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Requisitos de ingresso nas Forças Armadas

10/05/2012 às 08:14
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As regras especiais para ingresso nas Forças Armadas são um meio necessário para a obtenção das finalidades constitucionais das instituições, mas a cominação de quaisquer condições deve guardar compatibilidade com a atividade militar.

1.                  INTRODUÇÃO:

O presente estudo ambiciona expor de forma sucinta e direta a controvérsia residente na imposição pela Administração castrense de exigências para o ingresso nas Forças Armadas por meio de meros regulamentos ou editais.

É notório que os concursos públicos como um todo, inclusive para os órgãos de formação para a carreira militar, vêm assumindo uma importância fundamental diante da possibilidade de assumir uma função pública e da tão aclamada estabilidade dela decorrente.

Nessa seara, é consabido que, diferentemente da iniciativa privada, a seleção pela Administração Pública deve obediência a uma série de princípios e regras que objetivam direcionar a sua atuação para a consecução do interesse público, tais como o princípio da legalidade, proporcionalidade, razoabilidade e o próprio princípio do concurso público. Para a administração castrense, particularmente, esse vínculo com o interesse público deve ainda estar conjugado com a necessidade de atenção a um conjunto de regras que lhe são ínsitas. Nessa senda, é comum nos concursos de admissão para as Forças Armadas a existência de cláusulas editalícias contendo exigências especiais e até mesmo incomuns, tais como idade e altura mínima e máxima, estado civil, dentre outras.

Ocorre que essas cláusulas especiais vêm sendo objeto de impugnação judicial questionando a sua veiculação por meros instrumentos infralegais.

Pretende-se, portanto, investigar a constitucionalidade das limitações impostas nos regulamentos e editais das Forças Armadas para o ingresso nos seus cursos de formação. Para tanto, faremos um breve apanhado das principais características e particularidades da função militar com a finalidade de caracterizar a relação de especial sujeição em que se encontram os militares, para depois adentrar no tema propriamente dito.


2.                  AS FORÇAS ARMADAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL:

Segundo o artigo 142 da Constituição Federal, as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, organizadas com base na hierarquia e disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.

A caracterização como “instituições nacionais” tem o objetivo de proibir a criação de instituições dessa mesma espécie por outras unidades da federação, além de estabelecer o dever de servir à nação. O caráter “permanente” impede a supressão e a transitoriedade de qualquer uma delas. Por seu turno, a “regularidade” atribuída pela Carta Magna denota uma ordem para a manutenção de efetivos suficientes para o seu regular funcionamento.

Seguindo na interpretação do citado dispositivo constitucional, percebemos que a organização das Forças Armadas está balizada em dois princípios fundamentais: a hierarquia e a disciplina. Pela hierarquia impõem-se a distribuição escalonada e graduada dos órgãos, postos e patentes militares. Já a disciplina confere aos superiores hierárquicos o poder de impor condutas, dar ordens e punir as eventuais infrações funcionais dos militares sujeitos aos seus comandos.

Os conceitos de hierarquia e de disciplina também podem ser extraídos do Estatuto dos Militares (Lei Federal nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980). Vejamos:

Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.

§ 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade.

§ 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

Na lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho[1]:

(...) a hierarquia e a disciplina são caracteres indelevelmente associados às Forças Armadas. Dada a natureza das ações em que se empenham, é essencial para as Forças Armadas a definição do comando. Realmente, não podem elas atuar eficientemente se cada soldado não souber quem comanda e qual o âmbito de comando de cada um. Por isso a hierarquia é inerente a qualquer das Forças Armadas. A disciplina, por sua vez, decorre necessariamente da hierarquia. Esta não existiria se os subordinados não obedecessem aos superiores, se o comando não correspondesse à obediência.

Com a mesma brevidade, diga-se que a CF/88 conferiu às Forças Armadas a missão principal de defender a Pátria contra agressões estrangeiras e garantir a existência e o livre exercício dos poderes constitucionais. Note-se que a defesa da lei e da ordem é uma atribuição de caráter subsidiária e eventual, visto que essa função compete precipuamente aos órgãos de segurança pública dos Estados e do Distrito Federal.

