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Responsabilidade civil dos pais nos casos de abandono afetivo dos filhos

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Resumo:


  • O afeto é central nas relações familiares, sendo reconhecido por normas jurídicas que impõem aos pais o dever de convivência, orientação e formação da personalidade dos filhos, com reflexos na sociedade.

  • A responsabilidade civil, com seus elementos de conduta ilícita, dano e nexo causal, pode ser aplicada em casos de abandono afetivo, visando compensar o prejuízo moral sofrido e desestimular tal prática.

  • Apesar de posições doutrinárias favoráveis e da existência de decisões judiciais isoladas que reconhecem a indenização por abandono afetivo, a jurisprudência predominante nos tribunais brasileiros tem rejeitado a responsabilização civil nesses casos, alegando a ausência de ato ilícito ou a impossibilidade de quantificar o afeto.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3 RESPONSABILIDADE CIVIL

Sabendo-se da existência de normas protetivas do afeto, torna-se importante analisar se o descumprimento de tais preceitos e a consequente ocorrência de dano para a criança daria ensejo à responsabilização civil. Para tanto, deve-se conhecer o conceito de responsabilidade civil, seus elementos e efeitos, bem como, enquadrar o abandono afetivo dentro desses aspectos a fim de permitir ou não a responsabilização nesses casos.

3.1 CONCEITO DE RESPONSABILIDADE CIVIL

O Direito não tolera atitudes que causem prejuízo patrimonial ou moral a outrem, portanto, toda atividade que ocasione um dano gera responsabilidade, quer dizer, o dever de reparar o dano.[51] Nem sempre essa reparação é de fácil determinação, pois os relacionamentos humanos estão em constante expansão originando novos conflitos, o que impulsiona a criação de soluções mais adequadas.[52] Por envolver todos os âmbitos da vida em sociedade, a responsabilidade civil possui um campo ilimitado de incidência podendo repercutir em todas as atividades humanas, constituindo-se em “um dos árduos e complexos problemas jurídicos e de mais difícil sistematização”.[53]

Nas primeiras organizações sociais o que predominava em sede de responsabilidade civil era a noção de vingança coletiva, o grupo por inteiro punia o ofensor por ter lesionado o interesse de outro integrante do grupo. Posteriormente, adotou-se a vingança privada, segundo a qual, quem sofria o dando poderia por si mesmo obrigar o ofensor a repará-lo sofrendo o mesmo mal que causou, trata-se da Pena de Talião, assim, o poder público intervinha apenas para afirmar quando e em que medida a vítima teria o direito à retaliação. [54] Essa lei previa, ainda, a possibilidade de composição do dano, ao invés de se impor ao agressor o mesmo desequilíbrio em seus direitos, a vítima receberia uma importância em dinheiro por meio da solução transacional. [55]

Com a edição da Lei Aquilia, a idéia de reparação pecuniária foi cristalizada. Percebeu-se que a retaliação em nada contribuía pra a reparação do dano, ao contrário, ocasionava um duplo dano, o da vítima e o do ofensor, logo, seria mais adequado que o patrimônio do agressor suportasse o ônus da reparação mediante verificação da culpa. [56] Ademais, sua grande contribuição foi substituir as multas determinadas em valores fixos por penas proporcionais à lesão causada. O instituto evolui incluindo o elemento culpa, visto que, o ofensor somente responderia na medida em que tivesse ocasionado o dano, devendo, sim, reparar o dano, mas não ser apenas punido por ocorrência da agressão. Essa visão de responsabilidade perdurou, influenciando, inclusive, o Código Civil de Napoleão (primeira formulação expressa do tema) e o Código Civil brasileiro de 1916. [57]

No entanto, diante da dificuldade de, em alguns casos, determinar o elemento culpa, elaborou-se a teoria do risco, fundada no dever genérico de não prejudicar, nesse diapasão, o sujeito é responsável por riscos ou perigos que sua ação promova, mesmo que atue com todo o cuidado para a não ocorrência de danos. [58] Houve, portanto, na visão de Maria Helena Diniz, “uma reformulação da teoria da responsabilidade civil dentro de um processo de humanização. Este representa uma objetivação da responsabilidade, sob a ideia de que todo o risco deve ser garantido, visando a proteção jurídica à pessoa humana”. [59]

Assim, a responsabilidade, quanto à culpa do agressor, pode ser subjetiva ou objetiva. A responsabilidade subjetiva é aquela oriunda de um dano causado por um ato doloso ou culposo e está positivada no artigo 186 do Código Civil brasileiro de 2002: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” [60] (Original sem grifos).

