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Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais.

Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro

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01/10/2001 às 00:00
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5. Organizações Sociais: uma proposta de "publicização"

Amparada nos marcos do Estado Democrático de Direito, a noção de que o público representa uma esfera mais ampla que o estatal perpassa toda a discussão a respeito do terceiro setor, bem como determina, em grande medida, alguns pontos cruciais no processo de "reforma" do Estado, como a conformação de uma necessária participação social mais ativa no nível de defesa dos interesses públicos e, a partir disso, uma menor "dependência" (?) da sociedade civil em relação à estrita atuação estatal na prestação dos serviços sociais.

Pretendendo estar representada em sentido diverso ao programa de privatização implementado nos últimos anos e como que adotando um foco de análise mais amplo, a proposta de transferir o papel de prestador de serviços sociais para organizações sem fins lucrativos da sociedade civil, através da noção de publicização, reflete fundamentalmente a perspectiva paradigmática de consolidação do espaço público não-estatal e a concomitante solução alternativa encontrada pelo PDRAE de restringir o nível de atuação do Estado ao papel de promotor e regulador no que foi chamado terceiro setor através do instituto das organizações sociais.

O que está previsto no PDRAE, em termos práticos, é a institucionalização dessa transferência, donde a necessidade de um Programa Nacional de Publicização (PNP). Se as organizações sociais (já reguladas pela Lei 9.637/98) são o instituto que vinculará tal "parceria" entre Estado e sociedade organizada, o PNP (ainda a ser criado mediante decreto do Poder Executivo ( vide o art. 20 da referida Lei) será o programa que viabilizará a "saída" do Estado (no referente à atuação direta) do setor de atividades não-exclusivas, à medida que se pretende ampliado o espaço da sociedade organizada.

A abordagem realizada no PDRAE é bastante sintomática em se tratando do objetivo da criação de organizações sociais e mesmo da publicização. Esse objetivo seria

"(...) permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, nos quais não existe o exercício do poder de Estado, a partir do pressuposto que esses serviços serão mais eficientemente realizados se, mantendo o financiamento do Estado, forem realizados pelo setor público não-estatal." (1995:74, grifos nossos)

Ora, neste sentido, a "descentralização" dimensionada no PDRAE, abrangendo o conceito de publicização, seria a "absorção" de atividades e serviços até então realizados por autarquias e fundações ("entidades ou órgãos públicos da União") pelas entidades de utilidade pública qualificadas como O.S., o que corresponderia, portanto, a não só reduzir a atuação da Administração Pública Indireta, mas também a promover, simultânea e predominantemente, a atuação da sociedade civil organizada (o que está claro nos objetivos do Plano Diretor, inclusive pelo termo "absorção" da Lei em análise).

Neste sentido, em face do questionamento a respeito de "se deverá sempre ocorrer a extinção de uma entidade pública para que surja em seu lugar uma organização social, a qual assuma o serviço por ela prestado", claro é que teoricamente nada impede que as O.S. atuem paralelamente a órgãos e entidades estatais na prestação de serviços sociais e em atividades de interesse coletivo. Ou seja, "apesar de as organizações sociais terem sido concebidas com o objetivo de substituírem entidades da Administração Indireta (...), elas não são, pois, necessariamente, sucessoras de entidades públicas extintas." (SANTOS; PEDROSA, 1998:14, grifo nosso)

Já, em termos de implementação prática, segundo as autoras supracitadas,

"(...) dificilmente, uma entidade será qualificada como organização social sem que haja extinção de órgão ou entidade pública da mesma área de atuação, devido à escassez de recursos de que dispõe a administração pública. Seria utópico imaginar que as organizações sociais venham a representar um mero acréscimo na oferta de serviços naquelas áreas de atuação específica de que nos fala a lei." (1998:14, grifos nossos)

Se é utópica a perspectiva de que as organizações sociais estão sendo criadas para atuarem de forma complementar à atuação estatal e se só a substituição desta por aquela é o que o governo pretende com o PNP, tem-se que há um impasse diante da Constituição Federal de 88, o qual, nos termos de MELLO, coloca a seguinte questão:

