeitos da exegese aos interesses sociais, como se pode observar da Lei nº 9.886/1999:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
A modulação dos efeitos temporais da decisão proferida em sede de controle concentrado[7] é, sem dúvida, uma aplicação da característica do consequencialismo de que se reveste o pragmatismo, posto que, como alertam Ives Gandra e Gilmar Mendes (MARTINS, 2001/324) a autorização legislativa permite atender as situações em que a declaração de nulidade da norma conflitante com a Carta Magna se afigure inadequada “ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional”. É dizer, os resultados práticos do reconhecimento da inconstitucionalidade não podem ser desprezados pela Corte Constitucional, a qual deve buscar a solução que melhor permita atingir os desideratos constitucionais, ou, em suma, os anseios sociais nela plasmados.
Algumas outras normas legais, especificamente voltadas ao atuar jurisdicional, viabilizam ao julgador aferir aspectos não exclusivamente jurídicos para tomada de decisão. Exemplificativamente, vejam-se as disposições da Lei nº 11.418/2006 que, incluindo dispositivo no Código de Processo Civil, disciplinou o exame da repercussão geral, estabelecendo que:
Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. § 1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. (g.n.).
Questões metajurídicas (de ordem econômica, política ou social), porém indissociáveis da vida em sociedade, autorizam que a Suprema Corte promova o exame de demanda que lhe tenha sido dirigida, podendo, dela não conhecer se entender por irrelevantes as eventuais repercussões da decisão recorrida. Também sob o prisma decisional, a Lei nº 8.437/1992 autoriza ao Presidente do respectivo Tribunal decretar a suspensão de tutelas de urgência concedidas em face do Poder Público, não apenas por motivos de ordem jurídica, mas por questões de relevante interesse coletivo. Esta é a disposição em comento:
Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
Impende ressaltar que, sobre a amplitude e objeto das questões veiculadas por intermédio do instrumento processual em testilha, já se afirmou que:
A suspensão de liminar, decisão de cunho político, deve cingir-se à observância de lesão aos valores tutelados pela norma de regência, quais sejam, ordem, saúde, segurança e economia públicas. De lesão à ordem jurídica não se há falar na excepcional via da suspensão de liminar ou de segurança, cujo resguardo se acha assegurado na via recursal própria (Suspensões de Segurança nº 909, 917 e 924). (Superior Tribunal de Justiça, Agravo Regimental na Suspensão Liminar de Segurança nº. 170/DF, Corte Especial, Relator Ministro Edson Vidigal, publicado no Diário de Justiça de 10/04/2006).
Assim, percebe-se que o instrumento jurídico-processual em foco presta-se mais a permitir o exame dos reflexos sobre a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas do que os aspectos meramente jurídicos da lide sob exame.