Nota-se que a obrigação de reparar o dano é conseqüência juridicamente lógica do ato ilícito. Ademais, cada um responderá na medida que houver contribuído para o dano, isto é, por sua própria culpa, portanto, caberá ao autor comprovar que o ofensor agiu com culpa e a participação para ocorrência do evento danoso. [61]

Já a responsabilidade objetiva considera o perigo da atividade que o causador do dano realiza segundo sua própria natureza e a dos meios adotados, observa com mais importância o ato causador do dano. [62] Nesse caso, a conduta culposa ou dolosa é irrelevante, sendo necessário, para a existência do dever de indenizar, apenas que exista nexo causal entre a ação do agente e o prejuízo sofrido pela vítima. [63] Seguindo a teoria objetiva da responsabilidade civil, o parágrafo único do artigo 927 do atual Código Civil afirma que:

Art. 927. Parágrafo único - haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. [64]

A responsabilidade civil pode ser classificada, ainda, em contratual ou extracontratual. A contratual é aquela resultante da violação de um dever contratual, nesse caso, segundo Stolze e Pamplona Filho, a culpa é presumida, tendo em vista que “a própria parte se obrigou, diretamente, à obrigação, ora descumprida”. [65]  Silvio de Salvo Venosa afirma que seria adequado chamar responsabilidade negocial, pois, “não apenas do contrato emerge essa responsabilidade como também dos atos unilaterais de vontade em geral, como a gestão de negócios, a promessa de recompensa, o enriquecimento sem causa, entre outros”. [66]

Extracontratual ou aquiliana é, na definição de Maria Helena Diniz, a responsabilidade decorrente do: “inadimplemento normativo, ou melhor, da prática de um ato ilícito por pessoa capaz ou incapaz, visto que não há vínculo anterior entre as partes, por não estarem ligadas por uma relação obrigacional ou contratual”. [67]

Com base no exposto, pode-se conceituar a responsabilidade civil como a obrigação de reparar danos, sejam estes à pessoa ou ao patrimônio de outrem ou, ainda, a interesses coletivos. [68] Stolze e Pamplona Filho corroboram a ideia, afirmando que:

a responsabilidade civil deriva da agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim, o infrator, ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado anterior de coisas. [69]

Depreende-se dos conceitos apresentados que o instituto em comento pressupõe a existência de três elementos, quais sejam: a conduta, o dano e o nexo de causalidade.  

A conduta humana é a ação voluntária, positiva ou negativa, ou seja, comissiva ou omissiva, que resulte em dano para outrem. Deve ser uma conduta realizada voluntariamente pelo agente, com pleno domínio de sua vontade. A voluntariedade não diz respeito à finalidade de provocar o dano, mas à consciência quanto à prática dos atos materiais, portanto, a voluntariedade existe tanto em sede de responsabilidade subjetiva quanto objetiva. A conduta pode ser ilícita ou não. Deverá ser contrária ao direito quando a responsabilidade for subjetiva, porém, em se tratando de responsabilidade objetiva, a conduta que ocasionar dano, ainda que lícita, ensejará a indenização.[70] Em sentido contrário, Silvio de Salvo Venosa [71] entende que mesmo quando se trata de responsabilidade objetiva a conduta está eivada de ilicitude, diferenciando-se da responsabilidade subjetiva apenas porque o ato ilícito é incompleto, tendo em vista a supressão da culpa.

