Introdução
Seja no primeiro grau de jurisdição ou nas decisões plenárias dos tribunais, observa-se que a aplicação das normas legais, ou a aplicação isolada dessas, perde cada vez mais espaço.
É muito difícil encontrar uma decisão judicial que apenas realize a “subsunção do fato à norma” - expressão ainda bastante utilizada como estandarte do modelo jurídico positivista - sem fazer referência a algum princípio expressa ou implicitamente contido na Constituição.
Nesse contexto, enquanto uma maioria comemora a alteração de paradigma utilizado nos julgamentos, com a mudança do foco legal para outro, constitucional, ressaltando os benefícios do juiz poder apreciar o caso concreto em suas particularidades, flexibilizando as rígidas balizas da lei, geral e abstrata, alguns, há algum tempo, apontam graves falhas no modelo.
Sem ter o objetivo de apontar com quem está a razão nesse debate, o presente ensaio visa ressaltar as peculiaridades da função de julgar a partir da ótica pós-positivista (ou neopositivista), destacando o lado profícuo e as dificuldades da adoção do modelo.
Além desse objetivo, será destacada a importância das ciências sociais afins à ciência jurídica na elaboração e aplicação do modelo pós-positivista.
2 Jusnaturalismo, positivismo e pós-positivismo
Na Teoria Jurídica, a maioria dos doutrinadores destaca que o conceito jusnaturalismo tem sido aplicado a fases históricas e conteúdos diversos.
A ideia básica do direito natural consiste no reconhecimento da existência de um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas, que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado (BARROSO, 2010, p. 235).
À míngua da existência de diversas variantes, o jurista Luís Roberto Barroso pontua que o jusnaturalismo se apresenta, fundamentalmente, em duas versões.
A primeira se caracteriza por ser uma lei estabelecida pela vontade de Deus. Já a segunda, por ser uma lei ditada pela razão.
O direito natural moderno se desenvolveu a partir do século XVI, no momento em que se buscava afastá-lo do ambiente teológico que o caracterizava durante a Idade Média.
O reconhecimento de que o homem era titular de um mínimo de integridade e de liberdade, ademais, fundamentou várias das revoluções liberais ocorridas no final do século XVIII, com destaque para a Independência Americana e para a Revolução Francesa.
No início do século XIX, entretanto, o histórico processo de desenvolvimento e reconhecimentos dos direitos naturais passaram a ser incorporados (positivados) de maneira generalizada aos ordenamentos jurídicos estatais. A partir de então, considerado metafísico e anticientífico, o direito natural passou a ser abandonado pelos aplicadores do direito, em face da ascensão do direito legislado.
Com efeito, a filosofia, principalmente no que se refere ao tratamento dado às questões de liberdade, igualdade, justiça, constituiu importante fonte do direito natural (BARCELLOS, 2000, p. 10).
Com muita pertinência, a professora Ana Paula de Barcellos leciona que após a fase áurea do jusnaturalismo, ocorrida entre o final do século XVIII e início do séulo XIX, as ideias desenvolvidas no âmbito da filosofia ocidental haviam se incorporado à realidade jurídica. Pondera que, talvez por isso, tendo absorvido os elementos propostos pela reflexão filosófica, os juristas tenham entendido que poderiam prescindir dela, motivo pelo qual a sequência histórica reservou para o pensamento jusfilosófico não apenas um novo nome – filosofia do direito – mas também um século de ostracismo.
Alguns juristas, ademais, inferem que a aludida incorporação, ao mesmo tempo que importou o reconhecimento de direitos naturais, caracterizou o início do fim do jusnaturalismo, na medida em que a validade e eficácia daqueles passou a decorrer de sua positivação.
Sobre o momento histórico de desenvolvimento do positivismo, a Revolução Francesa pretendia romper com a monarquia, com a nobreza, com o clero e com a magistratura (ZANINI, 2008, p. 36).
Em relação à magistratura, Leonardo Estevam de Assis Zanini pontua que não mais se aceitava que o direito fosse um instrumento de perpetuação do satatus quo, com os juízes sendo influenciados pelo meio, decidindo, no mais das vezes, de acordo com a praxe e o costume.
Nesse contexto, as decisões não seguiam nenhum parâmetro objetivo, imperando o casuísmo, invariavelmente contrário à vontade da maioria.
A exigência dos jurisdicionados era da criação de um sistema legal único, que fosse obrigatório para todos, não estabelecendo distinções entre os cidadãos, ou seja, uma legislação que garantisse a liberdade e a igualdade.
