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A proteção penal (in)suficiente da criança e do adolescente no caso de crimes sexuais

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08/05/2012 às 16:26
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4 A proibição de proteção deficiente dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes no caso de crimes sexuais

Diante da quantidade significativa de estudos a respeito da violência, do abuso e da exploração sexual infanto-juvenil[25], chega a ser um truísmo dizer-se que esses tipos de condutas, quando perpetradas contra crianças e adolescentes, configuram como um dos crimes que mais conseqüências nefastas lhes trazem. Porém, infelizmente, esta ainda é uma realidade freqüente no território brasileiro; agravada sobremaneira pelo triste quadro social vigente no país, que acaba por sujeitar crianças e adolescentes às piores ofensas contra suas integridades físicas e psicológicas. Por outro lado, o Estado também poderá intensificar esta problemática, a partir do momento em que deixa proteger os direitos fundamentais infanto-juvenis em situações como as de abuso, violência, exploração sexual, pedofilia, pornografia infantil, dentre outras formas de violência que, não raras vezes, avultam no cenário da imprensa nacional.

Não por outro motivo, o constituinte insculpiu, na Constituição Federal de 1988, um conjunto diferenciado de direitos à criança e ao adolescente em atenção à sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, instaurando, no ordenamento jurídico pátrio a Doutrina da Proteção Integral. Da mesma forma, e tendo em conta as sérias conseqüências resultantes dos crimes sexuais, também ordenou a punição severa da conduta de promover abuso, violência ou exploração sexual contra crianças e adolescentes.

Reconhecidos os direitos fundamentais infanto-juvenis pelo ordenamento jurídico-constitucional, surge, para o Estado, o dever de protegê-los. Essa proteção, no entanto, deverá ser positiva, ou seja, o Estado deve lançar mão de todos os meios, inclusive de sanções penais para proteger os direitos fundamentais de crianças e adolescentes em face de ofensas praticadas por terceiros. Tanto é assim que, a Lei maior chega a comandar, em seu texto, que a punição deva ser severa. Gonçalves entende que, apesar de não ser a severidade uma diferença específica das sanções penais, “a melhor interpretação do comando constitucional do artigo 227, parágrafo 6º (sic) é aquela que enxerga, na hipótese, a obrigação de criminalização.” [26]

Claus Roxin, a respeito da função do Direito Penal, aponta que, em um Estado Democrático de Direito, “as normas jurídico-penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos”.[27]

Com efeito, no contexto constitucional atual, não se pode mais encarar os comandos constitucionais apenas como uma “mera carta de intenções,”[28] como sucedia nos paradigmas anteriores, mas, sim, deve-se buscar efetivá-los sob o risco de incorrer em inconstitucionalidade por proteção insuficiente. Assim sendo, ao Estado não cabe apenas respeitar os direitos individuais, mas, por outro lado, deve garantir a efetiva proteção a todos os direitos fundamentais. No mesmo sentido, Schäfer Streck diz que “[...] o direito numa concepção democrática abraça a possibilidade de atuação positiva por parte do Estado, ou dito de outra forma, passa a ver o Estado como ‘amigo’ dos direitos fundamentais”.[29] Da mesma forma, a lição do Professor Ingo Wolfgang Sarlet:

[...] o Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot).[30]

 Convém registrar que a dupla perspectiva de proteção dos direitos fundamentais – quer como proibição de excesso (Übermassverbot), quer como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, tem íntima relação com a aplicação do princípio da proporcionalidade em consonância com os preceitos que regem o Estado Democrático de Direito, dentre os quais, o de conferir aos direitos fundamentais uma proteção diferenciada, destinada a dar-lhes máxima eficácia jurídica e social.

Em relação aos direitos infanto-juvenis, Machado assinala que os direitos elencados no caput do artigo 227 e no seu parágrafo 3º, bem como no artigo 228 da Constituição Federal, são direitos da mesma natureza dos que compõem o artigo 5º, ou seja, são direitos fundamentais da pessoa humana, porém, a citada autora assevera que “são direitos fundamentais de uma pessoa humana de condição especial: da pessoa humana ainda em fase de desenvolvimento.”[31]

 Diante desta situação – encontrar-se em fase de desenvolvimento – Machado defende que o bem jurídico tutelado, nas figuras penais referentes aos crimes sexuais contra crianças e adolescentes, aproxima-se mais do direito fundamental à integridade, do que ao de liberdade sexual. Nas palavras da aludida autora:

