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Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais.

Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro

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01/10/2001 às 00:00
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Sumário: 1. Introdução: o discurso da crise do Estado em face da Constituição de 88. 2. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado como uma expressão política do modelo de reforma do Estado brasileiro. 3. Diretrizes para uma mudança na atuação estatal: o Estado dividido em setores. 4. A lógica da transferência à sociedade organizada de setores e atividades significativas: uma questão de eficiência? 5. Organizações Sociais: uma proposta de "publicização". 6. Conclusão: Reforma do Estado como caminho para uma reformulação das relações Estado-sociedade: as Organizações Sociais como instrumento e risco desse processo de consolidação da cidadania. Bibliografia.


1. Introdução: O discurso da crise do estado em face da constituição de 88

Contra a memória do período ditatorial, em 1988 surgia uma nova Constituição mais generosa em liberdades civis, em direitos dos cidadãos e em garantias sociais, cujo objetivo no médio prazo era consolidar a transição do Estado brasileiro, então ditatorial e intervencionista, rumo a um modelo de Estado Democrático de Direito.

Contudo, para além da conquista formal de uma "Constituição Cidadã", ficara o desafio do efetivo implemento da maior parte dos ganhos sociais por ela assegurados como direitos fundamentais. Como poderia o Estado brasileiro, no início dos anos 90, ter um horizonte de investimento em todas as áreas demandadas, se economicamente envolto em questões de instabilidade monetária e déficits públicos paralisadores, e se administrativamente abandonado seja a interesses clientelistas, seja a trâmites onerosa e excessivamente burocráticos?

Em face de um contexto de precário planejamento institucional de governos cada vez mais reféns de suas dívidas políticas e financeiras, restaria, equivocadamente, a culpa das incapacidades em cumprir a Constituição Federal para ela mesma.

A Constituição de 88, sob esse âmbito de análise, passou a ser tida como uma verdadeira fonte de mais e mais burocracia e também de mais e mais ineficiência, assim como passou a figurar como causa crítica, independentemente da avaliação singularizada de governos passados e presentes, do acirramento de várias frentes de endividamento estatal (funcionalismo público, crescimento explosivo do número de municípios, maior controle por processos e não por resultados etc).

Ora, segundo essa lógica e em unissonância com correntes econômicas (diz-se do ismo "neoliberal") pela redução da intervenção e do tamanho do Estado, em 1995, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) lançou as bases do projeto governamental brasileiro de reestruturação do aparato estatal, não só enquanto "resposta à crise generalizada do Estado", mas também, segundo o discurso político vigente, enquanto "forma de defendê-lo como ‘res publica’ ", o que determinou, segundo o próprio Plano Diretor, o caráter "imperativo" da reforma nos anos 90. (PDRAE, 1995:19)

Perante o desafio da crise do Estado, apregoada em níveis políticos, fiscais, administrativos, previdenciários, orçamentários e em sua própria relação com a sociedade, e dado o reiterado discurso político-econômico de governos específicos acerca da "insustentabilidade" do ordenamento jurídico nacional nos patamares em que foi colocado pela CF/88, surgiram várias e nem sempre sérias propostas de "reformar" o Estado.

Como já dito, uma delas, bastante ampla e relevante, foi lançada, nesse cenário, através da proposição pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro mandato (mais exatamente em 1995), do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que buscou inovar em alguns pontos substantivos(1) com o levantamento da bandeira de que a Administração Pública burocrática é, em essência, um dos maiores problemas do Estado brasileiro.

A necessidade de um novo modelo de gestão para o setor público, assim como a mudança na forma de tratamento da crise do Estado, da maneira como é justificada no Plano Diretor, pressupunham a insuficiência ou inadaptação das posturas político-ideológicas anteriores, que, em grande medida, abriram espaço para agravá-la ainda mais.

Fato é que o PDRAE foi lançado em 1995 tentando representar uma lógica diversa da "indiferença" existente no período pós-transição democrática quanto à existência e à dimensão da crise, bem como se propôs (não o fez na prática) a refutar a via neoliberal (noção de Estado Mínimo) colocada em voga no cerne das discussões políticas brasileiras a partir do início da década de 90.


2. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho Do Estado com Uma Expressão Política do Modelo de Reforma do Estado Brasileiro

O discurso governamental, à época do lançamento do plano, era pensar a crise sob o foco do desafio de sua superação, donde a noção de que havia que se "reformar", "reconstruir" o Estado, "de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar políticas públicas". (1995:15)

Relevante considerar o posicionamento governamental quanto a tal reforma: o Plano Diretor representa uma via de ação para o aparelho do Estado; distinguindo, nos níveis de dimensão e responsáveis, entre reforma do Estado e reforma do aparelho do Estado.

O desafio da crise diante da necessidade de reformar o Estado é tarefa, segundo o PDRAE, para o conjunto de toda a sociedade, tratando-se de um "projeto amplo", "enquanto que a reforma do aparelho do Estado tem um escopo mais restrito: está orientada para tornar a administração pública mais eficiente e mais voltada para a cidadania". (1995:17)

Focando sobre a perspectiva mais ampla da reforma do Estado, o PDRAE determina que tal reforma deve ser entendida e conformada a partir do contexto da "redefinição" do seu papel. Redefinir o papel do Estado seria, segundo a lógica governamental, fazer com que ele abandonasse a responsabilidade direta pelo "desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento". Em termos mais claros, para o PDRAE, "reformar o Estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado". (1995:17)

Neste sentido, cabe questionar o limite e as bases que regulamentam tais transferências, sabendo que todo o processo de reforma delineado no plano está pautado e intimamente marcado pela busca por eficiência, busca que vai ao encontro das duas dimensões da reforma: a política e a administrativa.

Em termos de reforma política, a transferência da atuação estatal para o setor privado vai corresponder à necessidade de gerar maior capacidade de governo ("governança"), a partir da limitação dos custos e do dimensionamento a áreas "exclusivamente" estatais, bem como pretende corresponder a um aumento da legitimidade para governar ("governabilidade") à medida que há a valorização da participação social em várias instâncias do processo de reforma e há também o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços "tendo o cidadão como beneficiário". (1995:21)

Já em se tratando de reforma administrativa (estrito senso), o principal marco de renovação seria a proposta de implementar um novo "paradigma" de organização administrativa, a saber, a Administração Pública gerencial, que vem introduzir a perspectiva do desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações estatais.

Ora, analisando os impactos e mesmo o grau de novidade/ ruptura com o modelo de gestão burocrático até então e ainda hoje adotado pela Administração Pública, o "modelo" gerencial visualizado pelo PDRAE como alternativa reformadora possui, em grande medida, apenas dois pilares "revolucionários": "em suma, afirma-se que a administração pública deve ser permeável à maior participação dos agentes privados e/ou das organizações da sociedade civil e deslocar a ênfase dos procedimentos (meios) para os resultados (fins)". (1995:22, grifos nossos)

Diante da análise, por outro lado, sobre a necessidade do plano de romper com a Administração Pública burocrática, descobre-se que tal tentativa de superação não é recente. O embate com o modelo de gestão burocrático, no nível de "reforma" do Estado brasileiro, tem sua origem, segundo o próprio PDRAE, no Decreto-Lei 200, de 25.2.1967 que já determinava princípios de racionalidade administrativa, os quais seriam, em outras palavras, a eficiência mesma, que hoje toma ares de jargão técnico-gerencial inusitado.

Igualmente criado para tentar promover a eficiência no setor público, há que se falar de outro precedente que foi o Programa Nacional de Desburocratização, lançado no início dos anos 80 também com vistas à reformulação da estrutura estatal burocrática.

O PDRAE fez questão de colocar em evidência tal embasamento histórico justamente para conformar a noção de processo de reforma, que, em grande medida, fora interrompido, segundo ele, pela Constituição Federal de 88.


3. Diretrizes Para Uma Mudança na Atuação Estatal: o Estado Dividido em Setores

Diante do "retrocesso burocrático de 1988", que resultou em "encarecimento significativo do custeio da máquina administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal, como bens e serviços e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos" (1995:29), o PDRAE tenta significar uma retomada da lógica de mudança anterior, a partir da definição dos principais problemas, da forma de tratamento de cada qual e da divisão (segmentação) do Estado em setores que possam trabalhar em específico com os questionamentos e soluções que lhes forem cabíveis em se tratando de reforma estatal.

