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Apesar de o CDC não impor expressamente a negociação em real para todas as relações de consumo, alguns juristas consideram que o dever de se ofertar o valor em moeda local advém do dever de informar. E essa discussão é o objeto de estudo do texto a seguir.

Os aplicativos da App Store, disponível nos celulares iPhone, da Apple, são negociados em dólar. Há controvérsia sobre se a oferta poderia ser feita em moeda americana. O caso é aparentemente de fácil solução. Se o contrato é proposto nos Estados Unidos e aceito no Brasil, a lei que rege as obrigações do contrato é a do lugar onde reside o proponente. A regra de conexão está prevista em comando expresso da Lei de Introdução ao Código Civil (art. 9º). Por outro lado, há quem considere o Código de Defesa do Consumidor lei de Ordem Pública (Lois de Police). Essas leis de polícia são consideradas essenciais para o Estado, por protegerem algum interesse fundamental ou situações peculiares, de caráter protetivo. Essas normas afastariam a aplicação do direito estrangeiro em qualquer hipótese. Segundo Savigny, essas normas são: “[...]leis de natureza rigorosamente positiva, coativa, que não admitem por isso mesmo essa liberdade de apreciação que não condiz com os limites de Estados diversos”[1]

Não há critério de direito positivo para distinguir quais são as Leis de Polícia, que impedem a aplicação de regra de conexão no Direito Internacional Privado. Savigny[2] afirma que Leis de Polícia não se confundem com normas imperativas, aquelas que não podem ter sua aplicação afastada pela vontade dos particulares. Para o autor, há normas imperativas que não apresentam o condão público de afastar o direito estrangeiro, pois não são consideradas tão essenciais para o Estado, ainda que não possam ser modificadas pelas partes. Segundo o autor[3], as normas imperativas foram expedidas para garantir o exercício dos direitos, e não da coletividade. Cita exemplo das normas que limitam a capacidade pela idade. Com efeito, segundo a LICC, a norma que regula a capacidade é a do lugar do domicílio. Desse modo, o brasileiro, caso tenha domicílio no exterior, terá sua capacidade, para a prática de negócios, regulada pelo Direito Estrangeiro. Pouco importa que a capacidade seja regulada por norma imperativa no Brasil.

De todo modo, as normas de ordem pública são exceções no Direito Internacional Privado. Segundo afirma Dolinger[4], a ampliação do rol de matérias essenciais prejudicaria as relações internacionais. Há no encontro e na ampliação das Leis de Polícia critérios nacionalistas, particularistas, que vão de encontro à filosofia universalista do Direito Internacional Privado. Portanto, defende Dolinger que, em casos extremos, o afastamento do direito estrangeiro, pela aplicação de normas de polícia, dependerá de análise casuística do Juiz.   

Nesse sentido, não há como defender a aplicação em bloco do CDC como Lei de Polícia. Por exemplo, em caso de vício no produto, o CDC obriga o fornecedor a reparar o defeito em trinta dias. Como aplicar essa regra para o comércio internacional? Nesse prazo mal cabe o tempo de envio e remessa da mercadoria. No caso de importação de um Lada (fabricante russo), o Tribunal de Justiça do Paraná considerou não aplicável o dispositivo do CDC que estabelece prazo de trinta dias para o conserto em face das peculiaridades do negócio.[5] A solução, embora não tenha se baseado na ausência de Lei de Polícia no dispositivo que regula o prazo para sanar o defeito, desprezou a aplicação do CDC numa relação de consumo internacional. Essa tendência, no entanto, não é seguida pelo Superior Tribunal de Justiça e os outros tribunais, que consideram o CDC, de cabo a rabo, norma de ordem pública[6].  

Já a tendência, no Direito Internacional Privado, é evitar a aplicação imediata e em bloco do CDC. Há casos em que a norma prevista no Direito Estrangeiro pode ser inclusive mais benéfica ao consumidor. Como afirmou Verhagen, sobre dispositivo expresso da Lei Suíça sobre Direito Internacional Privado: “[...] na ausência de uma regra de conflito especial, é frequentemente necessário para a norma especial protetiva da ‘lex fori’ recuar, se o interesse atrás da regra é igualmente regulado pelo direito normalmente aplicável”[7].

Por outro lado, a aplicação inteiriça do CDC, sem levar em conta a necessidade efetiva de proteção do consumidor, poderia gerar prejuízos aos consumidores posteriormente. Impor à Apple que cote em tempo real os preços dos serviços impõe profissionais especializados para fazer esse tipo de oferta ou ao menos para desenvolvê-la. O encarecimento do processo de produção do serviço eletrônico seria fatalmente repassado aos consumidores. Além disso, a Apple permite o pagamento por meio de cartão de crédito internacional. O pagamento futuro só é viável se o débito na conta do cliente for feito pela cotação na data do desconto. Se o valor da oferta já deve ficar em moeda local, o serviço sairia mais barato para o brasileiro do que para o americano. Por quanto tempo a Apple iria aceitar essas condições para exercer o negócio?

Não custa lembrar, ainda, que o Código de Defesa do Consumidor não impõe expressamente a negociação em real para todas as relações de consumo. O dever de ofertar o valor em moeda local advém, para os que consideram existir essa obrigação, do dever de informar (art. 31, do CDC), corolário do princípio da transparência nas relações de consumo (art. 4º, do CDC). Apenas os serviços de crédito ou que concedam financiamento ao consumidor estão expressamente obrigados a oferecer o produto/serviço em moeda local (art. 52, do CDC). 

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A possibilidade de estender essa obrigação de ofertar em real a todas as relações de consumo é dedutível do sistema de proteção ao consumo. Por outro lado, sua aplicação como Lei de Polícia, além de prejudicar a empresa desenvolvida pela Apple, protege consumidores que, sob o ponto de vista econômico, não requerem o mínimo de proteção. Quem tem celular de R$ 2.000,00 parece ter capacidade suficiente para distinguir dólar de real. Afinal, o dinheiro é o “curriculum vitae da civilização”, como brincou Macunaíma para explicar o fato de que as mulheres em São Paulo cobrariam para “brincar”.


Notas

[1] SAVIGNY, Friedrich Carl Von. Sistema de direito romano atual. Ijuí: Unijuí, 2004, v. VIII, p. 53.

[2] Idem, p. 54

[3] Idem, p. 56.

[4] DOLINGER, Jacob. A evolução da ordem pública no direito internacional privado. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 1979, p .256.

[5] TJPR. Apelação Cível 40.534. 23.08.1995.

[6] Cf., entre outros, Resp 63.981-SP. Rel. Min. Sálvio Figueiredo Teixeira. DJ 04.05.2000.

[7] VERHAGEN. The tension between party autonomy and European union law: some observations on Ingmar GB ltd v. Eaton Leonard Technologies Inc. International and Comparative Law Quaterly, p. 141.

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Sobre o autor
João Paulo Rodrigues de Castro

Defensor Público Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, João Paulo Rodrigues. Venda na iTunes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3225, 30 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21608. Acesso em: 19 abr. 2024.

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