6. MUDANÇA DE POSICIONAMENTO
Para exercer a atividade comercial, o Estado – ente abstrato criado pela sociedade para geri-la – determinou diversas regras que devem ser obedecidas pelas empresas, sejam empresários individuais, sejam sociedades empresárias, regras essas que estão relacionadas em diversas leis esparsas nas três esferas de governo, justamente por ser de interesse de todos os entes federados o preenchimento de vários requisitos que possam garantir a idoneidade da atividade empresarial, por ser tal atividade a principal fonte de receita derivada estatal, qual seja, os tributos.
Entretanto, várias empresas descumprem obrigações acessórias, obrigações essas que garantem o controle do Estado no tocante ao tributo cujo fato imponível tenha ocorrido ou venha a ocorrer (a depender se o tributo é devido por meio da substituição ou antecipação tributária), procurando combater a sonegação, fato esse que acarreta sanções pelos governos que são comumente anuladas pelo Poder Judiciário, com base nas argumentações citadas anteriormente.
Ao observarmos o posicionamento majoritário do Judiciário acerca da apreensão de mercadorias, entendendo que seja arbitrariedade por parte do Estado, e aplicando diretamente a Súmula 323 do STF, é necessário apresentar outros aspectos que tais decisões atacam direta ou indiretamente.
6.1. Legalidade Tributária
Demonstrada nas limitações ao Poder de Tributar do Estado, informa que somente pode ser exigido ou majorado tributo por meio de lei, existindo também as exceções à legalidade estrita citadas anteriormente.
Os artigos 96 e seguintes do Código Tributário Nacional preveem como normas complementares, dentre outros, os Decretos expedidos pela esfera competente (chefes do Executivo) e os Convênios celebrados entre os entes Federados (artigo 100), dando caráter de aplicabilidade em todo o território definido na legislação.
As obrigações acessórias não estão nas competências elencadas para a lei em sentido estrito[27], cabendo aos decretos e convênios a regulamentação destas obrigações para fiel cumprimento da lei, como informar dados e operações regulares ao fisco e garantir o controle por parte do Estado.
O convênio se materializa na legislação estadual por meio de decretos e leis estaduais, previstos na constituição federal nos artigos 59, e 84 (no âmbito federal), quando se autoriza o chefe do executivo a expedir decretos para executar as leis.
Desta feita, observa-se que a exigência de cumprimento de obrigações acessórias não padece de legalidade tributária por geralmente se materializar por meio de convênios, decretos.
6.2. Princípio da Isonomia Tributária
Tratado anteriormente nas Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, entende-se que o tratamento dado a um contribuinte deve ser dado a outro, desde que estejam no mesmo nível de capacidade contributiva e ramo empresarial, regido por uma mesma legislação comum.
Em diversas legislações estaduais, existe a previsão de obrigatoriedade de recolhimento antecipado do ICMS em determinadas situações, como destinatário com débito na conta corrente fiscal ingressando no estado de destino, operação de circulação de mercadorias objetivando venda quando o possuidor não é contribuinte inscrito no Estado[28], segmentos econômicos que demandam critérios mais rígidos, dada a insegurança em arrecadação posterior ou valor elevado, como segmento de combustíveis e descumprimento de demais obrigações acessórias (falta de emissão de nota fiscal, destinatário da mercadoria diverso do citado no documento)[29].
O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços não relacionados na competência dos Municípios, previsto pelo Art. 155, II da Carta Maior) possui particularidades quanto à legislação e importância perante os Estados. De competência originária dos Estados, mas de caráter nacional, o ICMS é legislado tanto pela esfera Federal (definição de alíquota mínima e máxima nas operações internas e alíquotas interestaduais e normas gerais sobre o imposto) quanto pelos Estados, seja por meio de leis e decretos ou por meio de Convênios entre os Estados e a União, normatizando obrigações mínimas dos contribuintes para o controle efetivo nas empresas.
Ressalta-se que a própria falta de recolhimento antecipado do ICMS quando determinada pela legislação estadual enseja em descumprimento de obrigação tributária principal (recolhimento).