Para enfrentar as dimensões (de problemas) institucional-legal ("obstáculos de ordem legal"), cultural (coexistência de valores patrimonialistas e burocráticos com os novos valores gerenciais) e gerencial (nível de práticas administrativas), o Plano Diretor estabelece a setorização do Estado de modo a redimensionar o próprio Estado, sua crise e as formas de resolução dessa crise.

O Estado passa, então, a ser entendido, segundo o plano, como uma espécie de amálgama das seguintes esferas de atuação: o primeiro setor que seria o núcleo estratégico; o segundo que representaria o setor de atividades exclusivas do Estado; o terceiro, por sua vez, seria o setor de atuação simultânea do Estado e da sociedade civil, setor este que engloba as entidades de utilidade pública, as associações civis sem fins lucrativos, as organizações não-governamentais e as entidades da Administração Indireta que estão envolvidas com as esferas em que o Estado não atua privativamente, mas que têm um caráter essencialmente público e, finalmente, o quarto e último setor seria o menos característico em termos de intervenção "exclusiva e/ou necessária" do Estado, já que trata da produção de bens para o mercado. A reforma direcionada no PDRAE perpassa o entendimento que se tem sobre justamente o quão necessária e mesmo eficiente é a atuação estatal em cada um desses setores.

Enquanto, por um lado, o núcleo estratégico, que representa o governo em si (âmbito de tomada de decisões), pode prescindir relativamente da eficiência em face da efetividade. Já que, segundo o PDRAE, as decisões políticas, mais que eficientes, devem ser eficazes, ou seja, devem ser certas em sua legitimidade junto à população; devendo tal setor conciliar o modelo burocrático de gestão (que é um conformador de eficácia por excelência) com o gerencial.

Por outro lado, "já no campo das atividades exclusivas do Estado, dos serviços não exclusivos e da produção de bens e serviços o critério eficiência torna-se fundamental. O que importa é atender milhões de cidadãos com boa qualidade a um custo baixo". (1995:53, grifos nossos) Cabe, desta forma, aos três setores em questão, seguir os rumos da Administração Pública gerencial, o que se justifica, segundo o PDRAE, a partir do fato de não ser característica basilar deles a prevalência estrita da dimensão política (enquanto âmbito de demandas e decisões políticas), mas de implementação prática do politicamente já delineado.

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Dimensionada sob tal espectro para esses três setores, segundo o Plano Diretor, a eficiência é não só pertinente, mas imprescindível, isto porque o setor de atividades exclusivas representa o nível de execução das decisões tomadas pelo núcleo estratégico no tocante a serviços ou agências em que se exerce o poder extroverso do Estado, bem como porque os serviços não-exclusivos são o âmbito de atuação simultânea do Estado e de instituições públicas não-estatais e privadas na prestação de serviços sociais, e mesmo porque a própria natureza do quarto setor é de produção para o mercado.


4. A lógica da transferência à sociedade organizada de setores e atividades significativas: uma questão de eficiência?.

Atendendo à premência de se gerar cada vez mais eficiência na abordagem introduzida pelo PDRAE sobre a organização estatal brasileira, foram constituídos, no setor de atividades não exclusivas (também chamado de terceiro setor) e no setor de produção para o mercado (entendido como quarto setor), movimentos específicos de transferência da responsabilidade direta do Estado pela prestação de serviços e pela produção de bens para a iniciativa privada.

O movimento ocorrido, em relação à esfera do público não-estatal, se deu no sentido de institucionalizar como "Organizações Sociais", no seio do Direito Administrativo, os entes da sociedade organizada sem fins lucrativos, atuantes no "terceiro setor", o que foi proposto a partir da possibilidade de tais entidades receberem esta qualificação jurídica, em conformidade com um processo de "publicização" previsto na Lei n.º 9.637/98.

Noutro sentido, o movimento perpetuado junto ao chamado quarto setor se deu através da privatização de empresas estatais, que passaram para o domínio de entes do mercado.