"(...) os serviços trespassáveis a organizações sociais são serviços públicos insuscetíveis de serem dados em concessão ou permissão. Logo, como sua prestação se constitui em "dever do Estado", conforme os artigos citados (arts. 205, 206 e 208), este tem que prestá-los diretamente. Não pode eximir-se de desempenhá-los, motivo pelo qual lhe é vedado esquivar-se deles e, pois, dos deveres constitucionais aludidos pela via transversa de "adjudicá-los" a organizações sociais. Segue que estas só poderiam existir complementarmente, ou seja, sem que o Estado se demita de encargos que a Constituição lhe irrogou." (1999:159, grifo sublinhado nosso)

O motivo de tal transferência inconstitucional (a publicização) para a sociedade organizada das atividades públicas não exclusivamente estatais, que são desempenhadas pelo Estado, no modelo de reforma brasileiro, é a perspectiva de que o Estado não consegue atender eficientemente às demandas da sociedade, prestando serviços sociais (espaço por excelência do público não-estatal) desprovido de mecanismos dinâmicos de gestão e de uma ampla participação social.

Interessante, neste âmbito, perceber o quão veemente é a crença e reiterado é o discurso do governo de que, por definição, a prestação de serviços e a produção de bens pelo Estado é menos eficiente que a realizada pela iniciativa privada.

Segundo CHAUÍ (1999),

"A Reforma tem um pressuposto ideológico básico: o mercado é portador de racionalidade sócio-política e agente principal do bem-estar da República. Esse pressuposto leva a colocar direitos sociais (como a saúde, a educação e a cultura) no setor de serviços definidos pelo mercado. Dessa maneira, a Reforma encolhe o espaço público democrático dos direitos e amplia o espaço privado não só ali onde isso é previsível ( nas atividades ligadas à produção econômica), mas também onde não é admissível, no campo dos direitos sociais conquistados." (Grifos sublinhados nossos)

O problema que se pode depreender desse tipo de "ideologia" política é justamente o dimensionamento de até que ponto a eficiência (em termos exclusivamente econômicos) prepondera sobre os interesses sociais (públicos por excelência), até que ponto esses interesses públicos são precarizados e relativizados no embate com o conceito de publicização, o qual está conformado para uma cidadania que pressupõe vínculo de clientela neoliberal com o Estado.

Ora, faz-se necessário questionar aqui o papel do Estado no processo de publicização diante do necessário caráter universal da prestação de serviços públicos, do princípio da continuidade na prestação deles e do princípio da subsidiariedade, a partir dos quais há que se assegurar a atuação estatal complementar em caso de insuficiência na prestação pelas O.S. dos serviços sociais.

Em que pesem o princípio da eficiência (ênfase nos resultados) e a relação estrita de cidadão-cliente, a retomada da subsidiariedade é exigência primordial para a "saída" do Estado do nível de responsabilidade direta por essa prestação, primordial em face justamente do objetivo do próprio PDRAE de efetivamente reformar o Estado para fortalecê-lo e não para minimizá-lo.

Não obstante a necessária subsidiariedade e muito além dela, maior deve ser a preocupação social (mais que o mero controle social estrito senso) com relação às O.S. no tocante ao fato de o governo transferir a prestação de serviços sociais para a esfera privada (sem fins lucrativos), sem assegurar que seja ela universal (novamente a discussão acerca do conceito de cidadão-cliente), donde a contraposição mesma entre a rentabilidade dos serviços públicos privatizados e princípio da universalização do atendimento denotada por BURSZTYN (1998:157).