O dano, decorrente da ação omissão do agressor, é elemento indispensável para a responsabilização civil, devendo haver prova real e concreta da lesão ao bem ou interesse jurídico da vítima. [72] Assim, conforme Silvio de Salvo Venosa, “dano consiste no prejuízo sofrido pelo agente. Pode ser individual, moral ou material, ou melhor, econômico ou não econômico”. [73]

Maria Helena Diniz define o dano patrimonial como:

a lesão concreta, que afeta um interesse relativo ao patrimônio da vítima, consistente na perda ou deterioração, total o parcial, dos bens materiais que lhe pertencem, sendo suscetível de avaliação pecuniária e de indenização pelo responsável [74]

A autora informa que essa espécie de dano será medida pela diferença entre o patrimônio da vítima atual e o valor que possuiria se existisse a ofensa, é o que denomina de critério diferencial. Em alguns casos, é possível ao agressor realizar a reconstituição natural, permitindo que o patrimônio da vítima retorne ao estado no qual se encontrava antes da lesão. Em outras situações, no entanto, torna-se impossível restabelecer a situação anterior, devendo o indenizante buscar o estado mais próximo da situação frustrada por meio da reparação pecuniária. [75]

A seara mais complexa da responsabilidade civil repousa sobre o dano moral, conceituado por Silvio de Salvo Venosa como:

o prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima. Sua atuação é dentro dos direitos da personalidade. Nesse campo o prejuízo transita pelo imponderável, daí por que aumentam as dificuldades de se estabelecer a justa recompensa pelo dano. [76]

Segundo o autor, “será moral o dano que ocasiona um distúrbio anormal na vida do indivíduo; uma inconveniência de comportamento ou, como definimos, um desconforto comportamental a ser examinado em cada caso”. [77]  Em resumo, dano moral é aquele que atinge os direitos da personalidade da vítima, que, conforme Maria Helena Diniz citando Goffredo Telles Junior, “são direitos comuns da existência, porque são simples permissões dadas pela norma jurídica, a casa pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta”. [78]

Sendo assim, o dano moral envolve o que há de mais intímo no ser humano, os bens violados não são redutíveis a dinheiro, não possuem caráter econômico e dificilmente é possível o retorno à situação em que se encontrava antes da lesão, por isso a dificuldade em estabelecer a sua correta reparação.

Stolze e Pamplona Filho [79] apresentam os argumentos contrários à reparação do dano moral.  Dentre esses argumentos, encontra-se a dificuldade de descobrir a existência do dano, pelo qual o juiz pode ver verdadeira dor moral onde há apenas dimissulação de um sofrimento a fim de obter certa vantagem. Todavia, deve-se analisar a moralidade média do cidadão comum, por meio da razoabilidade é possível a análise do conjunto probatório com o escopo de verificar se houve mero desconforto da vida quotidiana ou efetivo dano moral.

Outra crítica que os referidos autores expõe é a impossibilidade de uma rigorosa avaliação em dinheiro e a imoralidade em compensar uma dor com dinheiro. Indubitável que não se pode avaliar economicamente o valor de uma dor moral, mas, não é em virtude disso que a pessoa vítima de um dano dessa natureza se veja sem nenhum meio para compensar seu sofrimento, bem como o ofensor permaneça impune quanto a conduta lesiva. A reaparação civil atua como lenitivo, como oferecimento de uma satisfação que atenue as consequência do prejuízo oriundo do dano por meio das vantagens que o dinheiro poderá oferecer, ademais, há o destímulo ao lesante a fim de inibir comportamentos semelhantes. [80]

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Por fim, o último elemento integrante da responsabilidade civil é o nexo de causalidade, isto é o liame entre a conduta do agente e o dano. Stolze e Pamplona Filho [81] explicam que parte da doutrina e a jurisprudência entendem ser adotada no Brasil a teoria da causalidade adequada, que considera causa o antecedente necessário e adequado para a produção do dano. Entretanto, os autores alhures citados entendem ser adotada a teoria da causalidade direta ou imediata, conforme a qual causa é o antecedente fático que apresenta o resultado danoso como sua consequência direta e imediata. Essa posição é também defendida por Carlos Roberto Gonçalves e Gustavo Tepedino.