Aprofundando a análise sob uma perspectiva global, quando foi considerado, no PDRAE, que a reforma do Estado é tarefa para o conjunto da sociedade, tendo em vista que o papel do Estado, a partir da reforma, seria tão somente o de promover e regular o desenvolvimento econômico e social, a lógica governamental abria a discussão, junto à sociedade, de que os atores no processo de reforma não se restringem aos setores exclusivos do Estado, ou seja, a responsabilidade deve passar a ser compartilhada (e note-se que compartilhar é diferente de compartimentalizar) com a sociedade e com o mercado.

Na mesma medida em que o Estado restringe sua atuação direta ao seu aparelho (núcleo estratégico + atividades exclusivas), cada vez mais a sociedade civil é chamada a fazer "parcerias" com o Estado, tomando para si os outros dois setores e tendo como apoio estatal o nível de promoção, regulação e fiscalização desses.

Eis que neste ponto reside o maior risco à luz da realidade brasileira: o risco de a reforma do Estado não significar uma reestruturação positiva de todos os setores, mas acabar se transformando em uma precarização das relações Estado-sociedade, o que pode ocasionar a aproximação da proposta trazida pelo PDRAE com os marcos de um Estado mínimo excludente diante de um mercado avassalador, afrontando diretamente boa parte dos mais importantes princípios constitucionais da Carta de 88.

É, pois, no envolvimento da sociedade civil que se encontra justamente uma das propostas mais audaciosas quanto à reestruturação do Estado. Senão vejamos o exemplo dos processos de publicização e de criação de organizações sociais. Tais processos, interdependentes entre si, representam o direcionamento prático da saída da intervenção direta estatal do setor de serviços não exclusivos, também chamado de terceiro setor, de maneira a transferir para a sociedade organizada (a saber, organizações públicas não-estatais e privadas sem fins lucrativos) a prestação de serviços como saúde, educação, produção científica e tecnológica, proteção ao meio ambiente e produção cultural.

Há, neste sentido, a problemática de serem as organizações sociais (com a perspectiva de mudanças de fundo na forma atual de prestação desses serviços públicos não-estatais) um âmbito de relação Estado-sociedade muito incipiente ainda na realidade brasileira. É óbvia e forçosamente porque se está chamando a sociedade organizada a comprometer-se ativamente com o público não-estatal que se tem a necessidade de tornar o mais claro e fundamentado possível tal figura jurídico-institucional para que se evitem distorções e enganos prejudiciais à sua implementação, ainda mais se se considerar, por exemplo, que cabe à sociedade (um dos pontos cruciais da Lei n.º 9.637/98) parcela significativa na representação do Conselho de Administração das organizações sociais, que é o seu órgão máximo de deliberação institucional.

O risco de um desvirtuamento do instituto das organizações sociais está previsto até mesmo no PDRAE (1995:74): ou se respeitam as condições descritas em lei, como, por exemplo, a forma de composição de seus conselhos de administração ou se fica à mercê da possibilidade de "privatização ou feudalização dessas entidades".

Sob uma lógica político-econômica de relação custo-benefício, somente se justifica tal nível de risco na medida ele esteja embasado por uma dimensão ideológica mas incisiva. Ora, toda a perspectiva de transferência lançada pelo Plano Diretor (como uma política que vise a obedecer a demanda por maior eficiência) é, em grande medida, um marco ideológico da adoção do "paradigma" da Administração Pública Gerencial.

Faz-se necessário esclarecer aqui que a Administração Pública Gerencial trata-se de um "paradigma" de gestão que apregoa ser capaz de superar (algo bastante questionável) o modelo burocrático segundo os moldes da administração do setor privado, através da mudança nos mecanismos de controle (dos processos aos resultados) e da focalização estrita nos índices de eficiência e desempenho, entre outros.

Neste sentido, a Emenda Constitucional n. 19, de 04.06.98 eleva à condição de princípio constitucional a eficiência, que passa a fazer parte do caput do art. 37 como um dos princípios que regem a Administração Pública brasileira. Isto ocorre fundamentalmente na medida que tal Emenda conforma as diretrizes governamentais de implementação do modelo gerencial na Administração Pública, assim como perfaz toda a "Reforma Administrativa" propriamente dita da Constituição de 88.