Pode, ainda, ser indicada como relevante, decisão de elevada projeção social, na qual a Corte Suprema, apreciando os reflexos para a manutenção do mercado do trabalho da mulher em face da nova configuração do benefício do salário maternidade estatuída pela Emenda Constitucional nº 20/98, valeu-se de argumentos contextuais e consequenciais para afastar a aplicabilidade da recém promulgada alteração constitucional. Observe-se, no ponto específico, a ementa do aresto:
DIREITO CONSTITUCIONAL, PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. LICENÇA-GESTANTE. SALÁRIO. LIMITAÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 14 DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15.12.1998, E DO ART. 6º DA PORTARIA Nº 4.883 , DE 16.12.1998, BAIXADA A 16.12.1998, PELO MINISTRO DE ESTADO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 3º, IV, 5º, I , 7º, XVIII, E 60, § 4º, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR. 1. (......) 8. O legislador brasileiro, a partir de 1932 e mais claramente desde 1974, vem tratando o problema da proteção à gestante, cada vez menos como um encargo trabalhista (do empregador) e cada vez mais como de natureza previdenciária. Essa orientação foi mantida mesmo após a Constituição de 05/10/1988, cujo art. 6º determina: a proteção à maternidade deve ser realizada "na forma desta Constituição", ou seja, nos termos previstos em seu art. 7º, XVIII: "licença à gestante, sem prejuízo do empregado e do salário, com a duração de cento e vinte dias". 9. Diante desse quadro histórico, não é de se presumir que o legislador constituinte derivado, na Emenda 20/98, mais precisamente em seu art. 14, haja pretendido a revogação, ainda que implícita, do art. 7º, XVIII, da Constituição Federal origin ária. Se esse tivesse sido o objetivo da norma constitucional derivada, por certo a E. C. nº 20/98 conteria referência expressa a respeito. E, à falta de norma constitucional derivada, revogadora do art. 7º, XVIII, a pura e simples aplicação do art. 14 da E.C. 20/98, de modo a torná-la insubsistente, implicará um retrocesso histórico, em matéria social-previdenciária, que não se pode presumi desejado. 10. E, na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá apenas por R$1.200,00 (hum mil e duzentos reais) por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira, facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. Estará, então, propiciada a discriminação que a Constituição buscou combater, quando proibiu diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (art. 7º, inc. XXX, da C.F./88), proibição, que, em substância, é um desdobramento do princípio da igualdade de direitos, entre homens e mulheres, previsto no inciso I do art. 5º da Constituição Federal. Estará, ainda, conclamado o empregador a oferecer à mulher trabalhadora, quaisquer que sejam suas aptidões, salário nunca superior a R$1.200,00, para não ter de responder pela diferença. Não é crível que o constituinte derivado, de 1998, tenha chegado a esse ponto na chamada Reforma da Previdência Social, desatento a tais conseqüências. Ao menos não é de se presumir que o tenha feito, sem o dizer expressamente, assumindo a grave responsabilidade. 11. (......) (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1946 Medida Cautelar, Tribunal Pleno, Relator Ministro Sydney Sanches, Publicada no Diário de Justiça de 14-09-2001)
Assegurar a disponibilidade e a permanência de postos de trabalho acessíveis pelas mulheres foi, de certo modo, o fundamento para reconhecer a inconstitucionalidade (a inadequação social) da norma examinada.
Em outra importante decisão, o Colendo Superior Tribunal de Justiça se valeu, ainda que não exclusivamente, de argumento de natureza econômica para assegurar a observância de regra contratual que, na ótica do Governo Federal, se demonstrava inválida em virtude da mudança de conjuntura decorrente da valorização excepcional da moeda norte-americana, cuja flutuação influenciava sensivelmente índice de correção monetária adotado como indexador em contrato de Concessão de Serviço Público Federal. Eis a ementa do aresto:
AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE LIMINAR. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LESÃO À ORDEM PÚBLICA E ECONÔMICA CONFIGURADA. INSEGURANÇA JURÍDICA E RISCO BRASIL AGRAVADO.
1. No âmbito especial da suspensão liminar, cujos limites cognitivos prendem-se à verificação das hipóteses expressas na Lei nº 8.437/92, art. 4º, descabem alegações relativas às questões de fundo.
2. Caracterizado o risco inverso, refletido no cenário de insegurança jurídica que pode se instalar com a manutenção da liminar, que, em princípio, admite a quebra do equilíbrio dos contratos firmados com o Poder Público, lesando a ordem pública administrativa e econômica e agravando o risco Brasil, defere-se o pedido de suspensão.
3. Agravo regimental provido. (AgRg na SL . 57/DF, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/07/2004, DJ 06/09/2004, p. 152)
No voto condutor, assim se pronunciou o Ministro-Relator:
Isto porque, em um primeiro e superficial exame, próprio dessa fase procedimental, vejo caracterizado o risco inverso, refletido no cenário de insegurança jurídica que se instala, na medida em que a manutenção da liminar, que, em princípio, admite a quebra do equilíbrio dos contratos e despreza os vultosos investimentos feitos, pode sim causar perplexidade nos investidores, afastando-os, caos no sistema tarifário, a par de expor o país aumentando o risco Brasil e prejudicando o usuário que se buscou proteger, lesando a ordem pública administrativa.