Importante citarmos decisão do Reexame Necessário 16473/2010 proferida pela Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, o qual transcrevemos abaixo:
“REEXAME NECESSÁRIO DE SENTENÇA - APREENSÃO DE MERCADORIAS PELO FISCO ESTADUAL - LEGALIDADE (§ 5º, ART. 150, CE) - NÃO COMPROVAÇÃO PELO CONTRIBUINTE DO RECOLHIMENTO DO ICMS GARANTIDO - IMPOSTO DEVIDO - PROTEÇÃO CONTRA CONCORRÊNCIA DESLEAL E EFICÁCIA DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA (ART. 150, II, CF/88) - DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO CONFIGURADO - SENTENÇA RETIFICADA. Não configura arbitrariedade a apreensão de mercadoria pelo Fisco quando o contribuinte não comprova o recolhimento do ICMS Garantido devido por lei, porquanto constitui o ato infração material de caráter permanente prevista no § 5º do artigo 150 da Constituição Estadual, inserido pela Emenda Constitucional nº 55 de 05-03-2009. Ademais, visa a medida/retenção garantir a leal concorrência entre os comerciantes bem como a eficácia do princípio da isonomia tributária previsto no artigo 150, II, da CF.”
Abaixo, parte do voto da Desembargadora Revisora Marilsen Andrade Addario:
“A meu viso, o que a Súmula nº 323 do STF não admite é a apreensão de mercadorias como meio coercitivo de pagamento de tributos. No caso em tela, extrai-se do Termo de Apreensão e Depósito de fl.21, que a infração fiscal que ensejou a apreensão das mercadorias da impetrante foi a ofensa aos artigos 1º, 9-A E 9-B da Resolução nº 029/99-CGSIAT, ou seja, ausência de comprovação do recolhimento do ICMS Garantido - circunstância que consuma infração material à legislação tributária. Logo, não se trata de apreensão como meio coercitivo para cobrança de tributo como alegou a impetrante. (...) Note-se que não há adequação entre as recomendações do E. STF (Súmulas nºs 547 e 323) e a apreensão do caso sub judice, já que a finalidade da retenção não é de coagir o contribuinte ao pagamento do tributo devido, mas constitui providência destinada a fazer cessar a infração de caráter permanente, qual seja: a circulação de mercadoria no território estadual sem o recolhimento antecipado de ICMS imposto por lei.”[30]
O Convênio SINIEF (Sistema Nacional Integrado de Informações Econômico-Fiscais) s/nº de 15/12/1970 – por exemplo – rege as normas básicas de controle das empresas pelos estados, como obrigar as empresas a se inscreverem no Cadastro de Contribuintes, emitirem documentos fiscais antes da saída das mercadorias (regra geral), relatar valores corretos da operação.
Não pode o Estado – e os poderes que o compõem – dar tratamento desigual aos contribuintes e equiparados. Grande parte destes tem que cumprir todas as obrigações àqueles impostas em detrimento de outros que, independentemente da intenção do sujeito passivo, descumprem obrigações principal (recolhimento de tributo) e acessória (emissão de documentação fiscal que relate a real operação, transcrever o real valor da operação) ensejando em infração[31] ou ilícito tributário.