No que tange aos membros que as compõem, cumpre afirmar que a nova redação constitucional os denominou simplesmente “militares” (art. 142, §3º), em substituição à antiga expressão “servidores militares federais” constante da redação primitiva da Constituição Federal[2]. Isso porque a partir da Emenda Constitucional nº 18/08 a expressão “Servidores Públicos Militares” foi alterada para “Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios” (Título III, Capítulo VII, Seção III), ao passo em que os “militares das Forças Armadas” passaram a ser chamados simplesmente “militares”, e não mais “servidores militares federais”. Já a denominação “Servidores Públicos Civis” foi substituída por “Servidores Públicos” (Título III, Capítulo VII, Seção II). Com efeito, vê-se que a EC nº 18/08 retirou dos militares a qualificação de servidores públicos para enquadrá-los como categoria autônoma de agentes públicos: “Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios” e “militares das Forças Armadas”.


3.                  A ATIVIDADE MILITAR E A RELAÇÂO DE ESPECIAL SUJEIÇÃO:

É consabido que as atividades rotineiras das Forças Armadas exigem dos seus membros um elevado nível de saúde física e mental, seja em tempo de paz, em função dos treinamentos constantes a que são submetidos, seja por ocasião de eventuais conflitos. Tal constatação conduz à inexorável conclusão de que eles devem sempre apresentar uma satisfatória higidez física e psicológica para o bom desempenho das suas atribuições.

É assim que já no ingresso para os quadros das Forças Armadas o candidato é submetido a uma série de exames médicos e testes de aptidão física e psicológica destinados a apurar a sua capacidade para as atividades militares. Durante a formação ele passa por testes que condicionam a sua permanência na carreira militar, envolvendo maneabilidade, patrulhas, marchas, sobrevivência, pistas de obstáculos, acampamentos, manobras, treinamento com simulação de situações de conflito, dentre outros. E, principalmente após essa fase de formação, os militares são corriqueiramente submetidos a situações de extrema exigência física e mental, a exemplo da participação em combates, operações especiais ou em forças internacionais de paz.

Deste modo, a rigorosa rotina inerente a atividade militar exige dos seus membros um estado de aptidão física e mental diferenciados como condição para o pleno desempenho da atividade militar e até mesmo como salvaguarda à integridade física pessoal e de seus companheiros de caserna.

Apenas a título de exemplo do rigor físico exigido, diga-se que um militar completamente equipado para participar de escala de serviço armado de guarda às instalações militares – atividade absolutamente rotineira na vida castrense, da qual participam militares da graduação de Soldado até Major – usando colete balístico nível 3 (4,6 Kg), uma Pistola 0.9 mm com carregador (2,5Kg), capacete (1,5 Kg) e meia-bota (1,4 Kg), portará um equipamento com peso total igual a 10 Kg. E isto em situação de rotina. Em um campo de batalha, esse peso ainda aumenta consideravelmente devido aos equipamentos que são portados na mochila[3].

Consignamos isso para dizer que as peculiaridades e as obrigações inerentes à vida castrense impõem e justificam a existência de um tratamento jurídico especial para os militares, o que caracteriza uma relação de especial sujeição.

Essa relação de especial sujeição é marcada pela mitigação ou interferência nos direitos fundamentais dos militares que seriam inconstitucionais em relação aos servidores públicos civis e demais particulares, mas que são permitidas para os militares por configurarem uma necessidade daquela relação de sujeição.

Sobre o tema, lição de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco[4]:

Há pessoas que se vinculam aos poderes estatais de forma marcada pela sujeição, submetendo-se a uma mais intensa medida de interferência sobre os seus direitos fundamentais. Nota-se nesses casos uma duradoura inserção do indivíduo na esfera organizativa da Administração. ‘A existência de uma relação desse tipo atua como título legitimador para limitar os direitos fundamentais, isto é, justifica por si só possíveis limitações dos direitos dos que fazem parte dela.

Saliente-se, entretanto, que esse tratamento jurídico discriminatório em decorrência da relação de sujeição especial dos militares deverá guardar pertinência com as peculiaridades da vida castrense. Logo, apenas serão legítimos os discrimines quando necessários à persecução dos fins constitucionais das Forças Armadas. Não é outro o entendimento da doutrina[5]:

O estatuto dessas relações especiais de poder deve ter fundamento na Constituição, admitindo-se a ordenação específica de alguns direitos, quando necessária para o atingimento dos fins constitucionais que justificam essas relações. A legitimidade da compressão dos direitos fundamentais há de ser apurada mediante um esforço de concordância prática e de ponderação dos valores contrapostos em cada caso. Não se pode partir do pressuposto de que, nos casos de inclusão voluntária nesses estatutos, o indivíduo tenha renunciado aos direitos fundamentais (que são irrenunciáveis em bloco). A limitação aos direitos se torna admissível quando se constituir em meio necessário para a obtenção dos fins, com respaldo constitucional, ínsito às relações especiais de poder. Por isso, essas limitações hão de ser proporcionais, não tocando todos os aspectos da vida do sujeito.