[...] no plano jurídico estrito da questão, nas figuras penais de ofensa direta a bem individual de crianças e adolescentes, o ponto focal da tutela penal é a integridade (nas sub-facetas da integridade física, psíquica e moral) e não a liberdade sexual, num sentido estrito; ainda que, em relação aos adolescentes (pessoa maior de 12 anos), o direito à liberdade sexual passe, também, a figurar no centro do foco e, considerando que, quanto mais tenra a idade da vítima (presente ou não a violência real) mais o centro da tutela penal se identifica com a integridade.[32][grifo da autora]

Pode-se afirmar, portanto, que, no âmbito do Estado Democrático de Direito, ocorre a identificação dos bens jurídicos tutelados penalmente com a materialidade da constituição. Dito de outro modo, não há para o legislador discricionariedade absoluta na edição das leis penais que porventura venham a criminalizar ou descriminalizar condutas relacionadas ao abuso, violência ou exploração sexual de crianças e adolescentes, isso porque, conforme assevera o professor Lenio Streck, “a Constituição Federal da República do Brasil estabelece diretrizes de política criminal a serem, necessariamente, seguidas quando da edição de leis penais no exercício da atividade legiferante”.[33]

Ainda que a norma constitucional, por si só, tenha a capacidade de produzir efeitos jurídicos, Gonçalves assinala que a edição de leis ordinárias pode ampliar a observância do comando constitucional, de modo que “a ausência de sua edição pode implicar na desproporcionalidade por proteção insuficiente [...], que é forma de inconstitucionalidade.”[34]

Bernal Pulido assevera que toda lei penal deve representar a medida que o Estado adota para poder proteger os direitos fundamentais e os demais bens jurídicos resguardados constitucionalmente. Em contrapartida, continua o referido autor, “o legislador penal pode vulnerar os direitos fundamentais quando a severidade de suas previsões não chega a oferecer uma proteção suficientemente satisfatória e efetiva.”[35]

Vale registrar que qualquer omissão ou inércia inconstitucional na esfera legislativa, seja por parte do Poder Executivo, seja do Poder Legislativo, no referente à proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, podem ser levadas ao Poder Judiciário através dos instrumentos de controle da constitucionalidade, previstos na Constituição de 1988, notadamente a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

 Por outro lado, quando a Lei Magna ordena, no § 4º do seu artigo 227, a punição severa da conduta de promover abuso, violência ou exploração sexual contra crianças e adolescentes, tal comando também é destinado ao aplicador da norma. De modo que, consoante explica Schäfer Streck, “o Poder Judiciário também comete inconstitucionalidades quando deixa de proteger de forma apropriada e suficiente determinado bem jurídico de dignidade constitucional.”[36]


5 Exemplos de Proteção penal insuficiente de crianças e adolescentes no caso de crimes sexuais

Antes da recente reforma criminal efetuada pela lei n.º 12.015, de 07 de agosto de 2009 – que alterou significativamente o Título VI da Parte Especial do Código Penal Brasileiro, dando nova redação ao seu Art. 225, §§ 1º e 2º –, a propositura da ação penal nesses crimes, em regra, dependia de queixa a ser oferecida pelo ofendido, ou por seu representante legal, se incapaz. Este dispositivo revogado, de caráter processual penal, quando analisado sob a luz dos deveres de proteção dos direitos fundamentais infanto-juvenis no Estado Democrático de Direito, configurava forma de proteção insuficiente, na medida em que a persecução penal estatal de crimes tão graves (tais como estupro ou atentado violento ao pudor) dependia, em regra, do arbítrio dos representantes legais de vítima criança ou adolescente, o que poderia gerar impunidade aos autores destas condutas, caso os responsáveis legais da criança ou adolescente vítima não quisessem apresentar queixa ou representação ao Ministério Público, nos casos de ação condicionada à representação.

Ademais, não bastasse o risco de servir como fonte de prova no processo penal, colocava-se as vítimas crianças e adolescentes sob risco maior, porque, de acordo com Piazza[37], “não escapava do agressor a noção de que a ação penal era ato de comando da vítima e não do Estado”. Por conta disso, continua a autora, “é mais seguro para a vítima que o agressor veja o Estado como seu acusador.” [38] Todavia, atualmente esse quadro foi corrigido, pois, após a referida reforma criminal, procede-se mediante ação penal pública incondicionada se a vítima de crimes sexuais contar com menos de 18 anos de idade.