Boa parte dos estudiosos de Direito Administrativo tem se preocupado seriamente com tal transferência, a mensurar por suas críticas ao modelo federal. Dimensionando sinteticamente os principais questionamentos neste sentido, DI PIETRO considera que

"Embora a medida provisória [a atual Lei 9.637/98] não diga expressamente, é evidente e resulta nela implícito que as organizações sociais vão absorver atividades hoje desempenhadas por órgãos ou entidades estatais, com as seguintes consequências: o órgão ou entidade estatal será extinto; suas instalações, abrangendo bens móveis e imóveis, serão cedidos à organização social; o serviço que era público passará a ser prestado como atividade privada. Dependendo da extensão que a medida venha a alcançar na prática, o Estado, paulatinamente, deixará de prestar determinados serviços públicos na área social, limitando-se a incentivar a iniciativa privada, por meio dessa nova forma de parceria. Em muitos casos, poderá esbarrar em óbices constitucionais." (1999:312, grifos nossos)

Ora, aprofundando tais questionamentos, diante da transformação ensejada pela Lei n.º 9.637/98 de "serviços públicos" em "atividade privada" e diante da limitação da atuação estatal ao nível de incentivo da iniciativa privada (processos denotados por DI PIETRO que serão consolidados "paulatinamente"), quem são os clientes do Estado para os quais as O.S. devem prestar eficientemente serviços sociais e em que medida os "não-clientes" estão excluídos dessa prestação? Seria cidadão-cliente, segundo a lógica do PDRAE, todo aquele que usa os serviços da "empresa" na qual o Estado está se transformando?

Dimensionada a partir de um pressuposto excludente de conformação da cidadania como clientela (dado que submetida a parâmetros neoliberais), a reforma brasileira do Estado coloca em xeque a própria base de legitimação social deste Estado, porque "onde (...) acima da estrutura textual e legitimatória do Estado ainda se faz valer uma superestrutura consistente de inclusão/ exclusão, o ‘estado constitucional’, que só se pode fundamentar e justificar como Estado universal, ainda não está realizado. A constituição exclui a si mesma do nexo de legitimidade democrática." (MULLER, 1998:99/100, grifos nossos)

Em termos de legitimidade das mudanças que têm sido feitas na Constituição de 88 para viabilizar tais mecanismos de redução do aparato estatal, sem assegurar a universalidade na prestação dos serviços sociais que estão envolvidos com o instituto das organizações sociais, é possível questionar também o que MULLER considera como a "degeneração em ‘povo’-ícone", já que "a exclusão deslegitima. Na exclusão o povo ativo, o povo como instância de atribuição e o povo-destinatário degeneram em ‘povo’-ícone." (1998:105, grifo nosso)

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A degeneração em "povo apenas para fazer constar do preâmbulo da Constituição", especialmente na realidade brasileira, corresponderia a um quadro institucional em que "por um lado a maior parte da população é ‘integrada’ na condição de obrigada, acusada, demandada, por outro ela não é integrada na condição de demandante, de titular de direitos" (MULLER, 1998:95, grifos nossos). Donde a "identificação da reivindicação de direitos de cidadania por parte de subcidadãos excluídos e subintegrados, na maior parte das vezes, com subversão". (1998:96, grifos nossos)

A análise da publicização, a partir desta problemática, vai ao encontro do respaldo que tal "processo" recebe de toda a lógica de um governo em específico. Qual reforma do Estado em face da premência da mera rolagem de juros da dívida pública no atual caso brasileiro? – Eis uma base de questionamento já a ser tratada desde as diretrizes do PDRAE e mesmo sobre o próprio conceito de publicização.

O corte de verbas recorrente na saúde e na educação públicas, por exemplo, depõe contra a maior parte dos argumentos de serem as O.S. instrumentos mais democráticos e capazes de atender melhor a um número maior de pessoas. Pergunta-se: se a perspectiva governamental é reduzir o repasse de recursos financeiros para esse setor, como ampliar a prestação de tais serviços sociais, sem implicar a mera privatização diante da cobrança de taxas, mensalidades ou quaisquer outras formas de faticamente restringir a universalidade desses serviços?

Assim, o PNP, para MELLO (1999:157), representaria um "título paradoxal", já que, a priori, o termo publicizar não abre espaço para se interpretar uma transferência para a esfera privada, ainda que essa esfera privada seja sem fins lucrativos.