Ilustra muito bem tal espectro de discussão a inserção no corpo constitucional, em nível programático ainda, da avaliação de desempenho dos servidores públicos a relativizar o instituto da estabilidade e a inserção do contrato de gestão para o estabelecimento de um controle de resultados (o cumprimento das metas será aferido ao final do prazo estipulado e não tanto ao longo dos processos).

Uma vez considerada a dimensão das mudanças propostas no Plano Diretor e o pressuposto ideológico que o rege, cumpre problematizá-los para que possamos chegar a uma resposta que delimite a série de questões ensejadas pelo título deste tópico: a transferência para a iniciativa privada e/ou para a iniciativa "pública-não estatal" torna a atuação das áreas transferidas mais eficiente? Ou será tudo uma mera lógica de redução indiscriminada de custos para o setor público? A eficiência pode ser tomada como um princípio absoluto, até mesmo em detrimento, por exemplo, dos princípios da dignidade da pessoa humana e da prestação contínua e efetivamente pública dos serviços públicos? Aquilo que é mais eficiente é necessariamente mais público e mais democrático?

É possível começar a questionar a partir a noção de ser o aparato estatal burocrático, "por definição", ineficiente como o pressupõe (implícita e genericamente) o Plano Diretor. É bastante sintomático, neste sentido, praticamente inexistir, no discurso governamental, sequer a cogitação de se buscar um aprimoramento do aparato estatal na prestação de serviços sociais da forma como é feita hoje.

Tal ausência denota a unicidade político-ideológica (no sentido da via de minimização do Estado) da proposta de substituição completa ("transferência") da prestação pelo Estado para a prestação pela iniciativa de entidades privadas sem fins lucrativos. Cabe, portanto, perguntar pelo fundamento da crença de ser a ineficiência característica sine qua non de toda e qualquer organização estatal, comparativamente à esfera privada, quando se fala de prestação de serviços sociais e produção para o mercado. Assim como cabe também o questionamento acerca de ser realmente possível ou não remodelar, tendo em vista a eficiência, as organizações estatais prescindindo dos mecanismos burocráticos. Ora, eis aqui o que BURSZTYN (1998:156) chama de "substituição do ‘fetichismo do planejamento’ pelo ‘fetichismo do mercado’ "...

A reforma do Estado, segundo a concepção neoliberal implícita no PDRAE, pode ser relativizada de acordo com a abordagem de PRZEWORSKI, segundo a qual, "a complacência neoclássica no que diz respeito aos mercados é indefensável: os mercados simplesmente não alocam eficientemente." Já que "mesmo quando os governos só dispõem da mesma informação de que dispõe a economia privada, certas intervenções do governo levariam, sem sombra de dúvida, a um aumento do bem-estar. Portanto, o Estado tem um papel positivo a desempenhar". (1998:44, grifos nossos)

Assim, mais do que isso e sem, a priori, prescindir da atuação estatal direta no âmbito das atividades não-exclusivas, tem-se que

"A reforma do Estado deve ser concebida em termos de mecanismos institucionais pelos quais os governos possam controlar o comportamento dos agentes econômicos privados, e os cidadãos possam controlar os governos. A questão quanto a se um Estado neoliberal é ou não é superior a um Estado intervencionista não pode ser resolvida em termos gerais, uma vez que a qualidade da intervenção estatal depende de um desenho institucional específico. Porém, o Estado neoliberal é, pelo menos, um parâmetro pelo qual se pode aferir a qualidade da intervenção estatal: como as alocações do mercado não são eficientes, desaparelhar o Estado não é um objetivo racional de reforma do Estado". (PRZEWORSKI, 1998: 68, grifos nossos)

As discussões a respeito da transferência dos serviços sociais do Estado para a sociedade civil denotam fundamentalmente, além da preocupação com um desvirtuamento institucional das O.S., a insegurança quanto à possibilidade de serem elas (as organizações sociais), desde sua concepção, uma espécie de "privatização dissimulada". Na realidade brasileira, tanto a preocupação, quanto a insegurança, são amplamente justificáveis em se tratando de "engenharia política" de manutenção das desigualdades sociais e de manutenção do conformismo perante o Estado, haja vista a peculiaridade política brasileira que foi o populismo...