A partir da compreensão do conceito de responsabilidade civil e de seus elementos é possível determinar suas funções: compensatória, punitiva e de desmotivação social ou pedagógica.

A função primordial é, sem dúvidas, a compensatória do dano a vítima. Maria Helena Diniz ensina que “o interesse em restabelecer o equilíbrio violado pelo dano é a fonte geradora da responsabilidade civil” [82], portanto, busca-se o retorno ao estado anterior, ressarcir o prejuízo suportado pela vítima.

Secundariamente, a responsabilidade é utilizada como sanção civil como muito bem explica, Maria Helena Diniz citando Goffredo Telles Junior:

a sanção é consequência jurídica que o não-cumprimento de um dever produz em relação ao obrigado. A responsabilidade civil constitui uma sanção civil, por decorrer de infração de norma de direito privado, cujo objetivo é o interesse particular. [83]

A imposição de uma indenização atua como compensação para a vítima e punição para o ofensor visando ao desestímulo da prática de novas condutas lesivas. Todavia, esse desestímulo não funciona apenas em relação ao agressor, mas também sobre a sociedade em geral, evidenciando a todos que o Direito não tolera situações provocadoras de danos para outrem, causadoras de desequilíbrio no direito que deve ser assegurado a cada uma das pessoas. [84] Nisso consiste a terceira função da responsabilidade civil, dotada de cunho socioeducativo, alcançando toda a sociedade.

3.2 APLICAÇÃO NOS CASOS DE ABANDONO AFETIVO

Para auferir a aplicação da responsabilidade civil aos casos de abandono afetivo dos pais em relação aos filhos é necessário o enquadramento desta situação a todos os elementos da responsabilidade civil, acima explicados.

Quanto à conduta, convém analisar se há ilicitude no ato de privar o filho de afeto na orientação e formação de sua personalidade, quer dizer, se a conduta está revestida de ilicitude. É certo que a responsabilidade no caso é a extracontratual, consagrada no artigo 186 do novel Código Civil, alhures transcrito, haja vista que os pais não se obrigam por contrato ou outro ato negocial a oferecerem afeto aos seus filhos, essa obrigação decorre diretamente de normas presentes no ordenamento jurídico brasileiro.

Ato ilícito, segundo Venosa, é “o comportamento voluntário que transgride um dever” [85], diferenciando ilícito civil do penal por este ser tipificado de modo escrito, enquanto aquele não necessita de tal tipificação. Portanto, havendo conduta voluntária que seja contrária a um dever legal ou contratual, haverá ilícito. Caso disso decorra um dano a direito de outra pessoa, será cabível a responsabilização civil.

Não restam dúvidas relativas à existência de normas destinadas a assegurar o afeto nas relações familiar, sendo este o núcleo essencial da família atual. O afeto é garantidor do pleno desenvolvimento da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional e basilar da própria República Federativa, [86] sendo, inclusive, a convivência familiar um direito fundamental da criança. [87] Após a Constituição Federal de 1988, normas infraconstitucionais também se empenharam em garantir a participação afetiva dos pais na criação de seus filhos, sendo esta uma responsabilidade decorrente do poder familiar e que perdura enquanto os filhos estiverem na dependência dos pais.

O vínculo entre pais e filhos não se extingue com o término da relação conjugal, permanecendo todas as obrigações já existentes durante o casamento, para tanto, são previstas formas para manutenção da convivência, como a guarda compartilhada. Ademais, nem mesmo é necessário o casamento para o reconhecimento e convívio dos filhos, podendo a família ser constituída por meio da união estável ou ser monoparental. A visão atual de família gravita em torno do afeto, como exposto inicialmente, a família hoje é apenas instrumento para desenvolvimento da dignidade da pessoa humana, não se justificando por si mesmo e devendo ser tutelada ao passo que assegura aos seus membros uma vida saudável e digna. Logo, segundo Maria Isabel Pereira da Costa, “deixar de conviver com o filho, negar o amparo afetivo é violar direito fundamental do filho” [88] e mesmo que a ofensa a aspecto fundamental da dignidade humana decorra de conduta lícita, não é razoável que a vítima permaneça irressarcida. [89]