Segundo DI PIETRO,

"Embora o Plano Diretor fale em publicização e a própria Lei 9.637, logo na ementa, fale em Programa Nacional de Publicização para definir a forma como se substituirá uma entidade pública por uma entidade particular qualificada como organização social, não há qualquer dúvida quanto a tratar-se de um dos muitos instrumentos de privatização de que o Governo vem se utilizando para diminuir o tamanho do aparelhamento da Administração Pública. A atividade prestada muda a sua natureza; o regime jurídico, que era público, passa a ser de direito privado, parcialmente derrogado por normas publicísticas; a entidade pública é substituída por uma entidade privada." (1999:313, grifo nosso)

Neste ponto, cabe questionar ainda em que medida transferir para o regime de direito privado implica tornar mais pública a Administração Indireta? O público não-estatal, como fundamento estruturante das O.S., implica, muito além de transferência de serviços sociais, conformação de níveis mais amplos de participação e controle social, o que, por sua vez, pressupõe uma noção de cidadania mais ativa e comprometida com um nível de coletivo que não depende passivamente do estatal, o que resultou muito mal instrumentalizado a partir da Lei n.º 9.637/98.

Sobre serem as Organizações Sociais uma proposta de efetivamente tornar mais pública a prestação dos serviços sociais, faz-se necessário reavaliar a pergunta inicial deste tópico a partir de uma segunda pergunta: o que seria publicizar? Tornar público o que já é estatal parece, à primeira vista, um contra-senso ou ainda um pleonasmo, mas há que se considerar, como anterior e repetidamente já dimensionado, a existência de uma esfera de público que transcende os limites do estatal.

Em grande medida, o problema passa a ser até que ponto transferir do público-estatal algumas atividades (as ditas não exclusivas do Estado) para o público não-estatal representaria uma via de prestação de tais atividades e serviços mais pública. Correndo o risco de ser um pouco tautológica, seria perguntar se há um público mais público que o outro, donde ser o Programa Nacional de Publicização um título "paradoxal"...

No Estado Democrático de Direito, a distinção entre público e privado só é percebida em limites bem tênues e, em HABERMAS (1995), chega a ser uma perspectiva procedimental, delimitada na lógica do modelo discursivo de democracia. A publicização não significaria, neste sentido, uma transição de algo que fosse menos para mais público estrito senso, porque tal questão só pode ser solucionada na via de processo, no quantum de participação social agregado (se é que é possível mensurá-lo).

A tomada do espaço público pela sociedade civil e mesmo a indistinção fluida entre público e privado a partir da ampliação e evolução na aquisição de direitos pelos indivíduos, numa releitura da proposta governamental de publicização, só são efetivamente indícios de concretização da diretriz constitucional de "instituir um Estado Democrático" (vide preâmbulo da Constituição Federal de 1988) na medida estrita da ampliação do exercício da cidadania.

Publicizar deve implicar, mais que qualquer outra coisa, nível de incremento da participação social em um efetivo exercício da condição de cidadão, sob pena de não corresponder o nome à realidade, pena essa que se coloca sob a égide do desafio de implementar um Estado "reformado" que seja essencialmente democrático.

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Sobre a autora
Élida Graziane Pinto

Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo. Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). Doutora em Direito Administrativo pela UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Élida Graziane. Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais.: Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2168. Acesso em: 18 nov. 2024.

Mais informações

O artigo em questão foi reformulado a partir dos dois primeiros capítulos da monografia de nome "Organizações Sociais e Reforma do Estado: riscos e desafios nesta forma de institucionalizar a parceria Estado-sociedade organizada no Brasil" premiada em 2º lugar no XIV Concurso Internacional de Ensayos e Monografias del Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo, tendo sido apresentada no V Congreso Internacional sobre Reforma del Estado e de la Administración Pública del CLAD, realizado em Santo Domingo, República Dominicana, de 24 a 28/10/2000

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