Com efeito, nem toda espécie de discriminação encerra uma afronta ao princípio da isonomia. De acordo com o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello[6], para que uma discriminação seja constitucional deve existir uma relação de congruência entre a exigência estabelecida e o motivo que a determinou. Portanto, essas normas especiais devem se revelar indispensáveis e imprescindíveis ao bom desempenho da função militar, sob pena de ofensa aos princípios da isonomia e da acessibilidade de todos ao exercício de função administrativa.

Com suporte nesse entendimento, alguns direitos fundamentais dos militares são expressamente restringidos pela Constituição Federal, cite-se: a possibilidade de prisão fora do contexto do flagrante delito ou sem ordem escrita e fundamentada da autoridade competente (art. 5°, LXI), a vedação de alistamento eleitoral no período de serviço militar obrigatório (art. 14, §2º), o impedimento de concessão de habeas corpus nas punições disciplinares militares (art. 142, §2º), e a proibição de sindicalização e greve (art. 142, §3°, IV).

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Outros, ainda que não expressamente autorizados pela CF/88, também exigem uma grau maior de reserva, a exemplo da liberdade de expressão, cuja restrição pode se mostrar necessária para a manutenção da hierarquia e da disciplina; assim como o sigilo médico, quando a não revelação de uma doença contagiosa ou que importe a redução da capacidade do militar de exercer suas atividades típicas ponham em risco a sua própria vida ou a de toda a tropa.

O regime especial dos militares também justifica um maior rigor com a capacidade física de seus membros. Imagine-se o caso de um pequeno problema de visão que seria irrelevante para o exercício de atividades profissionais em geral, mas inadmissível a um piloto de caça, em virtude da acuidade visual que se lhe exige.

Destarte, algumas dessas regras especiais já são cominadas antes mesmo da aquisição da condição de “militar”, vez que constantes dos regramentos que regulam o ingresso nos quadros das Forças Armadas.

Como exemplo, cite-se a requisição do teste de HIV, que, embora suscite muitas polêmicas, vem se mostrando uma exigência bastante comum nos seus processos seletivos.

De um lado, aduz-se que essa exigência guarda total compatibilidade com as especificidades da vida castrense e atende fielmente ao princípio da isonomia e aos demais dispositivos constitucionais afetos aos militares. De acordo com esse entendimento, o teste se justifica diante da necessidade de preservar a higidez física do portador do vírus e dos demais militares. De fato, não se pode olvidar que todo militar é um doador de sangue em potencial, seja em situação real de conflito, seja em treinamento ou no suporte a situações de catástrofe. É notório também que as atividades militares envolvem um imensurável risco de trauma e infecção que podem comprometer o sistema imunológico dos portadores do HIV.

Consoante com esse entendimento, a Advocacia-Geral da União (AGU) assegurou no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Agravo de Instrumento nº 0075103-962010.4.01.0000) a legalidade dos editais de concurso para ingresso na Marinha que previam como condições de inaptidão para o cargo a presença de patologias ou uso de medicações que gerem imunodepressão – AIDS.[7]

Em caso semelhante, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, nos autos da Ação Civil Pública nº 2002.02.01.019469-5, confirmou a possibilidade de sujeição dos ainda candidatos e dos militares da ativa ao exame para detecção do vírus HIV, com fundamento nas peculiaridades da vida militar e na proteção ao direito da saúde de terceiros e do próprio examinado.

Note-se que a realização de testes de HIV é uma exigência que se impõe também aos que já pertencem aos quadros das Forças Armadas. Como exemplo, cite-se a Portaria nº 431/09 do Ministério da Defesa[8], que criou uma fórmula de readaptação funcional, por meio da qual é facultado ao militar infectado, mas assintomático, o desenvolvimento de outras atividades compatíveis com sua condição (art. 4º, inciso II).

Por outro lado, argumenta-se que a medicina vem apresentando surpreendentes resultados no sentido de melhorar a qualidade de vida dos indivíduos infectados, de forma que a mera infecção pelo vírus não representaria um impedimento para o regular desenvolvimento das atividades. Ademais disso, aduz-se que o art. 7º da Constituição Federal veda qualquer forma de discriminação no critério de seleção dos trabalhadores.