Sob essa ótica, a conduta dos pais que abandonam afetivamente seus filhos, os privando do convívio familiar e do correto desenvolvimento afetivo e de sua dignidade, sem dúvidas, contraria o dever constitucional previsto no artigo 227 da Magna Carta, o Estatuto da Criança e do Adolescente e as obrigações inerentes ao poder familiar. Enquadra-se, essa conduta, plenamente como ato ilícito. [90] Venosa [91], no mesmo sentido, entende que descumpre o dever de pai ou mãe aquele que, podendo estar presente, não realiza o dever de convivência familiar.

No que se refere ao segundo elemento da responsabilidade civil, o dano, retorna-se à definição de dano moral dada por Maria Helena Diniz: “o dano moral direto consiste na lesão a um interesse que visa à satisfação ou gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade ou os atributos da pessoa. Abrange, ainda, a lesão à dignidade da pessoa humana”. [92] No mesmo sentido, Ana Carolina Brochado Teixeira citando Maria Celina Bodin de Moraes afirma que “dano moral seja caracterizado como todo ato ofensivo à dignidade da pessoa humana, que ofenda a pessoa em sua condição humana, ou que negue esta sua qualidade, de modo a violar sua personalidade”. [93] Portanto, a negação à criança do convívio familiar, da orientação de como se conduzir em sociedade e a demonstração de referências afetivas ainda no início do seu desenvolvimento ocasionam danos à sua personalidade, ao seu direito fundamental à convivência familiar e geram a dor moral.

O direito à experiência familiar é um direito da personalidade em razão de ser essa experiência essencial para a realização da dignidade humana, para a construção da personalidade, situações alcançadas por meio da percepção da própria importância que tem para o outro. [94] Conclui-se que o dano resultante de violação a esse direito é moral, extrapatrimonial.

Por certo que a reparação do dano moral leva a inúmeros debates em virtude da natureza distinta das duas grandezas, qual seja, o sentimento e o dinheiro. Mas, após a Constituição Federal, que trouxe em seu texto a expressa previsão da reparabilidade do dano moral [95], a questão sobre a possibilidade ou não da reparação por danos morais não deve mais ser questionada Tendo em vista que o dano por abandono afetivo nada mais é que um dano moral, deve-se seguir o mesmo raciocínio para fixação das indenizações decorrentes desse tipo de lesão.

Quanto à prova da lesão, Maria Isabel Pereira da Costa [96] sugere a atuação de profissionais da psicologia e psiquiatria para a verificação da intensidade do dano sofrido pela criança ou adolescente em decorrência da omissão de afeto, proporcionando ao magistrado bases para a determinação mais adequada de reparação ou compensação e a necessidade de maior ou menor reprimenda à conduta.

Superado os dois primeiros elementos, passa-se à análise do nexo causal. Esse pressuposto deve ser verificado nos casos concretos que chegam ao Judiciário por análise da situação fática ocorrida. Nexo causal é a relação entre a conduta ilícita e o dano sofrido pela vítima. O dano deve decorrer diretamente da ação do agente, em outras palavras, a conduta deve ser causa para a realização do dano.

Importante, dentro desse aspecto, determinar o que deve ser considerado causa, para isso, faz-se necessária a observação das teorias explicativas do nexo causal. Conforme exposto no item anterior, há divergência doutrinária sobre qual teoria é adotada no Brasil.

Parcela da doutrina entende ser adequada a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, “apenas o antecedente abstratamente idôneo à produção do efeito danoso” [97] pode ser entendido como causa. Isto é, o antecedente não deve ser somente necessário para que o dano ocorra, mas também apto a produzir a lesão.  Critica-se a teoria por ser dotada de grande abstração quanto ao antecedente ser apto ou não, exigindo do magistrado experiência para realizar um juízo de probabilidade, conferindo-lhe grande discricionariedade. Segundo Stolze e Pamplona Filho, “a teoria da causalidade adequada pode conduzir a um afastamento absurdo da situação concreta, posta ao acertamento judicial.” [98]