Com a derrubada do antigo regime, buscou-se afastar a insegurança dos julgados por meio de um sistema jurídico que garantisse a previsibilidade e a segurança das decisões, restringindo a interpretação casuística realizada por qualquer órgão julgador.
Dessa orientação surgiu a famosa expressão acerca do papel do magistrado, qual seja, a de funcionar como “a boca da lei”, aplicando-a estritamente, a partir de um raciocínio puramente dedutivo.
Pressupunha-se a completude do sistema normativo, onde haveria uma norma para cada caso, sendo o código um prontuário do qual o juiz não poderia se afastar. A lei, por sua vez, una, geral e abstrata, deveria ser aplicada de maneira uniforme e provir apenas de uma fonte, o Estado. Não eram reconhecidos, por conseguinte, os direitos não previstos na lei.
Já no século XX, Hans Kelsen desenvolveu essa ideia de sistema fechado, afastando a intrusão de juízos de valor na análise jurídica do direito positivo. O jusfilósofo entendia o direito como um sistema autônomo ou auto-suficiente em relação ao sistema social, de modo que o trabalho do jurista se desenvolve inteiramente dentro dele, não havendo que se falar em intromissão da sociologia, antropologia, economia ou psicologia (ZANINI, 2008, p. 39). Dessa forma, a Teoria Pura do Direito trabalhava com a ideia do sistema fechado.
Dentre as características fundamentais do sistema fechado previsto pelo positivismo jurídico, tem-se a rígida estrutura formal, com hierarquia entre as normas; a aproximação quase plena entre Direito e norma; a afirmação da estatalidade do Direito e o papel do juiz apenas o de executar a subsunção do fato concreto à norma jurídica.
Ocorre que, em diferentes partes do mundo, o fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do postivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. O professor Luís Roberto Barroso assim resume: “a ideia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem”. (BARROSO, 2010, p. 241).
Nesse contexto, tem-se que a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do regime nazi-fascista, após a Segunda Guerra Mundial, que, dentro do quadro de legalidade vigente à época, promoveu a barbárie em nome da lei.
Ao fim do conflito global, não havia mais espaço para defender a manutenção de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, que veiculasse, validamente, qualquer conteúdo.
A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. Assim, o pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem algumas ideias de justiça além da lei e de igualdade material mínima, advindas da teoria crítica, ao lado da teoria dos direitos fundamentais e da redefinição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica (BARROSO, 2010, p. 242).
Outro traço marcante do novo sistema é o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais, centrada no princípio da dignidade da pessoa humana, promovendo-se uma reaproximação entre Direito e ética.
3 O pós-positivismo e o papel do juiz
A complexidade das relações sociais contemporâneas e a aceleração da mudança de valores impossibilitaram a manutenção do pensamento segundo o qual as regras jurídicas poderiam normatizar e tutelar qualquer relação social.
Percebeu-se que, em alguns casos, a solução de alguns casos por meio da subsunção do fato à regra jurídica mediante simples dedução se tornara impossível ou gerava soluções insatisfatórias.
A figura do juiz “preso à letra da lei”, desse modo, não era capaz de alcançar um dos principais objetivos da jurisdição, a pacificação social.
Conforme visto, a identificação do Direito com as regras positivadas não estava em consonância com as mudanças sociais ocorridas e dava respaldo jurídico às atrocidades ocorridas no regime Nazi-Fascista, além de garantir sustentação em Estados ditatórias.
Nesse contexto, tornou-se imperioso ao Direito retomar e estreitar o contato com as demais ciências sociais, afastando-se de seu isolamento. Citando Norberto Bobbio, Leonardo Zanini ressalta que o Direito é um subsistema que se posiciona ao lado dos outros subsistemas, tais como o econômico, o cultural o social e o político, motivo pelo qual é necessária a abertura do sistema jurídico (ZANINI, 2008, p. 40).
Tal ocorre porque, em determinados casos, o julgamento pelo magistrado demanda a apreciação de conceitos extrajurídicos. A possibilidade de buscar a determinação e a precisão desses conceitos depende de conhecimentos fornecidos pelas citadas ciências sociais, ou pela ecologia, engenharia ou pelos costumes.
Ao mesmo tempo, some-se um dado observado em relação ao processo legislativo brasileiro.
Já há algum tempo, importantes questões esperam normatização. Como exemplo, pode-se citar o exercício de greve por parte de servidores públicos, a legalização do aborto e a união homoafetiva.