Segue decisão proferida em Reexame Necessário no Tribunal de Justiça da Bahia, desobedecendo veementemente legislação em vigor, citando ao fim trechos da sentença da primeira instância:
“TRIBUTÁRIO. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO VOLUNTÁRIO. APREENSÃO DE MERCADORIAS COMO MEIO COERCITIVO AO PAGAMENTO DE TRIBUTO. A FAZENDA PÚBLICA TEM O DIREITO-DEVER DE EXERCER FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA, DESDE QUE O FAÇA DENTRO DOS LIMITES DA LEGALIDADE, SEM EXCESSOS, SENDO-LHE VEDADO RETER BENS, MERCADORIAS OU DOCUMENTOS, ALÉM DO TEMPO NECESSÁRIO À DOCUMENTAÇÃO E FORMALIZAÇÃO DE POSSÍVEL INFRAÇÃO DE NATUREZA FISCAL. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. IMPROVIMENTO DE AMBOS OS RECURSOS. SENTENÇA CONFIRMADA. (...) Prossegue, afirmando que a Administração Pública estava exercendo sua função fiscalizatória, verificando o trânsito de mercadorias, visando detectar irregularidades, conforme estabelecido na lei, pois a Impetrante estava com a inscrição estadual cancelada, sendo de se considerar inidônea qualquer mercadoria por ela transportada.” (...) ‘A autoridade indigitada coatora não provou que a Impetrante tinha conhecimento de que estava em situação irregular; o que presume-se a boa-fé da Impetrante ao adquirir as mercadorias.’ (grifos nossos) ‘Ao manter as mercadorias apreendidas configura-se o abuso de autoridade; e a lei não tolera a retenção abusiva de mercadorias,’” (BA 8.497-4/1999)[32]
Alega-se ofensa ao princípio da legalidade. Todavia, como já fora abordado anteriormente, a obrigação de ter inscrição estadual ativa fora acordada por convênio SINIEF, que é norma complementar da lei, não existindo a possibilidade de afronta à legalidade.
Mesmo a obrigatoriedade de uma empresa ter inscrição estadual ativa como requisito para ingressar na atividade empresarial prevista em convênio e lei, a decisão do judiciário vai de encontro ao preceituado na legislação tributária, afirmando – ainda – que a atividade da autoridade dita como coatora afronta o princípio da legalidade, chocando-se com a Isonomia Tributária. Empresas em mesma situação agem de acordo com a lei em seu sentido amplo enquanto outras são acobertadas em decisões não amparadas na legislação interpretada sistematicamente, olvidando – inclusive – de aplicar o artigo 136 do Código Tributário Nacional, determinando que existe a infração independentemente da intenção do agente e da extensão do dano.
6.3. Conivência em Relação ao Ilícito
A aplicabilidade da Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal de forma indiscriminada pelo Poder Judiciário traz à tona uma dúvida sobre a eficácia do artigo 103-A da Carta Maior, artigo esse que institui a súmula vinculante e torna obrigatória a aplicação do entendimento tomado em reiteradas decisões, aprovado por dois terços do STF.
Mesmo não sendo aprovada como súmula vinculante, a Súmula 323 é utilizada pelo Judiciário como justificativa para toda e qualquer análise de mercadorias apreendidas pelo Estado, ordenando que o ente público libere trânsito das mercadorias para posteriormente ser discutido o mérito da ação do Estado.
Considerando a morosidade para proferir sentença sobre o mérito das ações judiciais, e utilizando a Súmula 323 sem analisar todos os fatores que geraram a apreensão, o Judiciário acaba por auxiliar na prática de pequenos e médios ilícitos tributários dos contribuintes inidôneos no momento em que profere decisões interlocutórias[33] favorecendo o particular em detrimento do Poder Público, alegando que o último possui meios de reaver os valores supostamente devidos. Tal ação acaba se tornando em uma ferramenta para usar os valores muitas vezes devido ao Estado em transações empresariais, em detrimento de outros contribuintes, que recolhem devidamente aos cofres públicos e não dispõem de capital semelhante na finalidade empresarial.
Decisão do Superior Tribunal de Justiça:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. (...) 2. É indevida a apreensão de mercadoria, ainda que transportada sem nota fiscal, quando houver a lavratura do auto de infração e o lançamento do tributo devido. Nesse sentido: RMS 24.838⁄SE, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 9.6.2008; RMS 22.678⁄SE, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 13.4.2007; RMS 21.489⁄SE, 2ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 9.10.2006.” (STJ, 1ª Turma, EDcl no RMS nº 23.459⁄SE, relª. Minª. Denise Arruda, j. 20⁄10⁄2009, DJe 13⁄11⁄2009)” (grifos nossos)[34]
Através deste fato, criou-se um paradoxo. Existe o princípio da isonomia tributária, insculpido no artigo 150, inciso II da Carta Maior e ao mesmo tempo as ações do Poder Público na pessoa do magistrado desobedecendo veementemente ao dar condições aos contribuintes continuarem em posse de provas materiais de infrações e ilícitos tributários e fiscais até que o mérito seja discutido sem saber se a obrigação principal (recolhimento de tributo ou multa por descumprimento de obrigação acessória) será paga, pessoas essas que adquirem inicialmente status de idoneidade face ao trabalho fiscalizatório de agentes públicos e do Estado como instituição, agentes esses que possuem presunção de legitimidade de seus atos, por serem atos administrativos.