Considerações de ordem não exclusivamente jurídicas são ressaltadas em precedente da Corte Suprema citado por Roberta Maia (MAIA, 2008/13)
Por fim, comentaremos o Mandado de Segurança n. 24.405 – 4/DF. O mandado foi impetrado por administrador público, vítima de denúncia ao Tribunal de Contas da União, contra ato do presidente do referido tribunal que havia negado o pedido de fornecimento de identificação completa do denunciante, por força do § 1º do art. 55 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União nº 8.443. Segundo tal dispositivo, mesmo após decisão definitiva sobre a matéria, caberia ao Tribunal “manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia”. Neste julgado, por maioria, o Supremo Tribunal Federal deferiu a segurança e declarou a inconstitucionalidade incidenter tantum da expressão constante do § 1º do art. 55 da lei 8.443.
O cerne da questão levantado pelo relator Ministro Carlos Velloso, é o seguinte: “seria condizente com a Constituição a norma que autoriza o TCU a manter o sigilo em relação ao nome da pessoa que, perante aquela Corte de Contas, faz denúncia contra administradores públicos, da prática de irregularidades por partes destes?”.
(......)
Em seu voto, o Ministro Carlos Velloso sustenta que, uma vez protegido o denunciante pelo sigilo, poderia surgir o fenômeno do “denuncismo irresponsável”. Note-se aí a antecipação de uma conseqüência provável, caso persistisse a prerrogativa do Tribunal de manter ou não o sigilo sobre a identidade do denunciante.
O Ministro Gilmar Mendes segue o voto do Relator, contudo aponta para o fato de que a publicidade da identificação do denunciante pode gerar um fenômeno de denúncias anônimas. O Ministro se insere no âmbito daqueles que, morando em Brasília e estando familiarizados com a Administração Pública, podem comentar uma prática abusiva conhecida nesse contexto. Segundo ele, “algumas denúncias anônimas chegam a determinados órgãos ou agente públicos; eles repassam essa informação para a imprensa (...), às vezes estão afiliados ou prestam “serviços espirituais” a determinados partidos políticos, operando como “longa manus” destes, e depois instauram procedimentos administrativos de investigação.”
O Ministro Nelson Jobim também antecipa uma possível onda de denúncias anônimas, afirmando que os ministros não podem ser ingênuos e devem trabalhar com as decisões a partir de seus conteúdos e de suas conseqüências.
Note-se que há uma evidente antecipação de resultado ("grande caminho de denúncias anônimas") pautada na experiência de profissão ("Quem conhece Brasília sabe bem disso, e também quem já esteve na Administração Pública conhece bem esses detalhes", "nós que militamos na Administração Pública" etc.).
Entendemos, por fim, que a preocupação com um eventual denuncismo, que culminou na declaração de inconstitucionalidade da expressão “manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia”, denota a visão sistemática do julgador pragmatista. A atenção ao impacto das decisões na sociedade – o que Posner chama de systemic consequences – é comentada por Butler ao trabalhar a natureza instrumental do Direito. Segundo o autor, os instrumentalistas investigam os efeitos que a decisão pode gerar a terceiros, a forma como o Direito reflete no cotidiano. Nesse sentido, cumpre mencionar que a expressão foi suspensa em definitivo através da resolução nº16 do Senado Federal em 2006.
Destarte, constata-se que a racionalidade que orienta a visão pragmatista é vetor utilizado, de forma pré-concebida ou não, pelos Tribunais Pátrios, os quais, em muito, assim o fazem alicerçados no espectro de liberdade conformadora-concretizadora que o direito positivo resta por deferir, em certa medida, aos órgãos jurisdicionais.