A teoria tida por mais acertada na visão dos autores alhures citados é a teoria da causalidade direta ou imediata. Por ela, causa é o antecedente fático necessariamente determinante para a ocorrência do dano, sendo este conseqüência direta e imediata daquele. Admite-se, portanto, que causas supervenientes rompam o elo entre a conduta do agente e o resultado danoso, deixando de existir a responsabilidade. Não deverá existir outra razão que justifique o dano para que a conduta seja considerada causa. Os que defendem ser essa a teoria adotada pelo Código Civil brasileiro o fazem com base no artigo 403 do referido Código, por dispor que “ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”. [99]

Outra questão relevante em sede de nexo causal é a existência de concausas – acontecimento que acrescentado à causa inicial contribui para o evento danoso. A concausa absolutamente independente em relação à conduta do agente possui o condão de romper o nexo causal originário, eximindo o agente do dever de indenizar. No entanto, a concausa relativamente independente, que apenas atua no processo naturalístico causal como agravante, apenas para auxiliar na produção do resultado danoso, não é capaz de elidir a responsabilidade civil quando for preexistente ou concomitante com a conduta ilícita. Somente ocorre o rompimento do nexo causal se a concausa relativamente independente for superveniente.

Sendo assim, verificada na situação fática levada ao Judiciário que o abandono afetivo foi a causa determinante para a lesão moral sofrida pela vítima, ainda que outras situações tenham contribuído para a ocorrência do dano, antes ou durante o abandono, caracterizando-se como concausa relativamente independente preexistente ou concomitante, é possível a responsabilização civil dos pais ausentes a fim de compensar o dano suportado pelo filho.

Além da função compensatória, a função socioeducativa ganha especial importância nos casos de abandono afetivo, pois, há necessidade atual de conscientização social e desestímulo a essa prática, haja vista o número de pais que não alimentam a noção da responsabilidade que advém da paternidade e maternidade, das responsabilidades decorrentes do poder familiar e das consequências individuais e sociais que decorrem do abandono. [100] Nesse sentido, Maria Isabel Pereira da Costa ressalta a importância de estabelecer o dever o de indenizar como “meio de persuasão para a efetivação do direito-dever de garantir o afeto de parte dos pais para os filhos como conseqüência inerente ao exercício do poder de família”. [101]

A ausência de afeto dos pais ainda no início da formação da personalidade do ser pode desenvolver, na criança e no adolescente, problemas psíquicos, baixa autoestima, sensação de rejeição e abandono com consequente dificuldade de relacionar-se socialmente em virtude da ausência de orientação, de demonstração efetiva de como viver em sociedade. Inicialmente fora afirmado que é na família que a criança desenvolve sua noção primeira da vida comunitária, a partir das experiências vividas no núcleo familiar é que percebe como respeitar o outro. A questão do abandono afetivo envolve não apenas interesses privados, mas é uma questão de ordem pública que gera consequências para toda a sociedade, tendo em mente que a criança com dificuldade para relacionar-se e sem a correta educação quanto aos valores que deve seguir leva para a sociedade seu comportamento desregrado.

Esse entendimento é corroborado por Maria Isabel Pereira da Costa ao citar Groeninga e Pereira:

a ausência das funções paternas já se apresenta hoje, inclusive, como um fenômeno social alarmante e provavelmente é o que tem gerado as péssimas consequências conhecidas por todos nós, como o aumento da delinqüência juvenil, menores de rua e na rua. [102]

Diante das consequências que o abandono afetivo gera na sociedade é que surge o interesse de aplicar a responsabilidade civil a esses casos com o escopo de evitar a ocorrência de novos casos e demonstrar a reprovação do ordenamento jurídico. Como demonstrado, os pressupostos da responsabilidade civil são satisfeitos, visto que existem normas protetivas do afeto, a conduta contrária a essas normas que imponha dano à personalidade de outrem é passível de responsabilização civil com sua função reparadora e educativa.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Amanda Oliveira Gonçalves. Responsabilidade civil dos pais nos casos de abandono afetivo dos filhos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3242, 17 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21799. Acesso em: 23 dez. 2024.

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