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Breve análise sobre a incompatibilidade da atribuição de poderes instrutórios ao juiz com os princípios reitores do sistema acusatório

02/05/2012 às 11:19
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O sistema acusatório implica um modelo de gestão da prova, obtida sob contraditório judicial, expressão fulcral do devido processo legal, que veda ao juiz qualquer intuito ou pretensão de iniciativa probatória.

Este trabalho acadêmico tem o objetivo precípuo de fazer uma breve análise do artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº. 11.690, de 09 de junho de 2008, a qual, no ponto sob exame, reza que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

Nesta pesquisa, intentamos demonstrar que a regra veiculada no mencionado dispositivo codificado é incompatível com os princípios reitores do sistema acusatório.

Com efeito, se, no processo penal, a dúvida tem condão absolutório (in dubio pro reo), então, o juiz que adentra no terreno próprio dos contendores (acusação e defesa), determinando ex officio a busca da prova, é um juiz obcecado pela certeza, da qual, como dito, se prescinde para absolver.

Logo, tendo abdicado de sua condição de destinatário para ser um de seus agentes produtores, antecipadamente colhendo elementos probatórios (ainda que sob o pretexto, por exemplo, de temor da perda iminente de certa testemunha estrangeira, idosa e padecendo de doença incurável em estágio terminal, cuja oitiva entende indispensável e urgente, justo em virtude da periclitação da vida), o juiz estará se afastando de sua posição eminente de terceiro imparcial,equidistante das teses em litígio (acusação e defesa), contaminando assim a independência e higidez do futuro julgamento, já que, à evidência, o juiz julgará não mais aquilo que lhe foi trazido, mas o produto daquilo que ele mesmo determinou.

Na evolução histórica do processo penal, a rígida separação e delimitação do papel desempenhado pelos sujeitos processuais (acusador, defensor e julgador) significou um grande avanço civilizatório, no sentido da efetivação de um sistema acusativo constitucionalmente adequado.

Ocorre que o sistema acusatório, condizente com os ditames de um regime que se quer radicalmente democrático, e atendendo à exigência de respeito à dignidade da pessoa humana, valor-fonte de todo o direito, não se define simplesmente pela atribuição da função de acusar a um determinado sujeito (o Ministério Público, nos crimes que requerem ação penal pública, por exemplo), mas, sim e antes disso, o referido sistema acusatório implica um modelo de gestão da prova, obtida sob contraditório judicial, expressão fulcral do due process of law, que veda ao juiz qualquer intuito ou pretensão de iniciativa probatória, eis que esse juiz, a saber, o juiz do Estado democrático constitucional, aufere sua legitimidade política e jurídica fundamentando racional e livremente o entendimento esposado em suas decisões, bem como se mantendo no posto de “porteiro” do processo e tutor das garantias fundamentais que emanam do sobredito valor-fonte.

Neste diapasão, em abono a nossa linha de raciocínio, é o magistério de Lopes Junior:

(...), dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios (como o famigerado art. 156 do CPP) devem ser expurgados do ordenamento ou, ao menos, objeto de leitura restritiva e cautelosa, pois é patente a quebra da igualdade, do contraditório e da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminada está a principal garantia da jurisdição: a imparcialidade do julgador. O sistema acusatório exige um juiz espectador, e não um juiz ator (típico do modelo inquisitório).[1] (grifos no original)

Analisando o pensamento do jurista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, pontifica Lopes Junior na nota de rodapé nº. 43 do texto em comento:

Se a gestão da prova está nas mãos do juiz, como ocorre no nosso sistema, à luz do art. 156 (entre outros), estamos diante de um sistema inquisitório (juiz ator). Contudo, quando a gestão da prova está confiada às partes, está presente o núcleo fundante de um sistema acusatório (juiz expectador). Assim, ao contrário do afirmado por muitos, nosso sistema é inquisitório.[2]