Outra situação de proteção deficiente que existia na legislação penal especial, também revogada – embora ainda seja realidade em muitos processos penais em tramitação Brasil a fora, por conta do princípio da irretroatividade da lei penal, o que exige atenção dos aplicadores do direito –, refere-se aos artigos 240 e 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais, não atendiam ao reclamo constitucional por uma punição severa, embora constituíssem forma de abuso ou exploração sexual de criança ou adolescente. Conforme Gonçalves, não se tratava apenas de limites brandos da resposta criminal [pena de reclusão de 01 (um) a 04 (quatro) anos, mais multa no primeiro caso], mas da possibilidade das penas serem substituídas por outras, não privativas de liberdade, o que seria incompatível com a severidade exigida pela Constituição.[39]

Como dito, os dispositivos penais também foram revogados, obtendo nova redação a partir da Lei n.º 11.829, de 2008, que, por sua vez, majorou os limites das penas dos artigos 240 e 241 do ECA, para 04 (quatro) a 08 (oito) anos de reclusão e multa, aplicando-se, dessa forma, na esfera legislativa, o princípio da proibição da proteção deficiente dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

É possível identificar, também, exemplo de proteção deficiente no âmbito do sistema de justiça criminal, decorrente da inadequação de sua estrutura para a proteção dos direitos dignos de tutela da vítima sexual infanto-juvenil – os quais, conforme Bitencout, são duplamente ofendidos, ”ou seja, pela própria violência (vitimização primária) e pelo aparato repressivo estatal (vitimização secundária), pelo uso inadequado dos meios de controle social, ou mesmo pela impropriedade dos meios utilizados.”[40] Dito de outro modo, e com grande acerto, a citada autora expõe a problemática, nos seguintes termos:

Assim, as inadequadas intervenções do aparato estatal acabam produzindo nova (re)vitimização, e até a destruição de eventuais provas dos fatos imputados ao acusado. Desafortunadamente, o Estado não está equipado com recursos materiais e humanos capazes de proteger e preservar a vítima em sua integridade moral, psicológica e sócio afetiva. Trata-se de um sistema dirigido a adultos, sem pessoal especializado a intervir com crianças e adolescentes frágeis e vulneráveis, sem estrutura adequada a possibilitar que essas vítimas sejam preservadas de novos abusos e corretamente informadas dos procedimentos adotados. [41]

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6 Conclusão

O dever de proteção dos direitos fundamentais, bem como a primazia da dignidade da pessoa humana existente no interior do Estado Democrático de Direito, possibilitou grande avanço no processo de reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais infanto-juvenis. Permitiu, por outro lado, a proteção de crianças e adolescentes de condutas de extremo potencial ofensivo, como ocorre nas hipóteses dos crimes sexuais. Todavia, o entendimento a respeito da proibição de proteção insuficiente ou deficiente, e seus reflexos para o direito penal, ainda não foi totalmente assimilado pelos poderes que compõem o Estado brasileiro, prova disso, os recorrentes casos de crimes praticados contra crianças e adolescentes, muitos dos quais, de natureza sexual, que frequentemente permanecem impunes. Nesse sentido, o presente trabalho busca contribuir neste processo de afirmação dos direitos fundamentais infanto-juvenis, tendo em vista a concretização dos objetivos presentes na Constituição Federal do Brasil de 1988.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. 6. ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso em: 13 jun. 2011.

BITENCOURT, Luciane Potter. Vitimização secundária infanto-juvenil e violência sexual intrafamiliar: por uma política pública de redução de danos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009

FALEIROS, Eva T. Silveira; CAMPOS, Josete de Oliveira (pesquisadoras). Repensando os conceitos de violência, abuso e exploração sexual de crianças e de adolescentes. Disponível em: <http://www.cecria/mj-sedh-dca/fbb/unicef.gov>. Acesso em 02 de jan. de 2011

GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007

LEITE, Carla Carvalho. Da doutrina da situação irregular à doutrina da proteção integral: aspectos históricos e mudanças paradigmáticas. In: Juizado da Infância e Juventude, n. 5, Porto Alegre: TJRS, 2005.

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ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Traduzido por André Luís Callegari e Nereu José Gicomolli (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais, n. 12, Porto Alegre: ITEC, 2003.

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VERONESE, Josiane Rose Petry (org.). Violência e exploração sexual infanto-juvenil: crimes contra a humanidade. Florianópolis: OAB/SC, 2005.

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Sobre o autor
Patrick Luiz Galvão do Carmo

Policial Civil. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Amapá (2008). Graduado em Licenciatura em Filosofia pela Universidade do Estado do Amapá (2012). Especialista em Direito Penal e Ciências Criminais pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão – IBPEX/Macapá/AP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARMO, Patrick Luiz Galvão. A proteção penal (in)suficiente da criança e do adolescente no caso de crimes sexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3233, 8 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21690. Acesso em: 19 dez. 2024.

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