E o próprio Judiciário, em situações semelhantes, admite a constitucionalidade da apreensão de veículos, apreensões essas realizadas sem decisão judicial transitada em julgado, nos casos de infração ao Código de Trânsito Brasileiro (Lei Fed. 9.503/97), conforme demonstrado no Recurso Especial 1.057.419 – RJ, cuja ementa transcrevemos abaixo:
“CÓDIGO DE TRÂNSITO. APREENSÃO DE VEÍCULO. RESTITUIÇÃO CONDICIONADA AO PAGAMENTO DAS MULTAS ADVINDAS DA INFRAÇÃO E DAS TAXAS DE ESTADA E REMOÇÃO. LEGALIDADE. LIMITE MÁXIMO DE COBRANÇA DAS TAXAS DE ESTADA: 30 DIAS. PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO. INTELIGÊNCIA DO ART. 262, caput, DA LEI 9.503/97. I - A liberação do veículo é condicionada à prévia satisfação das multas e demais despesas de remoção e depósito, desde que as infrações tenham sido aplicadas regularmente. Precedentes: REsp nº 843.972/RS, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJ de 07/11/2006; REsp nº 593.458/RJ, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ de 22/03/2004; AgRg no REsp nº 872.775/DF, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJ de 15.08.2007. II - De acordo com o art. 262, em seu caput, o veículo apreendido em decorrência de penalidade aplicada será recolhido ao depósito e nele permanecerá sob custódia e responsabilidade do órgão ou entidade apreendedora, com ônus para o seu proprietário, pelo prazo de até trinta dias, conforme critério a ser estabelecido pelo CONTRAN. (g.n.)
III - As despesas de estada possuem natureza jurídica de taxas e não de multa sancionatória, pois presentes a compulsoriedade e a prestação de uma atividade estatal específica, consubstanciada na guarda do veículo e no uso do depósito público. IV - Logo, o prazo de 30 dias estipulado pelo legislador é uma garantia do contribuinte, em atenção ao princípio do não-confisco, princípio tributário insculpido no art. 150, inciso IV, da nossa Carta Magna. Agasalhado por esta garantia, o proprietário do veículo não pode ser taxado indefinidamente, sob pena de se verificar com freqüência a ultrapassagem do valor do veículo pelas taxas, ocorrendo praticamente o confisco deste bem. V - Nesse diapasão, não há limites para o tempo de apreensão do veículo, contudo, o Estado apenas poderá cobrar as taxas de estada até os 30 primeiros dias.” (grifos nossos )
Observamos que nas questões de apreensões em legislação de trânsito, matéria considerada recente, o entendimento do Judiciário é no sentido da constitucionalidade da medida. Como se trata de legislação nova, os Tribunais formularam entendimentos condizentes com o atual momento jurídico, não sendo discutida a constitucionalidade de tal medida legal, servindo como uma espécie de medida liminar em prol do Estado, ente esse que tem mais condições de assegurar o bem retido e de pagar qualquer indenização ao particular, caso seja decidido no âmbito do Judiciário, salvaguardando o direito de todos.
O judiciário, por fim, entende que o bem comercializado, transportado e adquirido de maneira ilícita – ao estar tipificado nas hipóteses de crime contra a ordem tributária – deve ficar em posse de acusados pelos crimes como depositário fiel, depositário esse que está sob suspeitas de crime ou infração (a depender do dolo do agente) em detrimento do Estado, ente que possui meios de ressarcimento ao sujeito passivo, caso posteriormente seja proferida decisão de mérito a favor do mesmo