Nessa senda, a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da AIDS[9] e a Resolução nº 1.665/2003[10] do Conselho Federal de Medicina proíbem a realização compulsória de testes de HIV/AIDS.

Outra regra especial que condiciona a aquisição da condição de militar é a exigência de uma dada idade mínima e máxima como critério de admissão nas Forças Armadas. Tal restrição parece encontrar guarida no próprio inciso X, §3º, do art. 142 da CF, que remete à lei o mister de fixar os limites de idade para ingresso nas Forças Armadas. E não é só. A regra constante do inciso XXX, do art. 7º, da Carta Magna, que proíbe a diferença de critério de admissão por motivo de idade, não se aplica aos militares por força da ausência de remissão expressa pelo art. 142, inciso VIII, também da CF.

Sem embargo dessa autorização constitucional, não se pode olvidar que a exigência de limites de idade em concursos públicos para as Forças Armadas só será legítima se restar comprovada sua razoabilidade em vista da natureza e da complexidade das atividades que serão desenvolvidas. Esse é o entendimento fixado na recente Súmula nº 683 do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual o limite de idade é permitido desde que justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido.

Outro ponto que merece destaque é a exigência do estado civil “solteiro” como requisito de ingresso nos quadros das Forças Armadas. Também aqui vale a regra da ausência de remissão expressa pelo art. 142, inciso VIII, da CF, que deixou de aplicar aos militares o dispositivo que veda a diferença por motivo de estado civil.

Na prática, essa restrição se justifica diante da longa duração e do extremo rigor de alguns cursos militares, a exemplo dos cursos da Escola de Aprendizes-Marinheiros, do Colégio Naval e da Escola Naval, que exigem do candidato dedicação exclusiva e integral, sendo imposto o regime de internato, o que implica no afastamento compulsório e prolongado da família.

Compartilhando esse entendimento, jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:

ADMINISTRATIVO. MILITAR. CONCURSO PÚBLICO. ESTADO CIVIL. SOLTEIRO. EXIGÊNCIA. ART.142, X DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI 6.680/80. POSSIBILIDADE. - O art. 142, inciso X, da Constituição Federal, estabelece que a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades. - A norma constitucional acima transcrita recepcionou a Lei nº 6.880/80, art.144, §2º que dispõe: É vedado o casamento às praças especiais, com qualquer idade, enquanto estiverem sujeitas aos regulamentos dos órgãos de formação de oficiais, de graduados e de praças, cujos requisitos para admissão exijam a condição de solteiro, salvo em casos excepcionais, a critério do Ministro da respectiva Força Armada. A exigência determinando estado civil para ingresso no curso de formação de sargentos especialistas da Aeronáutica se mostra perfeitamente admissível e constitucional. Apelação improvida. (TRF5ª, Apelação em Mandado de Segurança nº 92204, Relator Desembargador Federal Cesar Carvalho, DJ 10/03/2006).

Todas essas hipóteses servem para ilustrar a existência de um vínculo muito mais estreito e especial entre as Forças Armadas e os seus respectivos membros do que aquele que se instala entre os servidores públicos civis e a Administração Pública. Tal relação representa uma especial sujeição do militar em relação ao Poder Público, o que legitima a imposição de regras diferenciadas para o ingresso nos seus quadros.


4.                  INSTRUMENTO LEGAL PARA A IMPOSIÇÃO DE REQUISITOS DE INGRESSO NAS FORÇAS ARMADAS:

Constatada a possibilidade da imposição de regras especiais para o ingresso nas Forças Armadas, resta saber qual o instrumento legal apto a veicular essas regras.

O inciso X, do artigo 142, da CF, acrescentado pela EC nº 18/98, assim dispôs sobre o regime jurídico dos membros das Forças Armadas, in verbis:

Art. 142. (...)

X – a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra. (grifamos)

Como se pode observar, a Carta Magna é bastante clara aos estabelecer que os requisitos a serem impostos para a investidura nos quadros castrenses deverão necessariamente constar em lei. Trata-se de uma reserva legal absoluta, cuja disciplina é reservada à lei em sentido estrito, qual seja: àquela ordinariamente elaborada pelo Poder Legislativo.