A possibilidade de que as O.S. sejam somente mais um instrumento de "engenharia política" bastante criativo e "maquiavélico" (no sentido vulgar e pejorativo da expressão) de privatizar a prestação dos serviços sociais é percebida por FREITAS (1998:103), de modo a deixar em aberto que,

"Por tudo, se se configurar o desvirtuamento, o modelo federal poderá ter produzido um modo afrontoso de contornar exigências oriundas dos próprios princípios norteadores dos contratos de gestão, bem como terá ofendido regras nucleares de preservação do patrimônio público".

Ora, grande parte da população brasileira, de certo modo, nunca teve uma efetivação abrangente dos direitos sociais como educação e saúde (apesar de estarem conformados na Constituição de 88 como "deveres do Estado") e os rumos que o Plano Diretor denota vão no sentido de restringir o próprio conceito de cidadania (haja vista a noção, pautada sob marcos neoliberais, de cidadão-cliente), bem como no sentido de minimizar as bases de proteção social garantidas direta e universalmente pelo Estado.

Tal insegurança encontra respaldo, segundo BURSZTYN (1998), no fato de nunca ter havido no Brasil uma abrangência universal do Estado de Bem-Estar, vez que uma ampla camada da população sempre esteve marginalizada em relação a qualquer amparo público. O grau de expectativa e de legitimidade em relação ao Estado, para o autor em questão, é muito reduzido na sociedade brasileira.

Consequência disso é que a crise do Estado aqui não se reveste de "caráter de desencanto" (o que acontece com os países de Welfare State). A crise no Brasil seria, neste sentido para BURSZTYN, um

"(...) misto de falta de políticas de bem-estar universalizadas, paralelamente a uma perda de efetividade dos poucos instrumentos de políticas sociais, junto às reduzidas parcelas da população que a elas tinham acesso. Ao invés de saturação, do envelhecimento do W.S., o Brasil vive uma atrofia precoce do seu desenvolvimento." (1998:153, grifos nossos)

Se o Brasil vive uma "atrofia precoce" do desenvolvimento da teia de proteção social, a qual, no modelo do W.S., fora constituída visando a condições mais equânimes (não necessariamente mais igualitárias) de vida, ainda mais sintomática que tal atrofia no referente à garantia de direitos sociais é a própria involução ideológica da noção de cidadania, que, na realidade brasileira, vai se delineando fora do fundamento democrático da universalização dessa condição.

De crucial significado no cerne da linha de ação conformada pelo Plano Diretor e em conflito com uma perspectiva mais democrática de reestruturação estatal, bastante polêmico é o conceito de cidadão-cliente. O embate entre esfera de maximização dos interesses econômicos e um nível mínimo de respeito à cidadania estabelecida nos moldes do regime democrático da Carta de 88, em BURSZTYN, está dimensionado de modo a visualizar que

"A busca de maiores resultados econômicos, no curto prazo, acabou levando a uma formidável negligência com o caráter público da prestação de certos serviços públicos. (...) Paralelamente ao surgimento do conceito "cliente" como o objeto da busca de satisfação, ocorre também uma perversa redução no universo desses beneficiários: a exclusão de uma parte dos usuários - aqueles que não constituíam um mercado, no sentido econômico do termo - da categoria de clientes". (1998:156/157, grifos nossos)

Não há como se falar em eficiência na e da atuação estatal, sem antes retomar a própria razão de ser dela mesma: a transferência de setores significativos do âmbito estatal para a iniciativa privada e/ou para a sociedade organizada gera um vácuo de legitimidade sobre aqueles que requerem do Estado não somente uma regulação estrita do mercado, mas também uma sociedade mais equânime.

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Sobre a autora
Élida Graziane Pinto

Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo. Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). Doutora em Direito Administrativo pela UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Élida Graziane. Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais.: Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2168. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

O artigo em questão foi reformulado a partir dos dois primeiros capítulos da monografia de nome "Organizações Sociais e Reforma do Estado: riscos e desafios nesta forma de institucionalizar a parceria Estado-sociedade organizada no Brasil" premiada em 2º lugar no XIV Concurso Internacional de Ensayos e Monografias del Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo, tendo sido apresentada no V Congreso Internacional sobre Reforma del Estado e de la Administración Pública del CLAD, realizado em Santo Domingo, República Dominicana, de 24 a 28/10/2000

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