Todos são assuntos polêmicos e despertam debates acirrados entre os partidários de uma ou outra tendência. A polêmica, entretanto, não possui afinidade com a grande maioria dos congressistas brasileiros, que temem a reação popular, e a consequente perda de votos, decorrente de um posicionamento eventualmente tomado em relação a dada tese.
Não obstante a existência dessas lacunas, uma infinidade de controvérsias surge em torno desses temas e precisa ser enfrentada pelo Poder Judiciário.
Ao julgar uma demanda envolvendo o aborto de feto anencéfalo, a correta análise pelo magistrado ultrapassa a seara jurídica e, inevitavelmente, envolve questões éticas, médicas, religiosas. Da mesma maneira, não pode a apreciação jurídica de um caso de união homoafetiva prescindir do debate acerca da realidade social.
A partir da base sobre a qual se desenvolve o pós-positivismo, o magistrado teve incrementado o poder criativo para melhor adequar as normas jurídicas ao caso concreto. Há, assim, uma maior possibilidade do juiz participar ativamente da construção do sistema normativo.
Todavia, ao mesmo tempo em que se aumenta a discricionariedade do julgador na concretização do ordenamento jurídico, exige-se qualidade superior da magistratura, que deixa de aplicar o Direito somente pelo método lógico-dedutivo e passa a contextualizar regras, princípios jurídicos e conhecimentos de outras ciências na solução do caso concreto.
Não se pode deixar de registrar que, se por um lado, essa tendência defere ao magistrado amplo poder de decisão e de apreciação, o que poderia ser considerado um fator de insegurança jurídica, por outro lado, permite a aplicação do Direito preocupado com a realidade social e, por conseguinte, com a justiça.
Nesse ponto, o magistrado deve estar consciente das consequências advindas de seus julgamentos, porque a segurança jurídica não dependerá apenas da criação pelo legislador de normas gerais e abstratas para o caso concreto, mas da solução judicial dada com base nelas.
A busca pela melhor aplicação das normas ao caso concreto não pode importar um casuísmo irresponsável, com desprestígio total do Direito legislado que, em última análise, é produto da vontade da maioria.
Por se colocar mais próximo à questão a ser decidida, o juízo de primeiro grau tem sua função prestigiada. Tal posição aumenta a responsabilidade do magistrado em fundamentar suas decisões, principalmente quando baseadas em princípios, alicerçando-as na Constituição, circunstância essa que demandará maior tempo e comprometimento do juiz.
Para tanto, em boa hora passou-se a exigir, quando do ingresso na magistratura, conhecimentos que extrapolam a ciência jurídica[1].
A formação humanística do magistrado, o domínio das ciências sociais e a preocupação nos efeitos práticos e multiplicadores de seus atos decisórios, ademais, são imprescindíveis para a sua correta inserção no sistema pós-positivista.
4 Conclusão
A maior liberdade decisória conferida ao magistrado pelo pós-positivismo aumenta a sua responsabilidade e seu comprometimento na solução dos conflitos submetidos a sua apreciação.
Na medida em que se caracteriza uma terceira via entre o jusnaturalismo e o positivismo, o pós-positivismo não pode padecer dos males que, individualmente, atingiram cada um daqueles sistemas.
Dessa forma, o conhecimento da realidade social e das repercussões econômicas e políticas de suas decisões, que depende de conhecimento das ciências sociais relacionadas ao ordenamento jurídico, é imprescindível para que o magistrado aplique as normas do sistema sem comprometer a segurança jurídica, afastando, desse modo, as críticas incidentes sobre o jusnaturalismo.
Por outro lado, a aplicação das regras jurídicas, considerando as particularidades de cada caso e a realidade social, considerando que o texto legal é apenas um dos domínios normativos, evitará os exageros formalistas do positivismo jurídico.
Para tanto, são imprescindíveis as medidas que repensam os requisitos para ingresso na magistratura, bem como o aperfeiçoamento de seus membros, buscando não só a excelência em conhecimentos jurídicos, mas também as ciências correlatas.
4 Bibliografia
BARCELLOS, Ana Paula de. As relações da filosofia do direito com a experiência jurídica. Uma visão dos séculos XVIII, XIX e XX. Algumas questões atuais. Rio de Janeiro: Revista Forense, 351:3, 2000.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
ZANINI, Leonardo Estevam de Assis . A modernização do direito civil e as cláusulas gerais. Brasília: Revista do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, v. 20, 2008.
[1] Resolução/CNJ n. 75, de 12 de maio de 2009.