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a partir de interessante jurisprudência internacional, editou um ato em que, consagrando a fórmula conforme a qual a liberdade é a regra, sendo exceção a prisão, ainda mais quando em caráter preventivo (cautelar), em beneplácito da instrumentalidade do processo penal, do princípio da presunção de inocência e do respeito devido por parte do Estado persecutor à dignidade do ser humano, fez consignar no parágrafo 41 do Informe nº. 86 de 2009:

Según los peticionarios la legislación procesal del Uruguay prevé un sistema inquisitivo y escrito en que el juez de instrucción también dicta la sentencia, siendo, por lo tanto, juez de sus propios actos. Es él quien enuncia las hipótesis de hecho y recoge pruebas que respalden sus aseveraciones. A diferencia de la gran mayoría de las modernas leyes procesales, el código no establece sistemas de control que brinden garantías; no existe un procedimiento de habeas corpus, y las leyes no se han armonizado con las pautas contenidas en tratados internacionales, como la Convención Americana, que Uruguay incorporó a su legislación interna sin reservas, por lo menos en esos aspectos.[3]

Daí que, com a devida vênia dos juristas que militam em sentido contrário, a determinação pelo juiz, ex officio, de produção antecipada de provas constitui uma excrescência autoritária e inquisitorial, incompossível de conviver no ambiente do sistema acusatório.

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Em sede de consideração final, entendemos que a pretensão punitiva da sociedade e do Estado já encontra sua satisfação em um ente suficientemente fortalecido e aparelhado para representá-la, naquelas ofensas mais gritantes contra bens jurídica e penalmente tutelados, mormente após o advento da Constituição Federal de 1988, qual seja, o Ministério Público.

Deveras lastimável que, com embasamento legal no artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, o juiz se perfile ao lado do gigante Golias, o Ministério Público, aqui no papel de acusador oficial de plantão, contra o pequeno e esquálido imputado Davi, réu que só poderá ser legitimamente condenado quando aquele gigante acusador espancar para além de qualquer dúvida razoável a presunção de inocência que favorece o acusado e que vê no juiz o guardião de sua regular observância.

Sendo assim, deixamos demonstrado, neste breve estudo, que o poder de determinar a produção antecipada de provas que entender necessárias, conferido ao juiz pelo artigo 156 do Código de Processo Penal (já no bojo da reforma levada a cabo em 2008), constitui, sim e indubitavelmente, exemplo inconteste de prática inerente ao sistema inquisitório remanescente do período autoritário, que insiste em se embrenhar pelas frestas do sistema acusatório adequado ao Estado democrático constitucional.


FONTES CONSULTADAS

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 07 mar. 2012, às 21h20.

LOPES JUNIOR, Aury. Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumentalidade Constitucional. Material da 2ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo Penal, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Universidade Anhanguera-Uniderp|REDE LFG.

Organização dos Estados Americanos – OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH. INFORME No. 86/09. CASO 12.553. FONDO. JORGE, JOSÉ Y DANTE PEIRANO BASSO. REPÚBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. 6 de agosto de 2009. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep/2009sp/Uruguay12553.sp.htm>. Acesso em: 07 mar. 2012, às 14h52.


NOTAS

[1]LOPES JUNIOR, Aury. Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumentalidade Constitucional. Material da 2ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo Penal, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – Universidade Anhanguera-Uniderp|REDE LFG, p. 12.

[2]Idem, ibidem.

[3]Organização dos Estados Americanos – OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH. INFORME No. 86/09. CASO 12.553. FONDO. JORGE, JOSÉ Y DANTE PEIRANO BASSO. REPÚBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. 6 de agosto de 2009. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep/2009sp/Uruguay12553.sp.htm>. Acesso em: 07 mar. 2012, às 14h52.

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Sobre o autor
Alécio Pereira de Souza

Advogado. Servidor público municipal. Atualmente, frequenta curso preparatório à carreira do Ministério Público, na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Pós-graduando em Ciências Penais, em nível de especialização, na Rede de Ensino LFG - Universidade Anhanguera/Uniderp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Alécio Pereira. Breve análise sobre a incompatibilidade da atribuição de poderes instrutórios ao juiz com os princípios reitores do sistema acusatório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3227, 2 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21654. Acesso em: 18 dez. 2024.

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