Nesse sentido, José Afonso da Silva[11] leciona que:

É absoluta a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é reservada pela Constituição à lei, com exclusão, portanto, de qualquer outra fonte infralegal, o que ocorre quando ela emprega fórmulas como: “a lei disporá”, “a lei complementar organizará”, “a lei criará”, “a lei poderá definir” etc.

É relativa a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é em parte admissível a outra fonte diversa da lei, sob a condição de que esta indique as bases em que aquela deve produzir-se validamente. Assim é quando a Constituição emprega fórmulas como as seguintes: “nos termos da lei”, “no prazo da lei”, “na forma da lei”, “com base na lei”, “nos limites da lei”, “segundo critérios da lei”.

São, em verdade, hipóteses em que a Constituição prevê a prática de ato infralegal sobre determinada matéria, impondo, no entanto, a obediência a requisitos ou condições reservados à lei. Por exemplo, é facultado ao Poder Executivo, por decreto, alterar alíquotas dos impostos sobre importação, exportação, produtos industrializados e operações de crédito etc., atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei (art. 153, §1º).

Tal remissão à lei também decorre do direito fundamental ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, que apenas pode ser mitigado pelas qualificações profissionais fixadas em lei, conforme dispõe o art. 5º, XIII, da CF. Destarte, a acessibilidade nada mais é do o princípio da legalidade aplicado aos cargos e funções públicas.

Assentadas essas bases, é forçoso concluir que os requisitos limitadores para o ingresso nas Forças Armadas devem ser impostos somente por lei.

Não obstante isso, o Estatuto dos Militares, diga-se anterior ao ordenamento constitucional vigente, ao dispor sobre o ingresso nas Forças Armadas conferiu também aos regulamentos o mister de estabelecer esses requisitos. Vejamos:

Art. 10. O ingresso nas Forças Armadas é facultado, mediante incorporação, matrícula ou nomeação, a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei e nos regulamentos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.

E com espeque nesse dispositivo, as Forças Armadas vêm reiteradamente fazendo uso de regulamentos internos e até mesmo de editais que regem os seus concursos para inovar no estabelecimento de requisitos para ingresso nos seus quadros. Como exemplo, cite-se a DGPM-406 da Diretoria-Geral de Pessoal da Marinha[12], que, a despeito da inexistência de lei fixando os requisitos de ingresso, veicula uma série de requisitos para admissão nos seus cursos de formação.

Contudo, essa não nos parece ser a melhor prática administrativa. Ora, se a Constituição Federal preconiza com clareza ímpar que o ingresso nos quadros militares dar-se-á na forma disposta em lei, as exigências contidas em meros regulamentos e editais só serão legítimas se tiverem anterior suporte legal prescrevendo-as.

Portanto, na qualidade de atos infralegais, os regulamentos e editais castrenses não podem servir de instrumento hábil para inovar no ordenamento jurídico estabelecendo requisitos de ingresso ou mesmo criando obrigações para os candidatos em concurso público.

Além de atentar contra a legalidade, a fixação de requisitos de ingresso sem que exista lei anterior regulamentando a matéria fere também o princípio da separação dos poderes, isso em função da usurpação indevida de competências que Constituição Federal atribuiu ao Poder Legislativo.

Nessa toada, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a exigência constitucional de lei para fixar o limite de idade para ingresso nas Forças Armadas. A decisão, tomada nos autos do Recurso Extraordinário nº 600885, considerou contrária à Constituição Federal de 1988 a regra de edital que limitou em 24 anos a idade para ingresso nas Forças Armadas. E mais: a Suprema Corte considerou que o dito artigo 10 do Estatuto dos Militares não foi recepcionado pela Constituição de 1988. Vejamos a ementa do referido julgado:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA INGRESSO NAS FORÇAS ARMADAS: CRITÉRIO DE LIMITE DE IDADE FIXADO EM EDITAL. REPERCUSSÃO GERAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. SUBSTITUIÇÃO DE PARADIGMA. ART. 10 DA LEI N. 6.880/1980. ART.142, § 3º, INCISO X, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. DECLARAÇÃO DE NÃO-RECEPÇÃO DA NORMA COM MODULAÇÃO DE EFEITOS. DESPROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

1. Repercussão geral da matéria constitucional reconhecida no Recurso Extraordinário n. 572.499: perda de seu objeto; substituição pelo Recurso Extraordinário n. 600.885.

2. O art. 142, § 3º, inciso X, da Constituição da República, é expresso ao atribuir exclusivamente à lei a definição dos requisitos para o ingresso nas Forças Armadas.

3. A Constituição brasileira determina, expressamente, os requisitos para o ingresso nas Forças Armadas, previstos em lei: referência constitucional taxativa ao critério de idade. Descabimento de regulamentação por outra espécie normativa, ainda que por delegação legal.

4. Não foi recepcionada pela Constituição da República de 1988 a expressão “nos regulamentos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica” do art. 10 da Lei n. 6.880/1980.

5. O princípio da segurança jurídica impõe que, mais de vinte e dois anos de vigência da Constituição, nos quais dezenas de concursos foram realizados se observando aquela regra legal, modulem-se os efeitos da não-recepção: manutenção da validade dos limites de idade fixados em editais e regulamentos fundados no art. 10 da Lei n. 6.880/1980 até 31 de dezembro de 2011.

6. Recurso Extraordinário desprovido, com modulação de seus efeitos. (RE 600885/ RS. Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgado em 09/02/2011).

Note-se que, em função da mora do Congresso Nacional em expedir a lei a que se refere à CF/88, a Corte decidiu validar, até 31 de dezembro de 2011, todas as admissões ocorridas em função de regulamentos e editais que, até então, vinham estabelecendo as condições para ingresso nas diversas carreiras militares. Contudo, desde janeiro de 2012 a fixação de requisitos para o ingresso nas Forças Armadas, dentre eles o limite de idade, deve preceder a existência de uma lei.

Em tempo, registre-se que atualmente apenas a Força Aérea dispõe de uma lei estabelecendo os requisitos de ingresso nos seus cursos de formação, qual seja: Lei nº 12.464, de 5 de agosto de 2011.


5.                  CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Como vimos, as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina, e destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.

As peculiaridades da vida castrense e a relação de especial sujeição a que estão submetidos os seus membros justificam a imposição de uma série de regras diferenciadas para o ingresso nos seus quadros, desde que, por força do princípio da isonomia, essas regras sejam um meio necessário para a obtenção das finalidades constitucionais das Forças Armadas. Ou seja, a cominação de condições especiais deve guardar compatibilidade com a atividade militar.

É assim que, hodiernamente, observamos a presença de uma série de requisitos especiais para o ingresso nos seus quadros, tais como teste de HIV, idade, estado civil, altura, dentre outros.

De outra parte, sem perquirir a constitucionalidade da imposição dessas regras especiais, é imperativo que elas sejam previamente autorizadas por lei em sentido estrito, conforme determina o inciso X, do art. 142, da Constituição Federal, sendo certo que os regulamentos e editais não são os instrumentos aptos para inovar na ordem jurídica e impor originariamente esses requisitos.


6.                  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira, Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1999.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de Direito Constitucional, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2009.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 22ª edição, São Paulo: Malheiros, 2007.

SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 28ª edição, São Paulo: Malheiros, 2007.


Notas

[1] Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p.142.

[2] Art. 42. São servidores militares federais os integrantes das Forças Armadas e servidores militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal os integrantes de suas polícias militares e de seus corpos de bombeiros militares.

[3] Exposição de Motivos nº 00221/MD anexa ao Projeto de Lei que dispõe sobre os requisitos para ingresso nos cursos de formação de militares de carreira do Exército.

[4] Curso de Direito Constitucional, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 291

[5] Curso de Direito Constitucional, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 292

[6] Curso de Direito Administrativo, 22ª edição, São Paulo: Malheiros, 2007.

[7] Disponível em: http://agu.gov.br/sistemas/site/TemplateImagemTexto.aspx?idConteudo=159199&id_site=3

[8] Disponível em: https://www.defesa.gov.br/sistemas/bdlegis/normas/norma.pdf

[9] Disponível em: http://www.aids.gov.br/pagina/direitos-fundamentais

[10] Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2003/1665_2003.htm

[11] Curso de Direito Constitucional Positivo, 28ª edição, São Paulo: Malheiros, 2007, p. 423/424

[12] Disponível em: http://www.revistadodireitomilitar.com/mwg-internal/de5fs23hu73ds/progress?id=bmmBW3I1df

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Sobre o autor
Felipe Ferreira Libardi

Advogado da União em Brasília (DF). Coordenador de Legislação Militar da Consultoria Jurídica do Ministério da Defesa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIBARDI, Felipe Ferreira. Requisitos de ingresso nas Forças Armadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3235, 10 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21724. Acesso em: 4 nov. 2024.

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